Migalhas de Peso

A repersonalização do direito de família sob a ótica da jurisdição constitucional

Os aspectos relativos à ratificação da legitimidade dos direitos homoafetivos frente aos limites da interpretação constitucional ainda impostos pelo Positivismo Clássico.

7/10/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

1.  INTRODUÇÃO  

Originariamente, a ideia de família encontra-se estabelecida na necessidade humana de viver com outros da mesma espécie, e a vida em comum confirma a visão aristotélica de que o homem é, por essência, um “animal social”.1 Esse convívio entre os indivíduos se instaura, num primeiro plano, a partir de grupos menores, representativos de células de um organismo ou comunidade, que em tempos remotos eram organizados em tribos. Seus membros dividiam tarefas para a consecução de objetivos comuns, muitas vezes ligados à ideia de sobrevivência e multiplicação da espécie.

Logo, o núcleo familiar representa a célula social inicial de contato de um novo ser, a partir de onde se originava a comunidade formada pela reunião de várias dessas células. É o lugar em que primeiramente se insere um indivíduo, desde o seu nascimento até o seu desenvolvimento em vida.

Por figurar como locus comum de interseção de indivíduos, sempre se atribuiu à família, ao longo da história, funções variadas, de acordo com a evolução que sofreu ao longo dos tempos, tais como a religiosa, política, econômica e procracional. Sua estrutura, em tempos pretéritos, era essencialmente patriarcal, legitimando com plenitude a ingerência e o exercício dos poderes masculinos sobre a mulher (poder marital) e sobre os filhos (pátrio poder).2

As funções religiosa e política – antes existentes de forma mais evidente – praticamente não deixaram traços no modelo de família atual, mantendo apenas interesse histórico, na medida em que a rígida estrutura de hierarquia vertical foi substituída pela coordenação e comunhão de objetivos e de vida, fundada em interesses ligados à ideia de cooperatividade.

A realização pessoal da afetividade, no ambiente de convivência e solidariedade, é a função básica da família de nossa época atual. De fato, suas antigas funções feneceram, desapareceram ou desempenham, atualmente, papel apenas secundário. Até mesmo a função procracional – antes prevalente no seio familiar tradicional, confundindo-se, indissociavelmente, com o seu próprio conceito ou finalidade – deixou de ser seu escopo precípuo, haja vista a primazia que passou a ser atribuída ao afeto e à solidariedade.

O cerne da família atual busca sua identificação em razão da solidariedade (art. 3º, I, da Constituição)3, como um dos fundamentos da afetividade, após o individualismo triunfante dos dois últimos séculos. Não cabe, nos dias hodiernos, perquirir a natureza da família ou discriminar a moldagem biológica dos seus integrantes, mas avaliar o efetivo vínculo de afeto como elo essencial entre os indivíduos. Atualmente, a estrutura familiar encontra-se construída sobre essa viga mestra, pouco importando se os filhos são naturais, se foram concebidos em laboratório, adotados ou se os companheiros desse núcleo original são pessoas de sexos iguais ou diferentes.4

A repersonalização contemporânea das relações de família retoma o itinerário da afirmação da pessoa humana como objetivo central do direito. Essa centralidade na pessoa humana foi acentuada na modernidade desde seu início, principalmente com o iluminismo, despontando na construção dos direitos humanos fundamentais e do conceito de dignidade da pessoa humana. No mundo atual, o foco na pessoa humana é matizado com a consciência da tutela jurídica devida aos outros seres vivos (meio ambiente) e da coexistência necessária, pois a pessoa existe quando coexiste (solidariedade).

2.  O POSITIVISMO CLÁSSICO E OS LIMITES DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

A questão da legitimidade dos direitos homoafetivos vem despertando a atenção dos juristas ao longo de décadas. Embora várias teorias venham tentando resolvê-la, o debate em relação ao assunto ainda é prolífico.

Diante dos inúmeros dilemas sociais deflagrados ao longo das últimas décadas – caracterizadas por um modelo de sociedade cada vez mais contemporâneo, dinâmico e politizado –, dilemas estes muitas vezes existentes em face dos problemas havidos a partir da falta de regulamentação legislativa de demandas pontuais, a pergunta permanece, então, em aberto: afinal, o que legitima a submissão dos homens às normas jurídicas? Ou melhor, até que ponto as normas jurídicas são capazes de, impositivamente, dar a “última palavra” e de reger, por si só, em única ratio, os anseios e as necessidades mais vitais da realidade social, em especial as que relativas à tutela das uniões entre pessoas do mesmo sexo?

