Migalhas de Peso

Prescrição de reparação de danos em ações de cultivares

Lamentavelmente para os obtentores de cultivares, o recurso especial não chegou a discutir abertamente se a legislação supletiva da lei de Proteção de Cultivares seria o Código Civil ou a lei da Propriedade Industrial, mas sim, apenas, qual dispositivo do Código Civil seria aplicável ao caso.

21/10/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Devido ao avanço biotecnológico, em especial para suprir a demanda de consumo de alimentos mundial, verificou-se a necessidade da proteção dos direitos de propriedade intelectual decorrentes da inovação produzida nesse segmento, em especial ao desenvolvimento de novas variedades de plantas, também conhecida como cultivares.

Em decorrência do interesse de se tornar membro da Organização Mundial do Comércio (OMC), o Brasil ratificou o Acordo Constitutivo da referida organização, do qual faz parte o “Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights” (TRIPs), através do decreto 1.355/94, que entrou em vigor no dia 1º de janeiro de 1995.

O TRIPs é um tratado internacional que estabelece padrões e princípios adequados relativos à existência, abrangência e exercício de direitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio, dentre os quais encontra-se a proteção dos direitos relativos às cultivares (Artigo 27 da lei de Proteção de Cultivares).

Em razão de a lei da Propriedade Industrial (LPI – lei 9.279/96) estabelecer que as variedades vegetais “per se” não são passíveis de proteção por patentes, o Brasil promulgou a primeira legislação que garantiu os direitos dos obtentores de variedades vegetais, através da lei 9.456/1997 (lei de Proteção de Cultivares – LPC), regulamentada pelo decreto 2.366/97 (Regulamento de Proteção de Cultivares – RPC), exigência prévia para a entrada do país na Convenção da União Internacional para a Proteção de Obtenções Vegetais (UPOV).

Ao aderir à UPOV, o governo brasileiro buscava obter a garantia de que os direitos dos obtentores de novas cultivares fossem respeitados pelos demais países que tenham aderido ao acordo, pelo fato de o Brasil se destacar no cenário agrícola internacional por ser um dos maiores produtores e exportadores de grãos do mundo. Tanto que o Brasil é atualmente o 11º país com maior número de cultivares depositadas no mundo, segundo o site Statista (2019).

De acordo com a lei de Proteção de Cultivares, o titular do certificado de proteção de cultivar não só possui direitos positivos (como os de vender, oferecer à venda, reproduzir, importar etc.), como também o direito negativo de excluir terceiros da produção com fins comerciais, bem como do oferecimento à venda ou comercialização efetiva da cultivar protegida (art. 9).

Ainda, a LPC estabelece as seguintes hipóteses de exceção do direito de propriedade sobre a cultivar: i) o agricultor pode reservar e plantar sementes para uso próprio, desde que seja em sua propriedade ou de local que detenha posse; ii) o agricultor pode usar ou vender como alimento ou matéria-prima o produto obtido do seu plantio, exceto para fins reprodutivos; iii) a utilização da cultivar como fonte de variação no melhoramento genético ou na pesquisa científica; iv) o pequeno agricultor pode multiplicar sementes para doação ou troca, desde que seja para ser negociado entre outros pequenos produtores rurais, no âmbito de programas de financiamento ou de apoio a pequenos produtores rurais, conduzidos por órgãos públicos ou organizações não-governamentais, autorizados pelo Poder Público (art. 10).

Portanto, terceiros não autorizados estão sujeitos ao pagamento de indenização e de multa equivalente a 20% do valor comercial do material apreendido, além de estarem sujeitos a outras sanções de caráter civil e penal (art. 37). Entretanto, diferentemente da lei da Propriedade Industrial, o Regulamento de Proteção de Cultivares deixou de estabelecer critérios claros e objetivos para a indenização em casos de violação de cultivar, apesar da previsão na lei de Proteção de Cultivares.

O artigo 37 da lei de Proteção de Cultivares, repetido no artigo 33 do decreto 2.366/97, prevê apenas a aplicação de uma multa de 20% (vinte por cento) sobre o valor das unidades vegetais apreendidas, sem, contudo, determinar os parâmetros de indenização pelas perdas e danos em ressarcimento de prejuízos causados por atos de violação da cultivar.

