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A presunção do nexo causal: teorias e reflexões

A vida na sociedade contemporânea cada vez mais apresenta novos desafios na seara da responsabilidade civil, sendo certo que a consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento da República culminou na valorização da função compensatória em detrimento da função punitiva, causando a ampliação da tutela vítima, o que, por consequência, vem impactando frontalmente os elementos tradicionais da responsabilidade civil.

3/11/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

1. INTRODUÇÃO

Diante da inserção dos princípios da dignidade da pessoa humana1 e da solidariedade social2 na Constituição Federal de 1988, o cenário jurídico mudou radicalmente, sendo necessária a releitura dos institutos tradicionais, especialmente da responsabilidade civil, sob a perspectiva do direito civil-constitucional.3

Atualmente, ante a mudança do olhar da responsabilidade civil para a proteção dos valores fundamentais do ordenamento, a visão patrimonialista foi substituída pela ótica existencialista, deslocando o eixo central da função da responsabilidade civil do viés punitivo para o compensatório de forma a buscar a plena reparação da vítima.

Esta transformação foi denominada de “giro conceitual do ato ilícito para o dano injusto”4. Com efeito, a ampliação do conceito de dano sob o panorama da injustiça impactou diretamente a responsabilidade civil, rompendo suas fronteiras e expandindo os danos ressarcíveis.

Alinhado ao exposto, o crescimento da responsabilidade objetiva, baseada no risco da atividade (art. 927, § único do Código Civil), também trouxe consequências jurídicas aos elementos configuradores da responsabilidade civil, enfraquecendo, inicialmente, o instituto da culpa.

Por conseguinte, o nexo causal se transformou num verdadeiro filtro, suprindo o papel outrora ocupado pela culpa na contenção das demandas indenizatórias. No entanto, com a finalidade de assegurar a reparação da vítima, o nexo causal também tem sido flexibilizado, conforme explica Anderson Schereiber:

A perda desta força de contenção da culpa resulta no aumento do fluxo de ações de indenização a exigir provimento jurisdicional favorável. Corrói-se o primeiro dos filtros tradicionais da responsabilidade civil, sendo natural que as atenções se voltem – como, efetivamente têm se voltado – para o segundo obstáculo à reparação, qual seja, a demonstração do nexo de causalidade. Também aí, entretanto, verifica-se uma relativa perda do papel de filtragem do ressarcimento dos danos, por força de um fenômeno que pode ser genericamente designado como flexibilização do nexo causal.5

A denominada flexibilização do nexo causal consiste no processo de facilitação probatória pela vítima de modo a identificar o agente causador do dano e promover a devida reparação mediante a presunção da causalidade.

2. O NEXO CAUSAL COMO ELEMENTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL

Caitlin Mulholland conceitua o nexo de causalidade como “a ligação jurídica realizada entre a conduta ou atividade antecedente e o dano, para fins de imputação da obrigação ressarcitória.”6

Este elemento da responsabilidade civil possui a função de identificar o responsável para reparar o dano, assim como de delimitar os danos indenizáveis.7

O art. 403 do Código Civil8 traz, de forma rasa e genérica, a noção da causalidade no ordenamento, levando a intermináveis discussões a respeito do tema, bem como à aplicação de diversas teorias para estabelecimento do nexo causal.

3. AS TEORIAS TRADICIONAIS DO NEXO CAUSAL

Há grande crítica da doutrina a respeito da aplicação das teorias do nexo causal, visto que as decisões judiciais, frequentemente, misturam os fundamentos de uma e outra.9 De outro ponto vista, porém, a indefinição das teorias tem prestado auxílio em relação à ampliação da tutela da vítima, permitindo a flexibilização do nexo de causalidade.10

Tradicionalmente, são aplicadas as seguintes teorias no ordenamento jurídico brasileiro: a teoria da equivalência das condições (conditio sine qua non), a teoria da causalidade adequada e a teoria do dano direto e imediato.

Sobre a teoria da equivalência das condições, em síntese, significa dizer que todas as causas que contribuíram para o evento danoso deverão ser consideradas para fins de imputação da responsabilidade civil. Para demonstrar a problemática desta teoria, a doutrina cita o exemplo da responsabilização do marceneiro que fabricou a cama em que um casal cometeu adultério.11 Esta teoria raramente é utilizada em sede de responsabilidade civil.

A teoria do dano direto e imediato (também chamada de teoria da interrupção do nexo causal) foi adotada pelo ordenamento, consoante o disposto no art. 403 do Código Civil. A origem da teoria trazia a compreensão de que, para a formação do liame causal, somente poderia ser considerada causa aquela que tivesse um vínculo direto com o dano, sem qualquer outra interferência na cadeia causal.

Todavia, diante da restrição excessiva trazida pela teoria do dano direto e imediato, foi criada a subteoria da necessariedade12, o que permitiu, por consequência, o esticamento do nexo causal e a proteção da vítima do dano indireto13, uma vez que o elemento necessariedade passou a ser o parâmetro para a configuração da causalidade.

Em relação à teoria da causalidade adequada, em suma, é aquela que busca identificar a causa mais apta, numa investigação abstrata, à produção do dano. Verifica-se, portanto, se no curso normal dos eventos aquela causa normalmente produziria aquele resultado. De acordo com Gisela Sampaio da Cruz Guedes, no processo de identificação da causalidade, ocorreria uma prognose póstuma14, ou seja, uma tentativa de adivinhar se o resultado danoso aconteceria sempre que determinada causa aparecesse.