Segundo a corrente positivista clássica, a referência última do ordenamento jurídico deveria ser uma norma fundamental hipotética, pressuposta pelo pensamento jurídico (ficção), pela qual os homens devam se conduzir e por força da qual o homem deve ser tratado, conforme uma primeira constituição histórica, global e regularmente eficaz, na qual se basearia a validade do direito positivo.5

Tal forma de se analisar o direito – disseminada fortemente ainda no início do século XX – se justificava, segundo Hans Kelsen, em razão do desfalecimento do rigor jurídico, causado em grande parte pela propagação e crescimento da Jurisprudência dos Interesses e da Escola do Direito Livre, que favoreciam o aparecimento de argumentos psicológicos, políticos e ideológicos na interpretação do direito. Logo, o único modo de corrigir essa inevitável indeterminação do sentido do direito seria a partir de uma terapia lógica – da ordem do a priori – que garantisse que o direito se movimentasse em um terreno lógico extremamente rigoroso. Esse campo seria o lugar por excelência da Teoria do Direito ou, em termos kelsenianos, da Ciência do Direito.6

Levando-se em conta que o positivismo formal nega a lacunosidade do ordenamento jurídico, todos os problemas que não encontrarem uma solução lógica contida no sistema são comodamente afastados como “pseudoproblemas”7, acarretando assim, sobretudo na esfera constitucional, um afastamento da realidade, “um verdadeiro abismo de contradições entre o rigor dedutivista da Constituição formal e as exigências vitais e inarredáveis da Constituição real, num quadro tanto mais dramático quanto mais limitadas são as possibilidades deixadas ao intérprete constitucional”, segundo as palavras de Paulo Bonavides.8

Os insucessos resultantes dessa moldura excessivamente formal – onde o sistema constitucional, em teoria, se esvazia de sentido e conteúdo – fizeram a reflexão da doutrina se voltar para a necessidade de um novo sistema, compatível com aqueles valores materiais que reclamam uma interpretação justa da norma constitucional, cuja aplicação somente ocorre quando há problemas em busca de solução, isto é, quando necessitam ser resolvidos interpretativamente, haja vista a impossibilidade de resolução mediante os critérios predispostos no sistema normativo.

3.  A TRILHA PROPOSTA PELO PARADIGMA PÓS-POSITIVISTA: OS NOVOS VALORES QUE ORIENTAM OS ATUAIS CONTORNOS DAS RELAÇÕES FAMILIARES

As ambições metodológicas da nova direção sistemática gravitam em torno daqueles pontos em que o fracasso dos formalistas tem sido mais evidente, através dos quais se pode perceber de forma mais cristalina a incapacidade do positivismo de interpretar o sentido da norma constitucional e descobrir a contemporaneidade de sentido da Constituição.

As principais características desse novo posicionamento teórico podem ser identificadas, em suma, como a) a abertura valorativa do sistema jurídico; b) consideração de princípios e regras enquanto normas jurídicas; c) a Constituição como sendo o locus principal dos princípios; e d) o aumento da força política do Judiciário, em face da constatação de que o intérprete cria norma jurídica.

O pós-positivismo – na contramão da sustentação teórica defendida pelos positivistas acríticos – cria sustentação jusfilosófica ao ordenamento jurídico, para que se possam buscar parâmetros de justiça ou equidade quando da aplicação concreta das normas, e isso se permite exatamente mediante a abertura valorativa do sistema.

O novo método é pluridimensional: abre-se aos valores, aos fins, às razões históricas, aos interesses, a tudo, enfim, que possa ser conteúdo e pressuposto da norma. O sistema constitucional dos dias atuais – especialmente o brasileiro – já não se restringe tão-somente ao sistema da Constituição normativa, mas está acrescido de todo aquele complexo de forças, relações e valores que o positivismo formalista deliberadamente excluía ou ignorava e cuja totalidade compõe a ordem material da Constituição, formando um núcleo ou círculo mais largo e compreensivo, excepcionalmente rico de conteúdo.9

4.  A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL COMO MECANISMO DE SUPRESSÃO DOS EFEITOS DECORRENTES DA LACUNA NORMATIVA

O Brasil adota um modelo próprio de controle de constitucionalidade, que combina aspectos do sistema americano e do sistema europeu. Do sistema americano, colhemos o controle incidental e concreto, que possibilita a qualquer juiz ou tribunal interpretar a Constituição ao julgar os casos que lhes são submetidos, podendo, inclusive, deixar de aplicar normas que venham a considerar inconstitucional. Do sistema europeu temos a possibilidade de ajuizamento de ações diretas perante a Suprema Corte, nas quais se discute em tese (isto é, independentemente de um caso ou controvérsia) a constitucionalidade ou não de uma determinada lei.

Outra característica do sistema que merece destaque é o amplo elenco de órgãos, agentes públicos e entidades privadas que podem propor ações diretas perante o Supremo Tribunal Federal. A própria Constituição (art. 103) prevê expressamente esse direito de propositura, que pode ser exercido, por exemplo, por autoridades federais (Presidente da República, Procurador-Geral da República), por autoridades estaduais (Governadores dos Estados) e órgãos públicos (Senado Federal, Câmara dos Deputados Assembleias Legislativas). Porém, mais singularmente, ações diretas podem ser propostas pela Ordem dos Advogados, por partidos políticos, por entidades de classe de âmbito nacional e pelas confederações sindicais.

