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Cuidados com a desestatização de ativos da Petrobras

O desafio posto ao CADE na fase posterior ao TCC celebrado com a Petrobras será o de monitorar a conduta dos novos agentes privados, de forma a garantir que a abertura de mercado seja concluída com sucesso.

8/10/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

O processo de desestatização dos ativos de refino da Petrobras demanda cuidado no seu desenho e monitoramento para que os desinvestimentos realizados resultem na abertura concorrencial do setor, que até hoje conta com elevada posição dominante da petroleira.

A venda das refinarias ocorre como consequência do Termo de Compromisso de Cessação 08700.003136/19 (“TCC”), firmado entre a Petrobras e o CADE em junho de 2019, tendo como principal objetivo viabilizar o aumento de concorrência no mercado de refino de petróleo no Brasil, além de arquivar investigações de potenciais práticas anticompetitivas da empresa (Processo 08700.002715/2019-30).

Pelos termos do TCC, a companhia comprometeu-se a alienar oito das suas 13 refinarias, na prática, abrangendo quase todas as refinarias fora do eixo Rio/SP, que representa cerca de 50% de toda a capacidade de refino do país.

A decisão de alienar tais ativos é amplamente vista como uma forma de efetivar a abertura concorrencial do setor, atualmente concentrado na Petrobras. Com a entrada de novos agentes econômicos, espera-se que o mercado venha a contar com menores preços e maior qualidade de produtos tais como gasolina, diesel e óleo combustível, além de vários outros derivados do petróleo amplamente empregados em diversos setores da economia e na indústria.

Por outro lado, o simples repasse de ativos ao setor privado não é suficiente para garantir que a situação concorrencial do mercado será resolvida. Todo o processo de privatização precisa ser minuciosamente avaliado, sob o risco de a estrutura de mercado ao final da operação resultar quase tão concentrada e engessada quanto a configuração inicial. A título de exemplo, a alienação da Refinaria Landulpho Alves (“RLAM”), adquirida em fevereiro deste ano pelo Grupo Mubadala e aprovada pelo CADE em junho, é ilustrativa da necessidade do correto desenho das privatizações.

O óleo combustível marítimo (“bunker”, assim conhecido como por ser usado na propulsão de navios de grande porte), acha-se entre os principais derivados do petróleo processados pela refinaria. Com a privatização, a expectativa é que ocorra uma chamada pública para que uma única empresa adquira todo o bunker produzido pela unidade. A preocupação dos agentes é que a Petrobras possa vir a arrematar esse contrato. Caso esse cenário se concretize, considerando-se esse produto específico naquela determinada região, a privatização deverá trazer resultados ineficazes.

Além da RLAM, a venda da Refinaria de Manaus (“Reman”) já foi pactuada entre a Petrobras e o Grupo Atem, além do anúncio da alienação de outras plantas, entre elas a Refinaria Presidente Getúlio Vargas (“Repar”), com a expectativa de que novos acordos sejam assinados nos próximos meses.

Ciente dos riscos, já na assinatura do TCC o CADE tomou um conjunto de precauções, procurando se antecipar e sanar possíveis problemas que podem ser gerados. Considerando o período de transição para os novos proprietários, a autarquia determinou que até a conclusão das operações a Petrobras deve: adotar a transparência e isonomia concorrencial de preços para um conjunto de derivados, manter a competitividade dos ativos alienados e realizar um processo justo e adequado de desinvestimento.

Também foi exigido que a estatal coloque em alienação não apenas a estrutura das refinarias, como também os ativos de infraestrutura logística associados, tais como dutos e terminais aquaviários e terrestres, essenciais para que as unidades possam transportar seus produtos e insumos. Com isso, o CADE espera garantir a viabilidade da operação dos novos agentes e a sua capacidade oferecer uma rivalidade efetiva. Outra preocupação da autarquia, talvez a mais relevante, foi a proibição de que ativos situados em corredores logísticos próximos sejam adquiridos pelo mesmo grupo econômico. O objetivo dessa exigência é evitar que os competidores entrantes possam acabar gerando monopólios regionais e frustrar os resultados positivos desejados com a abertura de mercado desse setor.

Ademais, para que os objetivos do TCC sejam plenamente alcançados, são necessárias medidas que disciplinem os parâmetros de atuação das refinarias após a venda, haja vista que, por meio de mecanismos contratuais é possível criar barreiras à entrada e limitar a concorrência. Isso ocorreria, por exemplo, caso uma das refinarias formalize ou um contrato de exclusividade com algum player para um determinado produto, ou um acordo de longo prazo envolvendo um volume relevante da refinaria. Nesses casos, o resultado poderá ser quase o mesmo de não ter sido realizada a privatização. A maior dificuldade desse tipo de caso é que a empresa compradora da refinaria já não está obrigada pelo TCC com o CADE. Ou seja, não se trata mais do simples monitoramento do cumprimento das obrigações da Petrobras. Por outro lado, o CADE continua a dispor de amplas ferramentas, conferidas por lei, para solucionar os problemas que eventualmente surjam no decorrer das operações.

Ao analisar cada alienação, o CADE pode tentar antecipar dificuldades e, quando for pertinente, fazer novas exigências para dar o seu aval. No caso específico da RLAM, o CADE aprovou a operação sem restrições, mas nada impede que a autarquia revisite sua decisão ou decida avaliar mais detidamente eventuais condutas que resultem em prejuízo aos consumidores.

Percebe-se, então, que o desafio posto ao CADE na fase posterior ao TCC celebrado com a Petrobras será o de monitorar a conduta dos novos agentes privados, de forma a garantir que a abertura de mercado seja concluída com sucesso e que os ganhos do aumento de concorrência sejam revertidos aos consumidores.

Gesner de Oliveira
Professor da FGV, Presidente do CADE (1996-2000) e Sócio da GO Associados.

João Grandino Rodas
Desembargador federal aposentado do TRF da 3ª região. Mestre em Direito pela Harvard University. Presidente do CEDES - Centro de Estudos de Direito Econômico e Social. Sócio do escritório Grandino Rodas Advogados.

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