Migalhas de Peso

A banalização do inquérito policial

Além da referida banalização, é perceptível, para quem de fato milita na advocacia criminal, o excessivo prazo de duração de alguns inquéritos policiais, o que vai de encontro ao artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal.

29/10/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Consoante a clássica lição de Weber Martins Batista, “não é raro ler que a só instauração de inquérito policial não constitui coação ou constrangimento ilegal, pois se trata de simples processo extrajudicial, de cunho meramente informativo, que não tem o condão ou o efeito de levar a juízo de culpa, mas apenas à formação da opinio delicti do Ministério Público. Só quem está fora da realidade pode dizer uma coisa assim. A abertura do inquérito policial não apenas põe o indiciado na incômoda posição de suspeito, sujeito a inúmeros constrangimentos, como o de ser conduzido perante a autoridade policial sempre que esta entender necessário, como implica a inclusão de seu nome em folha de antecedentes penais, de onde não sairá jamais, nem mesmo se arquivado o feito sem denúncia, ou se absolvido no processo contra ele proposto.”1

Seu ensinamento permanece contemporâneo.

Na realidade, hodiernamente, é possível vislumbrar novos constrangimentos a partir da “mera” instauração de inquérito policial, mormente pela atual facilidade em se obter informações pessoais: dificuldade de ser contratado na iniciativa privada (ou, por vezes, manter-se no emprego), exposição midiática e/ou na rede mundial de computadores, afastamento de cargos de confiança na Administração Pública, transtornos para tomar posse em concursos públicos, empecilhos para entabular relações comerciais com as esferas pública e privada, entre outros.

Definitivamente, inquérito policial não é “peça meramente informativa” (como lecionava José Frederico Marques), contendo atos de instrução definitivos (provas antecipadas, cautelares e não reproduzíveis) que inclusive podem embasar medidas de coação cautelar (pessoal, probatória e patrimonial) contra o investigado.2

Ainda assim, é possível notar um considerável aumento nos números de instaurações de inquéritos policiais, muitos sem lastro indiciário mínimo. E, outros, com claro propósito de perseguir um determinado “alvo”3, o que pode caracterizar lawfare.

Na esteira desse raciocínio, José Renato Nalini, em sua reconhecida obra sobre ética, preleciona que “propalar acusações temerárias vulnera os interesses do presumível inocente. É manifesto um protagonismo exagerado de alguns membros do Parquet que se consideram acima do bem e do mal e que iniciam investigações temerárias. A intimidade com a mídia faz com que os males causados à reputação de inocentes seja marca indelével e nunca mais reparada17.” Em seguida, pondera que “manter alguém atrelado a uma apuração ministerial é uma pena autônoma, ainda que o arquivamento seja o resultado do procedimento. Se a busca da ética na política é aspiração de todos os brasileiros honestos, a caça às bruxas e a inversão do princípio da presunção de inocência não fortalecem o sistema de Justiça. Um excesso ministerial fará com que inexista pessoa honesta com disposição de colaborar na gestão da coisa pública.”4

Note-se que o aludido raciocínio é igualmente aplicável quando os responsáveis pela persecução penal são convertidos em investigados, algo, infelizmente, cada vez mais habitual.

Com efeito, quando instados, em procedimentos apuratórios, a prestarem esclarecimentos sobre eventuais desvios funcionais e/ou pessoais, a revolta, externada em muitos casos na forma de postagens em redes sociais, é verborrágica (e, em diversas situações, corporativista).

Ora, conforme já ressaltado pelo Ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, “(...) não se deve banalizar a persecução criminal, pois essa atitude está a afrontar, também, o princípio da dignidade da pessoa humana que, entre nós, tem base positiva no artigo 1º, III, da Constituição Federal.”5 Vale dizer, deve-se ter cautela, e não açodamentos, ao se decidir sobre molestar a vida profissional, funcional e pessoal de qualquer cidadão, com a instauração de inquérito policial (ou procedimento investigativo similar), haja vista seu inegável efeito estigmatizante, causador de angústia e ansiedade.

Mas, não é só.