Segundo Luís Roberto Barroso, supremas cortes e tribunais constitucionais em todo o mundo desempenham, ao menos potencialmente, três grandes papéis ou funções: a) Papel contramajoritário: que identifica, como é de conhecimento geral, o poder de as cortes supremas invalidarem leis e atos normativos, emanados tanto do Legislativo quanto do Executivo. A possibilidade de juízes não eleitos sobreporem a sua interpretação da Constituição à de agentes públicos eleitos recebeu o apelido de “dificuldade contramajoritária”, segundo visão de Luís Roberto Barroso10. A despeito da subsistência de visões divergentes, entende-se que este é um papel legítimo dos tribunais, notadamente quando atuam, em nome da Constituição, para protegerem os direitos fundamentais e as regras do jogo democrático, mesmo contra a vontade das maiorias. b) Papel representativo: ocorre quando atuam para atender demandas sociais que não foram satisfeitas a tempo e a modo pelo Legislativo, bem como para integrar a ordem jurídica em situações de omissão inconstitucional do legislador. Um exemplo paradigmático ilustra bem este papel: em uma ação direta, o STF declarou inconstitucional toda e qualquer nomeação de parentes até o terceiro grau para cargos públicos de livre nomeação nos três Poderes. Pelo conhecimento convencional, seriam exigíveis lei federal e leis estaduais para impor esse tipo de restrição, no entanto, apesar da ampla cobrança por parte da sociedade, as leis não vinham. Diante disso, o Tribunal extraiu tal proibição dos princípios constitucionais da moralidade administrativa e da impessoalidade. c) Papel iluminista: por fim, em situações excepcionais, com grande autocontenção e parcimônia, cortes constitucionais devem desempenhar um papel iluminista. Vale dizer: devem promover, em nome de valores racionais, certos avanços civilizatórios e empurrar a história. São decisões que não são propriamente contramajoritárias, por não envolverem a invalidação de uma lei específica; nem tampouco são representativas, por não expressarem necessariamente o sentimento da maioria da população. Ainda assim, são necessárias para a proteção de direitos fundamentais e para a superação de discriminações e preconceitos.

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AZEVEDO, Álvaro Villaça. Comentários ao Código Civil: parte especial; do direito de família, do bem de família, da união estável, da tutela e da curatela. Antônio Junqueira de Azevedo (Coord.). São Paulo: Saraiva, 2003, v. 19;

BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. 2 ed. rev. e atual. São Paulo: Renovar, 2008;

BARROSO, Luís Roberto. Uniões homoafetivas: reconhecimento jurídico. Revista de Direito da Universidade de Brasília. Programa de Pós-Graduação em Direito – Vol.1, N.1.

DIAS, Maria Berenice. União Homossexual: o preconceito e a justiça. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000;

FACHIN, Luiz Edson. Aspectos jurídicos da união de pessoas do mesmo sexo. A nova família: problemas e perspectivas. Vicente Barreto (Org.). Rio de Janeiro: Renovar, 1997;

niversidade de Brasília. Programa de Pós-Graduação em Direito – Vol.1, N.1. Brasília, 2014;

TORRES, Claudia Vecchi. A interpretação constitucional dos princípios da afetividade e solidariedade familiar pelos tribunais superiores brasileiros. 2014. Dissertação (Mestrado em Direito) - Programa de Pós-Graduação em Direito - PPGD, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Natal, 2014;

VECCHIATTI. Paulo Roberto Iotti. União estável homoafetiva e a constitucionalidade de seu reconhecimento judicial. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões, v. 13, jun/jul 2010;

________

1 ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 32.

2 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito civil: famílias. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 18.

3 “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: construir uma sociedade livre, justa e solidária.” (BRASIL. Constituição Federal. Vade Mecum Saraiva. São Paulo: Saraiva, 2016).

4 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito civil: famílias. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 18.

5 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado; 8ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 229.

6 STRECK, Lênio Luiz. O caso da ADPF 132: Defender o texto da Constituição é uma atitude positivista (ou “originalista”)? Revista de Direito da Universidade de Brasília. Programa de Pós-Graduação em Direito – Vol.1, N.1. Brasília, 2014, p. 297.

7 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 2ª edição – São Paulo: ed. Malheiros Editores, 2007, p. 133-134.

8 Ibidem, p. 134-135.

9 REGLA, Josep Aguiló. Do “Império da Lei” ao “Estado Constitucional”. Dois Paradigmas Jurídicos em Poucas Palavras, in MOREIRA, Eduardo Ribeiro. Argumentação e Estado Constitucional. São Paulo. Ícone Editora. 2012, p. 96.

10 Ibidem, p. 05.

Ygor Werner
Advogado. Mestre em D. Constitucional (UFRN), com extensão realizada na Faculdade de Direito da Univ. de Coimbra, em Portugal. Pós-graduado em D. Civil e Proc. Civil (UFRN) e em D. Tributário (IBET).

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