1 Introdução
A pPrefeitura de São Paulo vem inovando a legislação do ISS no que tange à tributação por alíquota fixa a que se referem os §§1º e 3º do art. 9º do DL 406/68:
“§ 1º Quando se tratar de prestação de serviços sob a forma de trabalho pessoal do próprio contribuinte, o imposto será calculado, por meio de alíquotas fixas ou variáveis, em função da natureza do serviço ou de outros fatores pertinentes, nestes não compreendida a importância paga a título de remuneração do próprio trabalho.”
“§ 3° Quando os serviços a que se referem os itens 1, 4, 8, 25, 52, 88, 89, 90, 91 e 92 da lista anexa forem prestados por sociedades, estas ficarão sujeitas ao imposto na forma do § 1°, calculado em relação a cada profissional habilitado, sócio, empregado ou não, que preste serviços em nome da sociedade, embora assumindo responsabilidade pessoal, nos termos da lei aplicável.”
Os itens de serviços mencionados no § 3º retrotranscrito se referem às atividades de profissionais legalmente regulamentadas (advogado, médico, engenheiro, economista etc.)
2 Recepção do regime de tributação fixa
Embora não reproduzidas as regras dos §§ 1º e 3º, do art. 9º do DL 406/68 na lei complementar 116/03, não resta dúvida quanto à sua vigência em face da decisão do STF sob a sistemática de repercussão geral, que reconheceu a vigência da tributação especial dos profissionais legalmente regulamentados (RE 940.769, Rel. Min. Edson Fachin, DJe de 12-9-209). A Súmula 663 do STF, também, reconheceu a recepção dos citados parágrafos.
Não se trata de privilégios outorgados aos profissionais liberais. O legislador nacional reconheceu o escopo político-social relevante ao dispensar tratamento tributário diferenciado aos exercentes de profissões legalmente regulamentadas.
Daí o efeito vinculante das normas do DL 406/68 que têm força de lei complementar, aplicável em âmbito nacional, descabendo à legislação local dispor em sentido contrário.
3 A política de gradativas restrições ao uso do regime especial de tributação
Desobedecendo a norma geral da União (art. 9º, §§ 1º e 3º do DL 406/68) o Município de São Paulo vem impondo restrições cada vez maiores a esse regime de tributação especial.
Assim é que no primeiro momento criou um obstáculo exigindo profissionais do mesmo ramo científico para constituição de uma sociedade de prestação de serviços, batizando-a de sociedade uniprofissional, conhecida pela sigla SUP. Esse mau exemplo espalhou-se rapidamente por todos os municípios brasileiros.
Essa exigência de distinguir onde a lei não faz distinção contraria frontalmente a jurisprudência do STF, formada antes da criação do STJ pela Constituição de 1988 (RREE 81.193, 88.532, 91.311 e 96.475).
Recentemente, o STJ, após anos de submissão à orientação das Prefeituras, passou a observar a jurisprudência então vigente no STF, exigindo como condição para a tributação pelo regime especial apenas a prestação do serviço em caráter pessoal e sem que se caracterize como sociedade empresária.
Como dissemos, a Prefeitura de São Paulo vem estabelecendo gradualmente as restrições contra esse regime especial.
Primeiramente, o § 2º, do art. 15 da lei 13.701/03 excluiu o regime especial de tributação - SUP - as sociedades que:
“I - tenham como sócio pessoa jurídica;
II - sejam sócias de outra sociedade;
III - desenvolvam atividade diversa daquela a que estejam habilitados profissionalmente os sócios;
IV - tenham sócio que delas participe tão-somente para aportar capital ou administrar;
V - explorem mais de uma atividade de prestação de serviços;
VI - terceirizem ou repassem a terceiros os serviços relacionados à atividade da sociedade;
VII - se caracterizem como empresários ou cuja atividade constitua elemento de empresa;
VIII - sejam filiais, sucursais, agencias, escritórios de representação ou contrato, ou qualquer outro estabelecimento descentralizado ou relacionado a sociedade sediada no exterior”.
Não bastasse a restrição legal, que não se harmoniza com as normas gerais do art. 9º, §§ 1º e 3º do DL 406/68, o fisco paulistano, mediante interpretação distorcida da própria legislação municipal, vem procedendo ao desenquadramento das SUPs.
Realmente, com base no inciso III, do § 2º, do art. 15 retrotranscrito vem vedando, não apenas as sociedades pluriprofissionais, como também, a presença de profissionais de especialidades diferentes, porém, pertencentes ao mesmo ramo científico. Veda-se, por exemplo, a sociedade formada por um engenheiro eletricista e um engenheiro civil. Contraditoriamente, nunca se opôs à sociedade de advogados formada por um criminalista e outro tributarista, nem com a sociedade de médicos contemplando um médico cardiologista e um médico endocrinologista, por exemplo.
