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O veto presidencial à distribuição gratuita de absorventes - Análise e nuances

O artigo aborda ponto a ponto do veto presidencial sobre os artigos da lei 14.214/21, que dispõe acerca da distribuição gratuita de absorventes a meninas e mulheres em situação de vulnerabilidade social.

20/10/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Que as questões que envolvem o corpo feminino sejam um tabu, até os dias de hoje, não gera surpresa. No entanto, considerável parcela da população brasileira foi acometida de indignação com a notícia do veto presidencial a dispositivos da lei 14.214/21 que tratavam, em linhas gerais, da distribuição de absorventes a mulheres em determinadas situações de vulnerabilidade.

A gênesis do aludido ato normativo é o Projeto de Lei 4.968/19, de autoria da deputada federal Marília Arraes (PT-SE), cuja proposta foi aprovada no Senado, no dia 24 de setembro deste ano, sob a relatoria da Senadora Zenaide Maia (Pros – RN). O ato normativo institui o Programa e Promoção da Saúde Menstrual, além de alterar a lei 11.346/06, para determinar que as cestas básicas entregues no âmbito do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan) contenham como item essencial o absorvente higiênico feminino.

Foram vetados os arts. 1º, 3º, 5º, 6º e 7º da lei em discussão.

O art. 1º assim dispunha: “Esta Lei institui o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual para assegurar a oferta gratuita de absorventes higiênicos femininos e outros cuidados básicos de saúde menstrual”.

O veto a esse dispositivo alicerçou-se na contrariedade ao interesse público, “uma vez que não há compatibilidade com a autonomia das redes e estabelecimentos de ensino” e “não indica a fonte de custeio ou medida compensatória”, o que supostamente violaria o disposto nos arts. 16, 17, 24 e 26, todos da Lei Complementar 101/00 (Lei de Responsabilidade Fiscal), 125 e 126 da lei 14.116/20 (Lei de Diretrizes Orçamentárias 2021) e na Lei Complementar 173/20.

Sem adentrar as minúcias dos critérios que levam à responsabilização fiscal, o que salta aos olhos é o não dito como razão da paradoxal afirmação de contrariedade ao interesse público ligada a eventual incompatibilidade com a “autonomia das redes de estabelecimentos de ensino”. Pretendeu o Presidente da República, após consulta ao Ministro da Educação, sugerir que não há autonomia daqueles entes para inserir na lista de essenciais um item básico de higiene para funcionamento do respectivo estabelecimento de ensino, como o próprio papel higiênico, que abastece os banheiros? A diferença entre os itens é assim tão abissal, a fim de justificar a distribuição de um e de outro não?

O art. 3º elencava as mulheres destinatárias dessa política de distribuição do item de higiene íntima básica, a saber: “I - estudantes de baixa renda matriculadas em escolas da rede pública de ensino; II – mulheres em situação de rua ou em situação de vulnerabilidade social extrema; III – mulheres apreendidas e presidiárias, recolhidas em unidades do sistema penal; e IV - mulheres internadas em unidades para cumprimento de medida socioeducativa”.

A despeito do inegável acerto quanto aos predicativos de vulnerabilidade social eleitos para a destinação dos absorventes, o texto merece uma crítica pontual, uma vez que se olvidou dos homens transgênero com útero. Ideal seria se a redação mencionasse “pessoas portadoras de útero”, seguida da especificidade elencada em cada inciso – como as destinatárias da ação final da política pública ali instituída. Frisa-se: nas mais bem intencionadas ações meritórias destinadas à equidade de gênero, a população trans segue invisibilizada e excluída das ações públicas de correção na igualdade de existência.

De todo modo, importa salientar a razão do veto desse rol taxativo, que, além da já referida incompatibilidade com a autonomia das redes de estabelecimento de ensino e da ausência de fonte de custeio, destacou que “o dispositivo não abarca especificamente os usuários do SUS de forma ampla ou relaciona a sua distribuição às ações ou serviços de saúde, ao contrário restringe as beneficiárias. Assim, repise-se, contraria o disposto na Lei Complementar nº 141, de 13 de janeiro de 2012, que determina que os recursos sejam destinados às ações e serviços públicos de saúde de acesso universal, igualitário e gratuito."

A perplexidade que merece comentário é a distorção contida na motivação para o veto, pois, na visão da Presidência da República, se a medida não abarca toda a população em termos potencialmente absolutos, implicaria um privilégio, um luxo, já que destinada a um grupo particularizado. A lente da misoginia impede a compreensão do conceito de universalidade, ainda que referente a um grupo com especificidades fisiológicas no universo dos seres humanos. Nítido é o desvirtuamento do que se entende por interesse público, consubstanciado no não dito: se homens não menstruam, esvaziado está o critério da universalidade dessa política pública.

