Um novo e necessário olhar sobre o Direito do Consumidor. Calcado nessa realidade, no último dia 27 de agosto, foi aprovado, na II Jornada de Prevenção e de Solução Extrajudicial de Litígios, promovido pelo Conselho da Justiça Federal (CJF), o enunciado 103 que trata sobre arbitragem online em conflitos de consumo.
Enunciado 103 - É admissível a implementação da arbitragem on-line na resolução dos conflitos de consumo, respeitada a vontade do consumidor e observada sua vulnerabilidade e compreensão dos termos do procedimento, como forma de promoção de acesso à justiça.
O enunciado referendado teve a concordância de 87% dos votantes na Comissão de Arbitragem e, na Plenária Final, atingiu o quórum mínimo de 2/3 necessário, sendo aprovado pelo percentual de 71%. Ratifica-se, portanto, a plena compatibilidade do Código de Defesa do Consumidor com a instauração do juízo arbitral1, integrando os princípios atinentes à Política Nacional das Relações de Consumo delineados no artigo 4º do Estatuto Consumerista, ao promover o incentivo à criação de mecanismos alternativos de solução de conflitos de consumo (inciso V, parte final).
Diferentemente do que muito se pensa sobre o tema, a arbitragem online em conflitos de consumo tem como função elementar o fomento do acesso à Justiça do consumidor brasileiro, como historicamente o é na robusta e exitosa2 experiência portuguesa3 em seus Centros de Arbitragem em conflitos de consumo.
No Brasil, o consumidor dispõe de alguns meios para resolução de um conflito com o fornecedor, na via administrativa ou na via judicial. A solução administrativa – por meio de entes como o PROCON ou Plataformas governamentais como o Consumidor gov4 – destaca-se no cenário internacional e deve ser valorizada por sua eficiência. Ocorre que, inexistindo composição, o consumidor precisará transpor as vias administrativas, ocasião em que poderá optar pela Justiça comum ou pelos Juizados Especiais.
No entanto, a depender da localidade de sua residência e da proximidade do foro, terá que arcar com os custos de deslocamento e tempo. Uma demanda simples, da qual se obtém baixo valor econômico5 em benefício do consumidor, poderia sair mais cara pela necessidade de locomoção e perda de dias de trabalho. Não raro, essa conta levará o consumidor a desistir de reparar a lesão a qualquer de seus direitos, deixando de exercer plenamente sua cidadania.
Além disso, há de se ter em conta o caráter continental do Brasil, em que a realidade daqueles que residem no interior difere daqueles alocados em cidades de maior porte. Na prática, há cidades que não possuem qualquer órgão administrativo de defesa do consumidor, o que dificulta a resolução de eventual problema de consumo.
Para esses casos, existe a Plataforma Consumidor.gov, instrumento público importante para resolução dos conflitos que têm como finalidade realizar o approach nas negociações entre o consumidor e o fornecedor, sendo um instrumento intermediador nos conflitos na relação de consumo.
Contudo, é necessário avançar mais. Os consumidores que não conseguem a solução de seu problema na plataforma se veem sob duas alternativas6: a) relegar sua insatisfação a um segundo plano e ficar inerte ou b) buscar a resolução do conflito por meio do Poder Judiciário.
Bom que se mencione que boa parte das vezes são demandas de pouca complexidade, com matéria probatória meramente documental e que, facilmente, poderiam ser resolvidas através da arbitragem online.
Assim, o entendimento adotado pela II Jornada de Prevenção e de Solução Extrajudicial de Litígios tem como premissas a celeridade, expertise do julgador, comodidade ao consumidor e a efetiva justiça.
Aliás, na visão de Cappelletti7, uma ordem jurídica justa passa por 3 etapas de solução: a) assistência judiciária; b) novos modelos de tutelar os interesse difusos e coletivos, especialmente no âmbito do consumidor e na esfera ambiental; c) denominada de enfoque à justiça, essa terceira etapa engloba as demais e visa fundamentalmente aprofundar as formas de transpor os obstáculos ao acesso à justiça, de forma mais articulada, notadamente através dos meios alternativos (leia-se adequados) de resolução de litígio, fundado nos diversos instrumentos processuais. Em suma: o acesso à justiça passa, necessariamente, por caminhos concretos para que o cidadão atinja o seu objetivo de solucionar seu conflito.
A arbitragem online de consumo não será e sequer tem a pretensão de ser a solução mágica para todos os conflitos de consumo. Pelo contrário, não custa lembrar o caráter residual da arbitragem em sede de mecanismos adequados de resolução de litígio, ou seja, tenta-se inicialmente a negociação, conciliação ou mediação; não logrando êxito, o consumidor terá a possibilidade de resolver seu conflito através da arbitragem.
Não se descura que a proteção do consumidor deve ser resguardada, como pontua o enunciado ao delinear que deve ser respeitada a vontade do consumidor e observada sua vulnerabilidade e compreensão dos termos do procedimento.