Sobre os diplomas acima citados, o saudoso professor Denis Barbosa afirma que a lei, na realidade, prevê uma remuneração ao obtentor e não um parâmetro para indenização. Dessa forma, ante à lacuna na referida legislação, o doutrinador entende que devem ser aplicados os critérios estabelecidos na lei da Propriedade Industrial, a saber:

“A legislação de cultivares (lei 9.456, de 1997) é ainda mais imperfeita neste contexto:

Art. 37. Aquele que vender, oferecer à venda, reproduzir, importar, exportar, bem como embalar ou armazenar para esses fins, ou ceder a qualquer título, material de propagação de cultivar protegida, com denominação correta ou com outra, sem autorização do titular, fica obrigado a indenizá-lo, em valores a serem determinados em regulamento, além de ter o material apreendido (...)

O que já nos fez comentar:

O regulamento não determinará, certamente, a indenização; poderá, talvez, indicar certos parâmetros. Mas ainda assim, por adentrar em matéria cível ou de processo, nem mesmo isto fará, ou, fazendo-o, estará sujeito à óbvia comparação com os parâmetros de constitucionalidade.

O regulamento, Decreto No 2. 366, de 5 de Novembro de 1997, parece apontar para uma remuneração e não uma indenização:

Art. 33. Para os efeitos da indenização prevista no art. 37 da lei 9.456, de 1997, a remuneração do titular será calculada com base nos preços de mercado para a espécie, praticados à época da constatação da infração, sem prejuízo dos acréscimos legais cabíveis.”1 (BARBOSA, 2003 69)

Em complemento ao seu raciocínio, o doutrinador entende que parece ser razoável aplicar os parâmetros previstos no art. 210 da LPI para evitar o enriquecimento sem causa, seja do obtentor, seja do infrator.

Tal método trinitário estabelece uma regra de indenização compreendendo tanto o danum emergens (as perdas sofridas) quanto o damnum cessans (inciso I), um critério de enriquecimento sem causa – enriquecimento positivo ou negativo (o item II) e o critério suplementar de um hipotético ganho resultante do jus fruendi.

[...]

Assim, salvo disposição especial (e o art. 210 da lei 9.279/96 o é) são esses os limites e diretrizes para a recomposição patrimonial do ato ilícito. Antes de tudo, há que se distinguir entre os danos emergentes e os lucros cessantes. Esses, sempre razoáveis. A violação pode causar lesão imediata, com perda patrimonial instantânea. A doutrina e a jurisprudência apontam como exemplos dessa natureza os custos pata determinar qual o violador e o alcance da violação, os gastos de publicidade para informar o público da existência da violação e os cuidados para evitá-la, e a respectiva informação direta à clientela habitual.” (BARBOSA, WACHOWICZ, 2016, p. 71).

Outro problema enfrentado pelos obtentores é ausência de previsão legal quanto ao prazo prescricional para a reparação de danos pelo uso indevido de cultivares, acarretando uma discussão se o prazo seria de três anos (pelo artigo 206, §3º, inciso V do Código Civil), de cinco anos (por regência supletiva do artigo 225 da lei da Propriedade Industrial) ou 10 anos (prazo prescricional comum quando ausente a previsão legal expressa, conforme definido pelo artigo 205 do Código Civil), a saber:

Código Civil

Art. 205. A prescrição ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor.

Art. 206. Prescreve:

[...]

§ 3 o Em três anos:

[...]

V - a pretensão de reparação civil;

[...]

Lei da Propriedade Industrial

Art. 225. Prescreve em 5 (cinco) anos a ação para reparação de dano causado ao direito de propriedade industrial

Decisão recente do Superior Tribunal de Justiça, porém, parece ter lançado alguma luz sobre essa matéria, na medida em que estabeleceu a premissa de que a regência suplementar da lei de Proteção de Cultivares é o Código Civil (RESP 1.837.219 – SP).

No julgamento do referido recurso, o STJ afastou a aplicação do prazo decenal previsto no artigo 205, em razão de seu cabimento ser possível apenas na hipótese de o Código Civil não prever uma disciplina específica. Ainda, definiu que o prazo prescricional seria quinquenal no caso de cobrança de royalties supostamente devidos a título de contrato de licença, conforme previsto no artigo 206, parágrafo 5º, I, do Código Civil, em razão da possibilidade de se apurar o valor devido através de cálculos aritméticos. Em outras palavras, o STJ entendeu que se trata de dívida líquida constante de instrumento contratual, apesar de sua apuração ocorrer apenas em fase de liquidação de sentença.

