O novo recurso tecnológico do CNJ, apelidado de “teimosinha”, veio a fim de facilitar cobranças de valores por meio da reiteração automática de ordens judiciais de bloqueios em conta. Essa nova ferramenta, contudo, não se amolda às regras processuais e princípios que regem o ordenamento jurídico penal e processual penal.
Em fevereiro de 2021, o Conselho Nacional de Justiça anunciou, dentre novas funcionalidades associadas ao Sistema de Busca de Ativos do Poder Judiciário – Sisbajud1, a criação da ferramenta tecnológica denominada “teimosinha”, para permitir a renovação automática de medidas de cumprimento de ordens judiciais de bloqueios de valores.2 O funcionamento básico do recurso, em operação desde abril, permite ao magistrado “programar” a reiteração da efetivação do bloqueio periódico por tempo determinado — a princípio pelo prazo máximo de 60 (sessenta) dias3 — estabelecido quando do cadastro da ordem no sistema. Conforme constou na divulgação da ferramenta no site do CNJ:
No formato atual, quando o juiz emite uma ordem de rastreamento de bens para pagamento aos credores e os valores encontrados nas contas dos devedores não são suficientes para quitar toda a dívida, o juiz tem que ficar renovando essa ordem sistematicamente. A “teimosinha” vai eliminar esse processo de forma que a busca por ativos seja encerrada somente quando o Sisbajud localizar os valores integrais das dívidas, sem necessidade de intervenção humana.
Recentemente, houve decisão — possivelmente a primeira de outras nesse sentido —, proferida pela 32.ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, considerando “perfeitamente possível o bloqueio permanente de ativos financeiros da parte executada via SISBAJUD, até a satisfação integral do débito executado” (TJSP – 32.ª Câmara de Direito Privado – AI 2202768-46.2021.8.26.0000 – Rel. Desembargador Ruy Coppola – julg. 29 set. 2021)4. Denota-se, portanto, que o próprio limite máximo temporal tem sido relativizado, de modo à aplicação concreta do mecanismo ter sua incidência até a satisfação do débito.
O objetivo claro do instrumento é reduzir a necessidade de implementação “manual” — i.e. individualizada e pontual — de reiteradas consultas ao sistema pelo juízo, a fim de atingir novos valores, acaso a primeira tentativa não alcance fundos suficientes para saldar a dívida. Como expressou o próprio CNJ no trecho acima, a funcionalidade visou reduzir a necessidade de intervenção humana.
A ferramenta consiste em recurso interessante, que certamente facilita toda uma sorte de cobranças de valores que diariamente abarrotam as mesas de serviço de juízos cíveis em todo o país. Nesse ponto, com ressalva acerca de algumas dificuldades práticas do sistema5, a repercussão no meio jurídico tem sido positiva, inclusive com publicações elogiando a facilitação às cobranças de valores que, anteriormente, demandavam pleitos e diligências repetitivas por parte de juízes de advogados.6
Há, porém, um possível campo de aplicação que parece ter passado despercebido nos comentários veiculados até o momento: o uso da ferramenta em processos de natureza criminal. Não foi possível identificar quaisquer comentários a respeito da possibilidade de aplicação da “teimosinha” na seara criminal. Menos ainda quanto à (in)observância dos princípios e regras que regem o processo penal ao funcionamento dessa ferramenta.
Em uma primeira leitura, a “teimosinha” é incompatível com o processo penal.
Quando se pensa em cobrança judicial de valores e bloqueios judiciais, o primeiro cenário que vem à mente é o de execuções definitivas de dívidas perante o juízo cível — valores líquidos, já delimitados após análise cuidadosa e julgamento de mérito, e/ou títulos de crédito, cobrados de forma definitiva em face de sujeitos determinados e não adimplidos nos prazos cabíveis. Excepcionalmente, para casos em que ainda não houve julgamento de mérito ou não há títulos de crédito, pensa-se na aplicação de cautelares cuidadosamente fixadas e reversíveis, ante um ou alguns devedores específicos e, provavelmente, no limite de suas condições financeiras. Para essas situações, a utilização da “teimosinha” realmente justifica a recepção positiva angariada na comunidade jurídica.
Na seara penal, contudo, a situação é diversa.
Afora eventuais custas judiciais, não existe efetiva “cobrança” de valores perante juízo criminal. Ao menos não deve existir cobrança de valores no processo penal, malgrado venha se buscando conferir conotação patrimonial cada vez maior ao processo penal.
É verdade que existe eventual fixação de valor mínimo para reparação de danos por ocasião da sentença condenatória criminal. Porém, isso consiste apenas em delimitação de um valor mínimo a ser cobrado perante o juízo cível, como execução de valor. Eventual fixação de fiança tampouco enseja “cobrança”, visto que o recolhimento consiste em faculdade processual que o investigado/réu pode optar por não cumprir/recolher.
Já a possível aplicação da “teimosinha” na seara penal ocorreria no contexto de medidas cautelares patrimoniais, ou seja, o sequestro e o arresto (excluída, por sua natureza, a especialização de hipoteca legal, incidente sobre bens imóveis).