Além da referida banalização, é perceptível, para quem de fato milita na advocacia criminal, o excessivo prazo de duração de alguns inquéritos policiais, o que vai de encontro ao artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.”6 Há, atualmente, inquéritos policiais que tramitam por longos anos (até mesmo uma década), sem qualquer preocupação com a celeridade ou com a figura do implicado, o que causa profunda espécie.7

Cabe assinalar, nesse pormenor, que tal excesso, além de agravar os constrangimentos mencionados alhures, confirma, em vários casos, a desnecessidade de instauração do procedimento, porquanto, ao fim e ao cabo, nada restou concretamente apurado.

Felizmente, os Tribunais de Superposição vêm reconhecendo a garantia da razoável duração no âmbito dos inquéritos policiais.8 Recentemente, aliás, o Ministro Gilmar Mendes, após citar uma série de precedentes da Suprema Corte, decidiu: “Portanto, é possível concluir que a tramitação deste feito por prazo desarrazoado constitui situação de flagrante constrangimento ilegal ao investigado, que deve ser imediatamente reparada através da concessão de habeas corpus de ofício.”9 Realmente, em determinadas hipóteses, a ilegalidade é de tal ordem que a concessão da ordem de ofício, com base no artigo 654, §2º, do Código de Processo Penal, se impõe.

Cumpre registrar que, dependendo do contexto fático, a ilegalidade acima retratada enseja a apuração dos crimes consubstanciados nos artigos 2710, 3011 e/ou 3112, da lei 13.869/2019 (que dispõe sobre os crimes de abuso de autoridade).

Alfim, é de se dizer que não se está a propor coarctação das atividades investigativas, nem se está a menoscabar a atividade dos órgãos estatais na apuração de delitos. Em verdade, a reflexão busca, como o título demonstra, lançar luzes sobre a trivialização das investigações que tanto prejuízo causam ao jurisdicionado (mormente àqueles que não delinquiram).  

________

1 BATISTA, Weber Martins. Direito Penal e Direito Processual Penal. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996. p. 51. Atualmente, o E. STF proibiu a condução coercitiva do indiciado, para interrogatório (ADPF’s 395 e 444).

2 SAAD, Marta. O direito de defesa no inquérito policial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

3 Jargão frequentemente utilizado em persecuções penais e que revela, em nossa opinião, o real tratamento dado a alguns investigados.

4 NALINI, José Renato. Ética geral e profissional. 14ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. p. 392.

5 STF, HC 102477 / SP, segunda turma, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 28.06.2011.

6 Essa cláusula pétrea é reforçada pelo teor do artigo 8.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos, que assegura a toda pessoa o “direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela (...)”

7 O motivo, comumente invocado para a morosidade, reside na suposta complexidade das investigações. Sem embargo, nada justifica tamanha demora, notadamente pelas atuais ferramentas investigativas que o Estado dispõe.

8 No STJ, ver: STJ, HC 444.293/DF, quinta turma, Rel. Min. Ribeiro Dantas, DJe 13.12.2019 e STJ, RHC 135.299/CE, sexta turma, Rel. Min. Saldanha Palheiro, DJe 25.03.2021.

9 Disponível aqui. Acesso em: 27/10/2021.

10 “Requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa. Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. Parágrafo único.  Não há crime quando se tratar de sindicância ou investigação preliminar sumária, devidamente justificada.”

11 “Dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente: Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.”

12 “Estender injustificadamente a investigação, procrastinando-a em prejuízo do investigado ou fiscalizado: Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. Parágrafo único.  Incorre na mesma pena quem, inexistindo prazo para execução ou conclusão de procedimento, o estende de forma imotivada, procrastinando-o em prejuízo do investigado ou do fiscalizado.”

Flávio Mirza
Pós-Doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra. Doutor e Mestre em Direito pela UGF. Professor da UERJ e da UCP. Sócio de Mirza & Malan Advogados.

Diogo Malan
Pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra. Doutor em Direito Processual Penal pela USP. Mestre em Direito pela UCAM. Professor da UERJ e da UFRJ. Sócio de Mirza & Malan Advogados.

André Mirza
Mestre em Direito Constitucional (IDP/DF). Pós-Graduado em Direito Penal Econômico e Europeu (Univ. de Coimbra). Autor de "Acesso aos autos na colaboração premiada". Sócio de Mirza & Malan Advogados.

Amanda Estefan
Especialista em Processo Penal e Garantias Fundamentais pela Academia Brasileira de Direito Constitucional. Mestranda em Direito Processual pela UERJ. Sócia de Mirza & Malan Advogados.

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