Inclusive, houve debate durante a sessão plenária da Jornada para substituir a palavra “vulnerabilidade” por “hipossuficiência” no texto do Enunciado 103. Como se sabe, prevaleceu a opção pela “vulnerabilidade”, que abrange a técnica, a fática, a jurídica e a informacional e termina, então, por proteger mais o consumidor que opta pela arbitragem online ao que faria o vocábulo “hipossuficiência”.
Em se tratando da vulnerabilidade informacional e sua assimetria8, ela será combatida com todos os esclarecimentos necessários promovidos pelo árbitro antes de iniciar o procedimento (deveres passivos de esclarecimento), bem como através de folhetos informativos e perguntas e respostas nos sites do Centros de Arbitragem, sejam eles públicos ou privados, independentemente de o consumidor as solicitar (deveres ativos de esclarecimento). A informação é a medida da compreensão e, portanto, é requisito sine qua non para o correto procedimento.
Ainda sobre esse ponto, deve se ter em conta que a arbitragem online em conflitos de consumo funcionará por videoconferência, em que as partes e eventualmente as testemunhas irão acessar um hiperlink fornecido pelos Centros de Arbitragem. A gravação da audiência será requisito imprescindível, seja para resguardar eventual ação anulatória por parte do consumidor, ou até mesmo para confirmar que não houve qualquer digressão à norma pelo fornecedor, permitindo ainda que o árbitro possa assisti-la a posteriori, quantas vezes entender necessário para o efetivo julgamento.
Em síntese: na sociedade de informação, em que o tempo é protagonismo nas relações de consumo, a arbitragem online em conflitos de consumo é mais um caminho para a incansável busca pelo acesso à justiça em plenitude, respeitando sempre a tutela do consumidor.
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1 Referida ideia já é defendida há algum tempo, confira: CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo. São Paulo: Atlas, 2009.p. 52 e ss.
2 A professora Paula Costa e Silva compreende que “a relação de alternatividade inverte-se em sua forma: é o sistema judicial que funciona como meio alternativo, de existência necessária, relativamente à arbitragem”. Confira: SILVA, Paula Costa e. De Minimis Non Curat Praetor - O acesso ao sistema judicial e os meios alternativos de resolução de controvérsias: alternatividade efectiva e complementariedade. In: CUNHA, Paulo de Pitta e; MIRANDA, Jorge (Orgs.). Estudos em homenagem ao professor doutor Paulo de Pitta e Cunha, Almedina, 2010, p. 300 e 301. Nesse sentido, a Professora Teresa Moreira explica que a resolução alternativa de litígios de consumo em linha, através da Plataforma RLL representou um marco na política europeia de defesa do consumidor consubstanciado num enquadramento jurídico harmonizado do acesso a uma justiça simples e fácil. Confira: MOREIRA, Teresa. Novos Desafios para a Contratação à Distância a Pespectiva da Defesa do Consumidor. Estudos do Direito do Consumidor. n. 9. 2015. p.19–36
3 O grau de satisfação das pessoas, quando utilizam esse tipo de mecanismo de resolução do litígio, atinge 82%, seja pela praticidade seja pelo custo reduzido. Sendo, por consequência, elevado o índice de reincidência no uso dessa ferramenta pelo consumidor. BARROS, João Pedro Leite. Arbitragem Online em Conflitos de Consumo. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019. p. 40 e ss. Por sua vez, a Professora Paula Costa e Silva reitera que além da celeridade, a confidencialidade do processo arbitral e a especialização técnica dos árbitros são vantagens desse mecanismo de resolução de litígio. Confira: SILVA, Paula Costa e. Os meios de impugnação de decisões proferidas em arbitragem voluntária no direito interno português, disponível em: . Acesso em 17 de agosto de 2021.
4 Disponível aqui.
5 Sobre o tema, confira : CORDEIRO, António Menezes. Arbitragem de consumo. Revista de Estudos de Direito do Consumidor, 2016, p. 70.
6 Sobre o tema, confira: BARROS, João Pedro Leite. El Arbitraje em línea em conflictos de consumo en Brasil. In Revista Internacional de Arbitragem e Conciliação. n.13. Coimbra, Almedina, 2020.p. 143 e ss.
7 Confira: CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução e Revisão Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2002, p. 34 e ss.
8 Consoante ensinamentos do Professor Federico Ferretti, a assimetria de informação faz referência aos diferentes conhecimentos ou informações que uma parte de uma transação comercial tem sobre a outra parte, isto é, uma parte possui as informações inerentes aos riscos relativos à execução do contrato quando a outra não possui tais informações. Confira: FERRETTI, Federico. EU Competition Law, the Consumer Interest and Data Protection. United Kingdom: Springer, 2014.p. 8 e ss.