A título de exemplo para contrapor esse argumento, evoca-se a distribuição gratuita de preservativos masculinos pelo SUS, normalizada em 20181, e cuja implementação se deu muitos anos antes. É certo que nosso sistema de saúde também distribui o respectivo item feminino, porém, a tomar como fundamento esse que foi apresentado para vetar a distribuição de absorventes, jamais nenhuma das espécies de preservativos seria gratuitamente ofertada, pelo simples fato de adequar-se a apenas parcela da população.

Saltando para o veto do § 2º do art. 3º da lei em comento, a Presidência da República, novamente, fundamentou o veto na aludida ausência de indicação de fonte de custeio ou medida compensatória, o que, de novo, contrariaria o interesse público por vício de inconstitucionalidade. Ainda, como argumento de reforço à contrariedade do que se entende por interesse público, ponderou que a medida seria custeada por um fundo público, mas beneficiaria “uma categoria específica de beneficiárias”. Vale dizer, se não beneficia a população carcerária como um todo, interesse público não há.

A propósito da expressão usada nas razões do veto para se ferir às detentas, “categoria específica de beneficiárias”, neste momento vale lembrar os relatos reproduzidos pela jornalista Nana Queiroz, na obra “Presos que Menstruam, a brutal vida das mulheres – tratadas como homens – nas prisões brasileiras”2. Em determinadas passagens a autora ilustra o desprezo pelas especificidades fisiológicas das mulheres, no ambiente carcerário, dada a escassez de itens indispensáveis para a sua dignidade física, como absorventes e remédios (tais como pílulas anticoncepcionais e fármacos para cólicas menstruais).

A desumanidade descrita na obra é explícita. Da sua leitura, extrai-se que as encarceradas recebem um kit higiênico que bastaria a um homem. Dos relatos contidos no livro extrai-se a clara natureza de luxo que esses objetos recebem, diante da seleção “natural” daquelas que conseguem saídas temporárias, das que recebem mais visitas, ou que possuem dinheiro para adquiri-los. E, no contexto das razões do veto, faz-se lembrar que, além de a indicação imediata da fonte e do custeio não ser empecilho à sanção de um dispositivo de lei que determina uma política pública, não parece haver uma preocupação com a notória violação de direitos humanos, recorrentemente registrada no âmbito da população carcerária feminina.

Passando ao veto do art. 5º - que garantia a oferta gratuita pelo poder público de absorventes higiênicos femininas às beneficiárias do também vetado art. 3º, e indicava a preferência de aquisição para aqueles feitos com materiais sustentáveis, em igualdade de condições, como critério de desempate, pelos órgãos e pelas entidades responsáveis pelo certame licitatório -, vê-se que a Presidência da República reiterou as razões acerca da incompatibilidade com a autonomia das redes e estabelecimento de ensino e da não indicação da fonte de custeio.

Além disso, e não menos surpreendente, como justificativa para a vedação ao artigo, alegou-se que “as ações para a oferta gratuita de absorventes higiênicos femininos não podem ser classificadas como Ações e Serviços Públicos de Saúde - ASPS, para fins do atendimento ao mínimo constitucional em saúde. A norma estabelece a quem os absorventes serão destinados, de modo a restringir o público beneficiário e não atender às condições de acesso universal e igualitário previstos na Lei Complementar 141, de 13 de janeiro de 2012. Portanto, as ações não poderiam ser custeadas com os recursos de transferências para a saúde”.

Consoante devidamente pontuado pela professora Maria Paula Dallari Bucci, “[o] SUS não é um programa que visa resultados, mas uma nova conformação, de tipo estrutural, para o sistema de saúde, cujo objetivo é a coordenação da atuação governamental nos diversos níveis federativos no Brasil (‘rede regionalizada e hierarquizada’, cf. art. 198 da CF), para a realização de três diretrizes: descentralização, atendimento integral prioritariamente preventivo e participação da comunidade”3.

Ousa-se, portanto, dizer que o Sistema Único de Saúde nada mais é que uma política pública de excelência, a coroação entre as políticas públicas no âmbito da saúde, e dela, segundo a autoridade máxima do Poder Executivo, não pode se beneficiar esse grupo tido como seleto e minoritário, porquanto ausente o elemento da universalidade. Assim, é alarmante a miopia com a qual o governo federal enxerga uma minoria política, que, a seu ver, não faz jus ao dispêndio de recursos públicos por não se enquadrarem no conceito de maioria – que aqui se traduz como maioria privilegiada, que, em questões de gênero, materializa-se na figura do homem cisgênero.