Ainda que o caso versasse sobre pagamento de royalties e não de indenização por dano extracontratual, o ponto de interesse é que o STJ determinou a aplicação supletiva do Código Civil ao caso.

Lamentavelmente para os obtentores de cultivares, o recurso especial não chegou a discutir abertamente se a legislação supletiva da lei de Proteção de Cultivares seria o Código Civil ou a lei da Propriedade Industrial, mas sim, apenas, qual dispositivo do Código Civil seria aplicável ao caso. Dessa forma, a aplicação do Código Civil se deu de forma não dialética à LPI, até mesmo porque esta não regula expressamente prazos prescricionais para cobrança de royalties contratualmente estabelecidos.

Não obstante não ter resolvido a questão, trata-se de importante precedente pois, até onde foi nossa pesquisa, esta é a primeira vez que o STJ define a suplência de um ponto da lei de Proteção a Cultivares.

Caso o STJ venha a manter esse entendimento numa discussão específica de reparação civil por danos extracontratuais, o limite prescricional em uma ação de reparação de danos decorrente de infração de cultivares seria de três anos, conforme dispõe o art. 206, parágrafo 3º, inciso V do Código Civil e não de cinco anos, como disposto pelo artigo 225 da LPI.

De toda sorte, por se tratar de uma violação contínua, não há espaço para dúvida razoável de que o termo a quo nasce a cada dia em que o direito é violado e, por conseguinte, a prescrição passa a ser contada do último ato de infração, disciplina geral aplicável à infração de qualquer direito de propriedade intelectual.

________

BARBOSA, Denis B.; Wachowicz, Marcos (org). Propriedade intelectual: desenvolvimento na agricultura. Curitiba: GEDAI/UFPR, 2016.

BARBOSA, Denis B. Uma introdução à propriedade intelectual. Imprenta: Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2003.  .

BRASIL. Lei n.10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, 11 jan. 2002, Seção 1. Disponível aqui. Acesso em: 22 set. 2021.

Decreto n. 2.366 de 5 de novembro de 1997. Serviço Nacional de Proteção de Cultivares–SNPC. Diário Oficial da União, Brasília, 6 nov. 1997, Seção 1. Disponível aqui. Acesso em: 22 set. 2021.

Lei n. 1355, 31 de dezembro de 1994. Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio. Diário Oficial da União, Brasília, 31 dez. 1994, Seção 1. Disponível aqui. Acesso em: 22 set. 2021.

Lei n. 9.456, 25 de abril de 1997. Lei de Proteção de Cultivares. Diário Oficial da União, Brasília, 26 ago. 1997, Seção 1. Disponível aqui. Acesso em: 22 set. 2021.

Statista. Ranking of the 20 intellectual property offices with the most plant variety applications in 2019 Disponível aqui. Acesso em 22 set. 21.