De plano, observe-se que não existe no processo penal uma medida cautelar de bloqueio. O bloqueio de valor em conta via Sisbajud (e, anteriormente, Bacenjud) é tão somente uma forma de levar a cabo as medidas de sequestro ou arresto, conforme o caso, nos termos previstos na legislação processual penal.
Quanto ao sequestro, a “teimosinha” é descabida, pois essa medida assecuratória depende da demonstração de “indícios suficientes da proveniência ilícita” dos valores a serem sequestrados7. Neste caso, o sequestro tem incidência imediata sobre os valores que se encontrem depositados. O uso da “teimosinha” não se justifica devido à impossibilidade de, nos sessenta dias que sucedem a decretação de sequestro, quaisquer valores depositados em contas do acusado terem a sua origem presumida ilícita. A ferramenta, nestes casos, ou é inócua ou é abusiva, pois o sequestro somente se dá mediante demonstração de indícios veementes de origem espúria dos valores a serem “bloqueados”.
No tocante ao arresto, cuja finalidade é assegurar eventual reparação de danos, tampouco há compatibilidade e razoabilidade na aplicação da ferramenta, mas por motivos diferentes. A natureza processual da medida de arresto, visando à constrição antecipada de bens para posterior reparação de dano, demanda naturalmente a demonstração do cabimento e da urgência que tornam justificável a decretação de medida cautelar em perspectiva de reparação futura e incerta. A análise de situação pontual e específica que justifica ou não a aplicação de medida antecipatória não se compactua com a “teimosinha”, cujo objetivo é reduzir a necessidade de intervenção humana. O juízo deve, nesses casos, analisar atenta e pontualmente a situação concreta e atual, a fim de decidir se cabe ou não antecipar medida constritiva ao longo da investigação ou da ação penal. Isso é totalmente incompatível com o recurso de repetição automática em análise.
E não é só. Via de regra, as medidas cautelares patrimoniais são requeridas pela acusação em casos de grande repercussão midiática, com dezenas de investigados/acusados e repercussões patrimoniais elevadíssimas, de centenas de milhares ou mesmo milhões de reais em alegado prejuízo aos cofres públicos. A partir da previsão legal de solidariedade do dever de reparar o dano8, geralmente são aplicados bloqueios milionários sobre todo o patrimônio de cada um dos investigados/acusados, alcançando todas as contas bancárias, imóveis, automóveis e outras formas de patrimônio de sujeitos que sequer foram definitivamente condenados. Isso difere muito das execuções usualmente realizadas no Juízo Cível, com foco no qual a ferramenta foi desenvolvida.
Por isso, a imposição de bloqueios reiterados automaticamente, quanto a valores altíssimos e sem observância à capacidade financeira individual e à subsistência de indivíduos que não poderão ser considerados culpados até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória é incompatível com os princípios do estado de inocência, do in dubio pro reo e da dignidade da pessoa humana.
A eliminação da intervenção humana na operacionalização de medidas cautelares patrimoniais na seara penal parece-nos inadmissível. Nesse campo, que representa a instância final de atuação do ordenamento contra condutas ilícitas, reduzir ou eliminar a necessidade de análise pontual do juízo quanto à aplicação de cautelares lesiona direitos e princípios duramente conquistados. A ferramenta “teimosinha”, por isso, não deve ser usada na seara penal, sob pena de ofensa aos princípios mais caros ao ordenamento penal e processual penal pátrio.
1 CNJ. Disponível aqui.
2 Justiça amplia bloqueio de valores para quitar dívidas. PCNJ. 26 fev. 2021. Disponível aqui.
3 Bens e valores de criminosos podem ser bloqueados de forma sigilosa. CNJ. 20 mai. 2021. Disponível aqui.
4 Inteiro teor. Disponível aqui.
5 “Ao negar o pedido, a magistrada salientou que a busca reiterada de ativos financeiros, embora automática, gera um protocolo para cada dia de reiteração, que ao final deve ser lido e juntado aos autos individualmente, bem como compilado com os demais resultados dos dias anteriores, tornando sua operacionalização tão demorada quanto uma busca individual por dia de reiteração.” Juíza nega realização de busca de ativos utilizando a “teimosinha”. Migalhas. 28 jun. 2021. Disponível aqui.
6 HIGÍDIO, José. Advogados comemoram implementação da "teimosinha" no SisbaJud. Conjur. 23 mai. 2021. Disponível aqui.
7 Excepcionalmente, caso tais valores estejam indisponíveis ou localizados no exterior, é possível o sequestro de bens de origem lícita, contudo deve haver indícios suficientes de que o acusado tenha arrecadado patrimônio de origem delituosa.
8 Ver LUCCHESI, Guilherme Brenner; ZONTA, Ivan Navarro. Sequestro dos proventos do crime: limites à solidariedade na decretação de medidas assecuratórias. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, v. 6, n. 2, p. 735-764, mai.-ago. 2020. Disponível aqui.