O inciso IV vem sofrendo, igualmente, interpretação distorcida vedando que o sócio da SUP integre outra sociedade, quando a vedação legal está dirigida à sociedade e não ao sócio.
O inciso VII, também, está sendo mal interpretado para enxergar sociedade empresária pela simples existência da palavra “Ltda” nos atos constitutivos da sociedade, ou pelo fato de o contrato social ter sido arquivado na Junta Comercial, com total abstração das atividades realmente desenvolvidas pelos sócios, que prestam serviços de natureza pessoal assumindo responsabilidade pessoal pelos serviços prestados, independentemente do que disponham formalmente o contrato social.
Por fim, a vedação do inciso VIII, igualmente, vem merecendo uma interpretação in abstrato. Basta o contrato social consignar, inadvertidamente, referência à abertura de filial, agência ou sucursal para o fisco municipal imediatamente proceder ao desenquadramento da SUP com efeito retroativo. Sequer interessa ao fisco saber se a sociedade procedeu ou não a abertura de filial, agência ou sucursal. Disposições do contrato social passaram a ser considerados como fatos geradores do ISS.
4 Do abusivo efeito retroativo conferido ao ato de desenquadramento
Esse efeito retroativo, por si só, é indicativo de que o fisco municipal vem procedendo de forma gradual às proibições voltadas para o regime da SUP. O que antes era tolerado, com o passar do tempo, passa a ser vedado, embora, inalterável a legislação a respeito. Em outras palavras, quando o Judiciário afasta uma restrição, ato contínuo o fisco municipal cria outra diferente.
Trata-se de um comportamento ilegal e abusivo do fisco, passível de punição penal na forma do art. 316, § 1º do Código Penal (crime de excesso de execução fiscal).
Muitos textos e pareceres já foram por nós escritos e exarados sobre a matéria.
5 O propósito deste artigo
O propósito deste artigo é abordar uma questão prática submetida à nossa apreciação, com vistas a uma possível contratação de nossos serviços profissionais.
O consulente que faz parte de uma sociedade de odontólogos – SUP – desde os idos de 1982, teve a sua SUP desenquadrada desse regime especial de tributação com efeito retroativo a cinco anos (respeitando-se o período sob o efeito da decadência) porque:
a) o contrato social continha a palavra “Ltda”;
b) o contrato social previa a faculdade de abrir filiais;
c) um dos sócios era sócio também de uma outra sociedade.
Conforme expôs o consulente, esses elementos constavam do contrato social desde o dia em que foi feita a inscrição no Cadastro Mobiliário da Prefeitura, sem que o fisco jamais tivesse colocado qualquer objeção ao regime especial de tributação.
Tanto assim é que a própria Prefeitura vinha procedendo ao lançamento direto do ISS, com base no contrato social, enviando as respectivas notificações para pagamento por valor fixo durante seguidos anos, até que o lançamento direto do ISS foi convolado no regime de lançamento por homologação.
Para surpresa do consulente, em 2020, foi a sociedade desenquadrada da SUP lavrando-se o auto de infração no valor de R$ 290.000,00 com efeito retroativo a 5 anos, ou seja, desde 2015.
A impugnação administrativa não foi conhecida sob o fundamento de sua intempestividade. Foi então aparelhada ação ordinária de anulação do auto de infração em que se logrou a obtenção de liminar, para suspender a exigibilidade do crédito tributário. Contudo, essa liminar veio a ser revogada posteriormente em sede de agravo impetrado pela Prefeitura.
Assim, em janeiro de 2021, o consulente ingressou na PPI da Prefeitura sendo o seu débito reduzido para R$ 140.000,00 a ser pago em dez anos. No mesmo ato o consulente requereu desistência da ação judicial, ainda pendente de homologação.
Por entender injusta a atuação, o consulente pede a nossa opinião, bem como consulta quanto à probabilidade de êxito de uma nova ação judicial contra o fisco.
Na verdade, há boas razões jurídicas para a procedência de uma nova ação anulatória do lançamento, não para questionar o desenquadramento em si, mas, a retroação desse ato de desenquadramento, pelas razões adiante apresentadas.
Cumpre esclarecer de início que a confissão “irretratável” do débito para efeito de parcelamento não impede a ação anulatória em função do princípio da legalidade. O imposto nasce da lei e não da confissão. Pagamento de imposto indevido poderá sempre ser repetido.
Esse lançamento retroativo, na verdade, representa mera revisão do lançamento feito, motivado pelo conhecimento de um fato novo que à época do seu lançamento original não era do conhecimento do fisco, embora existente.