Superior Tribunal de Justiça. Tutela Provisória no Recurso Especial n. 1.837.219 – SP.- São Paulo. Cuida-se de pedido tutela provisória requerido por COOPERATIVA DE PRODUTORES DE CANA-DE-AÇÚCAR E ÁLCOOL DO ESTADO DE SÃO PAULO, com fundamento no art. 1.029, § 5º, do Código de Processo Civil de 2015, visando agregar efeito suspensivo a recurso especial interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, assim ementado: "AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE COBRANÇA. Royalties devidos em razão da multiplicação e utilização de cultivares. Prazo prescricional quinquenal para o exercício da pretensão de cobrança. Art. 206, § 5º, I, do CC. Aferição do valor devido que depende de mera operação aritmética e não afasta, portanto, a liquidez do débito. A controvérsia acerca do direito ao recebimento não se confunde com o tardio exercício da pretensão de cobrança. DECISÃO MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO" (fl. 47, e-STJ). A requerente sustenta que a definição do período de prescrição irá interferir diretamente na fixação do valor devido em caso de procedência da ação, que já está em etapa de encerramento da fase instrutória. Defende que a prolação da sentença em momento anterior ao julgamento do recurso especial acarretará tumulto processual e lhe imporá prejuízos. Afirma que a plausibilidade do recurso ficou demonstrada com a decisão que determinou a sua reautuação como recurso especial. Requer que seja concedido efeito suspensivo ao recurso especial. É o relatório. DECIDO. Consoante o disposto no art. 1.029, § 5º, II, do CPC, "o pedido de concessão de efeito suspensivo a recurso extraordinário ou a recurso especial poderá ser formulado por requerimento dirigido ao relator, se já distribuído o recurso". Assim, a via processual se mostra adequada ao pedido. A concessão de efeito suspensivo a recurso especial depende da demonstração da presença concomitante do periculum in mora e do fumus boni juris, conforme decidido nos seguintes julgados: A propósito: "AGRAVO INTERNO NO PEDIDO DE TUTELA PROVISÓRIA. PEDIDO DE SUSPENSÃO DE PROCESSO TRABALHISTA. MATÉRIA DE ORDEM PÚBLICA.
PREQUESTIONAMENTO. NECESSIDADE. VIA INSTRUMENTAL NÃO ADEQUADA. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DOS REQUISITOS AUTORIZADORES. 1. Consoante a remansosa jurisprudência desta Corte Superior, na instância especial, ainda que se trate de matéria de ordem pública, sua análise não dispensa o prequestionamento. 2. Não há como se afastar o requisito do necessário exaurimento das instâncias ordinárias a respeito da controvérsia instaurada nos autos. 3. O instrumento processual adequado para a discussão acerca da competência da Justiça do Trabalho para o conhecimento e julgamento de ação de prestação de contas é o conflito de competência. 4. A tutela provisória é cabível apenas em situações excepcionais para atribuir efeito suspensivo ou para antecipar a tutela em recursos ou ações originárias. 5. Para a concessão de tutela de urgência, faz-se necessária a presença concomitante dos requisitos do fumus boni iuris e periculum in mora. 6. No caso concreto, não demonstrou o requerente a existência de um dos requisitos autorizadores do excepcional provimento acautelatório almejado. 7. Não apresentação pela parte agravante de argumentos novos capazes de infirmar os fundamentos que alicerçaram a decisão agravada. 8. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO." (AgInt no TP 1.110/RO, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 15/3/2018, DJe 2/4/2018 - grifou-se) "AGRAVO INTERNO EM PEDIDO DE TUTELA DE URGÊNCIA. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PEDIDO DE CONCESSÃO DE EFEITO SUSPENSIVO AO APELO EXTREMO. COBRANÇA DE TAXAS CONDOMINIAIS. PENHORA BEM DE FAMÍLIA. 1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça somente tem admitido excepcionalmente a atribuição de efeito suspensivo a recurso. Todavia, é necessária a presença concomitante dos pressupostos que lhe são inerentes, quais sejam, fumus boni iuris e periculum in mora, o que não é o caso dos autos. 2. O apelo extraordinário objetiva discutir questão atinente à impossibilidade de penhora de bem de família. Essa questão nem sequer foi analisada nas instâncias anteriores, tampouco no acórdão do recurso especial. Na ausência de prequestionamento, não há, em princípio, como admitir-se o recurso. 3. Em relação à alegada violação dos arts. 5º, XXXV, II, LIV e LV, e 93, IX, da Constituição da República, o recurso também não comportaria seguimento, pois o acórdão objeto do extraordinário apresenta fundamentação suficiente para justificar o não provimento do agravo interno. 4. Inexiste comprovação do periculum in mora, porquanto baseado em mera alegação de receio de dano irreparável ou de difícil reparação, que, isoladamente, não é suficiente para a concessão da tutela cautelar. Agravo interno improvido." (AgInt na TutPrv nos EDcl no AgInt no AREsp 798.888/PR, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, CORTE ESPECIAL, julgado em 1/2/2018, DJe 9/2/2018) Os pressupostos para atribuição de efeito suspensivo ao recurso não estão demonstrados. Com efeito, a decisão que dá provimento ao agravo, determinando sua reautuação como recurso especial, não indica que o recurso merece provimento mas, sim, que demanda melhor exame. Além disso, apesar de a requerente alegar que a decisão atacada, relativa à fixação do prazo prescricional de 5 (cinco) anos para regular a pretensão, pode lhe causar dano irreparável, não esclarece em que consistiria o dano. Ante o exposto, com fundamento no art. 1.029, § 5º, I, do CPC, indefiro o pedido de tutela provisória.
Publique-se.Intimem-se. Relator Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 14 de outubro de 2019. Disponível aqui. Acesso em 22 set. 21

Eriça Tomimaru
Advogada e pós-graduada em Propriedade Intelectual.

Felipe Barros Oquendo
Atua no contencioso e consultivo referente à Propriedade Intelectual e Concorrência Desleal, bem como em Direito Desportivo e do Entretenimento.

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