A recente lei 14.230/2021, alterando em parte a lei 8.429/1992, com quase três décadas de vigência, inovou em variados aspectos a disciplina jurídica da improbidade administrativa.
Tudo indica que haverá significativa movimentação forense visando a incidência de preceitos mais benignos da nova lei, ensejando discussões teóricas sobre a retroatividade, pela previsível resistência do Ministério Público.
Apesar de reservarmos a análise do conteúdo inovador para oportunidades seguintes, não podemos deixar de reconhecer a justa novidade da abolitio da infração por ato de improbidade culposa. No Brasil, são centenas de pessoas que hoje estão no banco dos réus por improbidade negligente, verdadeiro excesso sancionador criticado na doutrina e censurado em decisões judiciais há um bom tempo.
Não bastasse a falta de razoabilidade em abstratamente punir com igual sanção a quem dolosa ou culposamente comete ato improbidade, ou ínsito ao ato ímprobo a malícia, a deslealdade, a desonestidade, como substratos intelectivos do elemento volitivo que move a conduta a praticá-lo, inocorrentes no agir culposo, o agente ímprobo sempre se qualificará como violador do princípio da moralidade, apropriadamente observa Carvalho Filho.1
Este primeiro olhar sobre o recente texto tem o objetivo de ressaltar, a despeito de conhecidas e abalizadas opiniões em contrário, a plena aplicabilidade retroativa das novas normas mais benéficas.
Insere-se a retroatividade da lei mais benéfica no rol dos princípios gerais de Direito, e de status constitucional (inc. LV do art. 5º).
O enunciado constitucional de que a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu, é orientação de valor genérico ao ordenamento jurídico nacional, não limitada ao ramo penal, como literal interpretação da sua oração possa sugerir. Interpretação meramente gramatical, impediria até mesmo a retroatividade da própria norma penal in mellius ao “condenado”, uma vez que o sujeito do texto da Constituição é o “réu”, não o “condenado”. Nem permitiria o reconhecimento, pelo STF no MS 23.262/DF, da incidência do princípio constitucional da presunção de inocência aos processos administrativos sancionadores, tendo em vista a referência feita pelo dispositivo que o consagra “à sentença penal.” – inc. LVII do art. 5º da CF. Abrange o conjunto das relações jurídicas sancionadoras do Estado e os administrados, pessoas físicas ou jurídicas.
Objeções à retroatividade da norma in mellius pautadas na característica específica do Direito Penal, ou na sua distinção científica com o Direito Administrativo, não procedem nem convencem.
A exclusiva produção e incidência de efeitos sobre o status libertatis formadores da específica característica do Direito Penal, dos quais a pena privativa de liberdade é a máxima expressão, não produzidos pelas normas sancionadoras do Direito Administrativo, têm sido sensivelmente minoradas por recentes alterações legislativas, a exemplo daquelas que instituíram o acordo de não persecução, a colaboração premiada e as penas alternativas à prisão.
E a distinção científica entre estes dois ramos, determinante de regramentos próprios, estanques e intercambiáveis, não é o foco interpretativo adequado, mas, sim, o da “essência comum”, e que não pode ser outro senão o de servirem tanto o Direito Penal como o Direito Administrativo Sancionador de instrumentos legais à intervenção punitiva estatal na esfera jurídica de direitos fundamentais, com sanções próximas entre si (o art. 15 da CF, ao disciplinar os casos de perda ou suspensão de direitos políticos, fixa, para o ato de improbidade, o mesmo nível punitivo dado à condenação criminal transitada em julgado – incs. III e V), e que, paradoxalmente, em algumas situações, mais gravosas pelo ato de improbidade do que pelo crime ao qual este mesmo fato corresponda na lei penal (considerando que a dosimetria da pena parte do mínimo cominado ao delito, a sanção de suspensão de direitos políticos de conduta ímproba pode ser mais rigorosa do que a sanção por peculato, concussão ou corrupção passiva).
Compreendemos, inclusive, que os princípios da retroatividade, legalidade, isonomia e razoabilidade foram um todo único, em que a violação de um é violação do todo, que assegura proteção aos administrados frente aos abusos estatais ocorridos em quaisquer de suas órbitas de intervenção sancionadora, consistentes, por exemplo, na punição de infrações abolidas (legalidade), sancionamentos desiguais a fatos iguais tão somente em função do tempo de ocorrência (isonomia), punições desnecessárias, irrazoáveis e desatualizadas em face de modificação valorativa dos mesmos fatos pelo próprio legislador em novas leis (razoabilidade). Este mesmo todo, resultante da conexão entre tais princípios, também orienta a inaplicabilidade da máxima tempus regit actum quando nova lei, penal ou extrapenal, produza efeitos jurídicos de abolição ou suavização de enunciados normativos sancionadores.
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1 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2017, p. 599.