Em que pese a adoção da teoria do dano direto e imediato pelo nosso Código Civil, a teoria da causalidade adequada encontra fundamento no ordenamento brasileiro a partir da técnica da presunção consubstanciada no art. 335 do CPC15, sendo o juízo de probabilidade inerente à causalidade adequada extraído exatamente através deste processo de análise.

Deste modo, a teoria da causalidade adequada, por ser mais flexível, demonstra-se como forte aliada à presunção no Direito, o que pode auxiliar na concretização da tutela da vítima ao facilitar a configuração do nexo de causalidade.

Clique aqui para conferir a íntegra do artigo.

_________

1 “A pessoa humana foi, com justa causa, elevada ao patamar de epicentro dos epicentros. Como consequência, na responsabilidade civil, o dano à pessoa humana se objetiva em relação ao resultado, emergindo o direito de danos como o governo jurídico de proteção à vítima. Consolida-se a ideia de compensação pelo sofrimento. O direito civil, por isso, passa a “inquietar-se com a vítima”. (FACHIN, Edson. “Responsabilidade civil contemporânea no Brasil: notas para uma aproximação.” Disponível aqui. Acesso em 23/5/21.)

2 Se a solidariedade fática decorre da necessidade imprescindível da coexistência humana, a solidariedade como valor deriva a consciência racional dos interesses em comum, interesses esse que implicam, para cada membro, a obrigação moral de “não fazer aos outros o que não se deseja que lhe seja feito”. Esta regra não tem conteúdo material, enunciando apenas uma forma, a forma da reciprocidade, indicativa de que “cada um, seja o que for que possa querer, deve fazê-lo pondo-se de algum modo no lugar de qualquer outro. É o conceito dialético de “reconhecimento” do outro. (BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à Pessoa Humana. Rio de Janeiro: 2009, Renovar, p. 111/112)

3 Para Gustavo TEPEDINO, o Direito Civil Constitucional “trata-se, em uma palavra, de estabelecer novos parâmetros para a definição de ordem pública, relendo o direito civil à luz da Constituição, de maneira a privilegiar, insista-se ainda uma vez, os valores não-patrimoniais e, em particular, a dignidade da pessoa humana, o desenvolvimento da sua personalidade, os direitos sociais e a justiça distributiva, para cujo atendimento deve se voltar a iniciativa econômica privada e as situações jurídicas patrimoniais.” (TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil, Tomo I. Rio de Janeiro: 2008, Renovar, p. 23.)

4 GOMES, Orlando. Tendências modernas na teoria da responsabilidade civil. In: Estudos em homenagem ao professor Silvio Rodrigues. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 293 e 295, apud, BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à Pessoa Humana, op. cit., p.177.

SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil - da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. Rio de Janeiro: 2013, Ed. Atlas, p. 51.

6 MULHOLLAND, Caitlin Sampaio, A responsabilidade civil por presunção do nexo de causalidade, 1ª Ed., Rio de Janeiro: GZ Editora, 2010, p. 57.

7 CAIO MARIO, ao tratar do nexo causal, deixa claro que “este é o mais delicado dos elementos da responsabilidade civil e o mais difícil de ser determinado.” (PEREIRA, Caio Mario da Silva. Responsabilidade Civil. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 76.)

8 “Art.403. Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direta e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual.”

9 “Ocorre, desse modo, que, para se entender o panorama da causalidade na jurisprudência brasileira, cumpre ter em linha de conta não as designações das teorias, não raro tratadas de modo eclético ou atécnico pelas cortes, mas a motivação que inspira as decisões.” (TEPEDINO, Gustavo. “Notas sobre o nexo de causalidade”, Revista jurídica 296 – Junho/2002 – Doutrina Cível, p. 11.)

10 SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil - da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos, op. cit, p. 65/66.

11 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, p. 66, apud, CRUZ, Gisela Sampaio da. O problema do nexo causal na responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 45.

12 “Formulou-se uma construção evolutiva da teoria da relação causal imediata, denominada de subteoria da necessariedade da causa, que considera sinônimas e reforçativas as expressões dano direto e dano imediato, ambas identificadas com a ideia de necessariedade do liame entre causa e efeito. (TEPEDINO, Gustavo. “Notas sobre o nexo de causalidade”, op. cit., p. 10)

13 Agostinho ALVIM defendia a teoria do dano direto e imediato expondo que “suposto certo dano, considera-se causa dele a que lhe é próxima ou remota, mas, com relação a esta última, é mister que ela se ligue ao dano, diretamente. Ela é causa necessária desse dano, porque a ela se filia necessariamente; é causa exclusiva, porque opera por si, dispensadas outras causas.” (ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências, p. 380-381, apud, CRUZ, Gisela Sampaio da. O problema do nexo causal na responsabilidade civil, op. cit., p.103)

14 CRUZ, Gisela Sampaio da. O problema do nexo causal na responsabilidade civil, op. cit., p. 67.

15 FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Curso de Direito Civil, vol. 3, Responsabilidade Civil, 2ª ed. Ed. Atlas, São Paulo: 2015, p. 374.

Alan Sampaio Campos
Sócio do escritório Safer Advogados. Pós-graduado em Direito Civil-Constitucional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestrando em Direito Civil-Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC - Rio).

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