Também foi vetado o art. 6º e nesse ponto, o destaque vai para o entendimento de que “os absorventes higiênicos não se enquadram nos insumos padronizados pelo Sistema Único de Saúde -SUS, portanto não se encontram na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais - RENAME, além disso, ao estipular as beneficiárias específicas, a medida não se adequaria ao princípio da universalidade, da integralidade e da equidade no acesso à saúde do Sistema Único de Saúde – SUS”

É certo que menstruação não é patologia e que absorvente não é fármaco. Todavia, assim como uma variedade de insumos descrita na RENAME de 2020, tais como água para injetáveis, diafragma, preservativos feminino e masculino, seringas, etc4, por que não incluir o item objeto deste debate na relação, ao invés de alegar a sua mera falta na listagem como fundamento para o veto? Utilizou-se da via inversa como se não houvesse medida ao alcance do Executivo para complementar a listagem.

Por fim, também recaiu sobre o art. 7º da lei 14.214/21 a vedação de validade. O respectivo texto alterava o parágrafo único do artigo 4º da lei 11.343/06, que passaria a vigorar com a seguinte redação: “A entrega das cestas básicas dentro do SISAN deverá conter como item essencial o absorvente higiênico feminino.”

Merecedor de relevo é o trecho sobre a motivação do respectivo veto que alude a eventual extrapolação do âmbito de aplicação da lei 11.343/06, uma vez que a nova lei “introduziria uma questão de saúde pública em uma lei que dispõe sobre segurança alimentar e nutricional”.

Em que pese a objetividade do argumento, revestida da obviedade entre a diferença de um gênero alimentício e de um item de higiene, arrisca-se dizer que a medida seria despicienda, mas necessária, na medida em que se poderia antever a censura aos artigos anteriores. Curioso notar que, para vetar o dispositivo, a autoridade máxima do Executivo admite tratar-se de questão de saúde pública.

Muito se tem debatido acerca dos efeitos que a dificuldade de acesso ao absorvente íntimo feminino faz, especialmente, no que diz respeito à evasão escolar no período do mês em que as pessoas portadoras de útero menstruam. Em recente matéria veiculada na página eletrônica do jornal “Estadão”, foi narrada a história de uma diretora de escola no estado da Bahia, que descobriu o motivo pelo qual as alunas faltavam todo mês: a pobreza menstrual.5

De acordo com o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), mais da metade das alunas do 9º ano de diversos estados brasileiros não contam com uma das condições mínimas de acesso a água, saneamento e possibilidade de realizar higiene adequada, elementos considerados básicos para a gestão digna da menstruação.

Em termos de saúde propriamente dita, não sem esquecer como pode ser afetada a sanidade psicológica de meninas e mulheres em situação de pobreza menstrual -  a saber, a humilhação e a falta de dignidade no período de sangramento -, vale lembrar as alergias e infecções decorrentes do uso de elementos como miolo de pão e jornal, as quais, não raro eclodem infertilidade.

Além de não propor um projeto alternativo para viabilizar a execução da política pública aqui tratada, a Presidência da República ainda contou com o apoio da Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, que invocou o falso dilema de prioridades entre vacina e absorvente. Considera-se até mesmo dotado de desonestidade argumentativa o comentário, porquanto, de modo conveniente, aponta a lacuna dessa política pública nos governos anteriores, como pretexto para livrar este da obrigação, e deixa nítido o apego à disputa ideológico-partidária, ao fazer questão de dizer que o governo tem programa específico voltado para a distribuição de absorventes. Importante recordar que a autora do projeto inicial é a deputada federal Marília Arraes do Partido dos Trabalhadores.

Nesse cenário, o que se vê é mais uma medida do Executivo Federal, dessa vez em forma de veto presidencial, que atende aos anseios do seu secto. A mobilização instalada para eventual derrubada do veto já deveria ser prevista. E, à luz dos supostos tecnicismos apresentados, o Presidente da República isenta-se de responsabilidade na aprovação de uma proposta oriunda de entidade que enxerga como inimiga, e não democraticamente como mera adversária política, e ganha prestígio perante o seu reduzido, mas ruidoso eleitorado.

_____________

1 Sobre a referida normalização: clique aqui. Acesso em 9 out. 2021.

2 QUEIROZ, NANA. Presos que menstruam. 13ª ed. Rio de Janeiro: Editora: Record, 2020. 

3 BUCCI, M. P. D.  O conceito de política pública em direito. In: BUCCI, M. P. D (org.). Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 17-18.

4 Sobre relação de insumos Rename 2020: clique aqui, p. 56-57.

5 Sobre a referida matéria: clique aqui. Acesso em 9 out. 2021.

Izabela Padilha Santos
Mestranda do Programa de Mestrado Profissional em Direito, Regulação e Políticas Públicas da Universidade de Brasília.

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