É o que dispõe o art. 149 do CTN:
“Art. 149. O lançamento é efetuado e revisto de ofício pela autoridade administrativa nos seguintes casos:
I - quando a lei assim o determine;
....
VIII - quando deva ser apreciado fato não conhecido ou não provado por ocasião do lançamento anterior”.
No caso consultado, o fisco sabia das cláusulas contratuais, ora impugnadas, desde o início da inscrição cadastral, tanto é que vinha procedendo ao lançamento de ofício pelo valor fixo, enquanto vigente o regime de lançamento de ofício do ISS.
Logo, o desenquadramento levado a efeito só pode ter sido fruto de alteração dos critérios jurídicos adotados pelo fisco no exercício do lançamento, hipótese em que só poderá ser efetivado o lançamento com base no novo critério quanto ao fato gerador ocorrido após à alteração introduzida.
É o que estabelece o art. 146 do CTN com lapidar clareza:
“Art. 146. A modificação introduzida, de ofício ou em conseqüência de decisão administrativa ou judicial, nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa no exercício do lançamento somente pode ser efetivada, em relação a um mesmo sujeito passivo, quanto a fato gerador ocorrido posteriormente à sua introdução.”
É uma decorrência natural do princípio da legalidade tributária. A alteração do critério jurídico adotado no ato do lançamento tributário surte o mesmo efeito de uma alteração legislativa, que não pode retroagir.
O direito do consulente de ver cancelado o débito retroativo é cristalino.
O grande problema é o seu efeito prático.
Para aparelhar a nova ação judicial o consulente deve arcar com a verba honorária e custas (já pagas) da ação, por desistência unilateral. Calcula-se a incumbência em torno de R$ 29.000,00.
Deve arcar, ainda, com as custas iniciais da nova ação calculadas sobre o valor atualizado do débito que é de R$ 300.000,00, o que representa um dispêndio inicial de R$ 3.000,00. Na eventualidade de apelação seriam mais R$ 12.000,00.
Some-se a isso o mínimo de verba honorária que teríamos que cobrar inicialmente no importe de R$ 15.000,00 e outro tanto no curso da ação ou ao final.
Assim, o cliente teria que despender o mínimo de R$ 74.000,00 em um cenário de vitória em 2ª instância (29.000 de sucumbência da primeira ação + 3.000,00 de custas iniciais da 2ª ação + 12.000,00 de custas de apelação + 30.000,00 de honorários advocatícios da nova ação).
Portanto, mesmo na hipótese de vitória a vantagem seria de apenas R$ 66.000,00 em relação ao valor do débito sob PPI para pagamento em dez anos.
Há, ainda, possibilidade de o cliente vir a perder a demanda em definitivo, arcando com as custas e novos honorários sucumbenciais, por conta da jurisprudência não uniforme do TJSP no que se refere à retroação no caso de desenquadramento. O resultado fica na dependência da Câmara julgadora para a qual for distribuída a apelação. É um verdadeiro jogo de loteria.
Sopesados todos esses elementos e considerando a inconveniência administrativa por conta de sanções políticas aplicadas indevidamente a devedores de tributos, aconselhamos o consulente permanecer no regime de parcelamento para a sua tranquilidade.
Pesou nessa orientação o fato de um dos sócios ser uma pessoa de idade avançada.
Muitas vezes, uma vitória alcançada à custa de enormes desgastes mentais por conta de manobras ilícitas do fisco não vale a pena. Às vezes é preferível pagar o indevido e ter um sono tranquilo, a não ser nas hipóteses em que o contribuinte estiver obstinado a perseguir a justiça a todo custo, mesmo gastando mais do que o valor do tributo indevidamente exigido.
6 Conclusão
O comportamento ilegal, abusivo e imoral da Prefeitura é baseado exatamente na probabilidade de o contribuinte abrir mão da discussão judicial quer em função de sua morosidade, quer em função de decisões díspares. A Prefeitura segue o brocardo: tudo que cai na rede é peixe!
E a Prefeitura de São Paulo sabe disso. Por isso, ela vem promovendo, por exemplo, a cobrança do ITBI com base no valor de referência declarado inconstitucional pelo Órgão Especial do TJSP. É que ela sabe que contratar um advogado para impugnar a essa cobrança indevida sairia bem mais caro do que o valor do imposto a pagar.
Infelizmente, é um mal que o contribuinte de um Estado fiscalista, que não respeita nenhum dos direitos fundamentais proclamados no art. 5º da Constituição, deve suportar.
Os agentes do fisco confundem o interesse privado do poder público com o interesse público do poder público que não abriga a realização de receitas contra os preceitos legais e constitucionais, pelo contrário, exige a estrita observância de preceitos normativos do ponto de vista substancial e instrumental na realização da receita tributária.