1) Objeto1
Esta nota destaca aspectos da lei 14.133/21 aptos a aplicação subsidiária às concessões e parcerias público-privadas (PPPs) regidas pelas leis 8.987/95 e 11.079/04. Discutem-se pontos em que o diploma produz efeitos imediatos, independentemente do regime de transição dos arts. 190, 191 e 193.
O objeto principal são os contratos existentes, embora se trate também de licitações sob a vigência da Lei 14.133/2021. O foco é a posição jurídica do concessionário. Não se aprofunda a análise dos temas de governança e estruturação administrativas, uma das inovações da lei 14.133/21.
2) Aplicação subsidiária (art. 186)
Como faz o art. 124 da lei 8.666/93, o art. 186 da lei 14.1333/21 prevê a aplicação subsidiária da lei às concessões e PPPs. A própria lei 8.987/95 remete à legislação geral sobre licitações e contratações administrativas em pontos como (i) condições de participação; (ii) alocação de risco; (iii) modalidade de licitação e outras questões procedimentais; (iv) direitos e limitações de poderes da Administração; (v) direitos dos contratados; e (vi) recursos.
3) Regime de transição (arts. 190, 191 e 193)
A lei 14.133/21 não revogou a legislação anterior, que continuará vigente até o final do prazo de dois anos disposto pelo art. 193, II. A Administração poderá escolher que regime de licitação e contratação irá aplicar, nos termos do art. 191. Como regra geral, a nova lei não se aplica aos contratos anteriores (art. 190).
Alguns dispositivos da lei 14.133/21 ainda não são eficazes, tanto pelo regime de transição quanto por falta de regulamentação. Parcela da Lei é autoaplicável, conforme a doutrina2 e diferentes órgãos estatais3.
A vigência concomitante da lei 14.133/21 e da legislação pretérita proporciona transição gradual de regimes, criando ambiente favorável à experimentação. O aproveitamento desse período de transição pressupõe que ela seja aplicada sempre que possível, direta ou subsidiariamente.
4) Interpretação restritiva dos arts. 190 e 191 à luz do art. 186
Interpretam-se os arts. 190 e 191 da lei 14.133/21 de modo restritivo. O art. 191 faculta a escolha do regime para licitações e contratações diretas, vedada a combinação entre a lei 14.133/21 e a legislação pré-existente. Dispositivos sobre governança, segregação de funções e resolução de disputas, por exemplo, são imediatamente aplicáveis, independentemente da previsão do art. 190 de que os contratos anteriores permanecem regidos pela legislação da época de sua celebração.
A interpretação restritiva é ainda mais adequada no âmbito da aplicação subsidiária às concessões e PPPs, objeto de dispositivo próprio (art. 186) que não remete ao art. 191. As licitações para concessões e PPPs não se subordinam integralmente ao regime da lei 14.133/21. Nada impediria a aplicação subsidiária imediata do novo diploma mesmo no que se refere à licitação: por exemplo, adoção do diálogo competitivo ainda que o Portal Nacional de Contratações Públicas ou outros instrumentos previstos na lei 14.133/21 não estivessem plenamente operacionais. No entanto, a necessária segurança jurídica exige que o ato convocatório das licitações para concessões e PPPs indique expressamente se o certame será regido subsidiariamente pela lei 14.133/21 ou pela lei 8.666/93. Se for o caso, caberá ao interessado impugnar o edital para exigir a aplicação da lei 14.133/21 ou a fundamentação para o seu afastamento, ou, ainda, a indicação dos limites em que lei 8.666/93 permanecerá aplicável, observados estritamente os parâmetros do art. 191.
5) Aplicabilidade da lei 14.133/21 aos contratos em curso
O art. 190 da lei 14.133/21 dispõe que os contratos firmados antes da entrada em vigor da Lei continuarão a ser regidos pela legislação anterior. A regra é coerente com o art. 6º, § 1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), que assegura o respeito ao ato jurídico perfeito. A disposição também se aplica aos termos aditivos. A vinculação ao edital implica a impossibilidade de alteração do regime adotado na celebração do contrato (arts. 3º, 41, 54, § 1º, e 55, XI, da lei 8.666/93). A Administração não se pode valer da lei 14.133/21 para impor obrigações não previstas pela legislação anterior.
É possível que a lei 14.133/21 seja aplicada aos contratos de concessão de serviços públicos e parcerias público-privadas em curso, desde que isso ocorra: (i) para incorporação de previsões específicas, por meio de termo aditivo, observada a vedação à imposição de soluções da nova lei que agravem a situação do particular em face do regime jurídico original da contratação; (ii) em virtude do princípio da retroatividade da lei mais benéfica, no âmbito do direito administrativo sancionador; ou (iii) no âmbito de normas que não digam respeito à licitação ou ao regime de contratação.
6) Diálogo competitivo
Os arts. 179 e 180 da lei 14.133/21 inovam ao possibilitar que os contratos de concessão e PPPs sejam licitados por meio de diálogo competitivo. A modalidade, conceituada pelo art. 6º, XLII, proporciona fase de discussão, entre a Administração e os particulares interessados, sobre soluções técnicas, econômicas e jurídicas para contratos de alto risco e elevada complexidade.
A lei 14.133/21 não restringe o diálogo competitivo à definição de objetos ou prestações específicas. O art. 32, I, enumera requisitos cumulativos.4
O art. 32, II, exemplifica aspectos do contrato que podem ser submetidos ao diálogo competitivo. Como no art. 30, item 3, da Diretiva 2014/24 da União Europeia, a lei 14.133/21 prevê que o debate integra a própria licitação.
7) Âmbitos de aplicação da lei 14.133/21 aos contratos de concessão de serviços públicos e parcerias público-privadas
Alguns dos âmbitos de aplicação da lei 14.1333/21 aos contratos de concessão e PPPs são: (i) garantias; (ii) prerrogativas da administração; (iii) alteração de contratos e preços; (iv) direitos dos particulares; (v) responsabilidade objetiva por projetos e obras; (vi) meios adequados de resolução de controvérsias; (vii) extinção de contratos e desequilíbrio contratual pendente; (viii) anulação de contratos e termos aditivos; (ix) infrações administrativas; e (x) tramitação prioritária de processos judiciais.
8) Garantias
Os arts. 99 e 102 da lei 14.133/21 possibilitam que, nas contratações de obras e serviços de engenharia de grande vulto, a Administração exija do contratado a apresentação de seguro-garantia em valor 30% superior ao do contrato. Pelo art. 190 da Lei, a determinação não pode ser aplicada para obrigar o contratado a apresentar seguro mais oneroso que o inicialmente previsto.
Se o art. 102 ensejar o barateamento do seguro, cabe a celebração de aditivo para estender à seguradora cláusula de step-in direcionada ao financiador.
Além disso, o contratado pode pleitear a incidência do art. 96, § 3º, para se isentar da obrigação de renovar a garantia ou endossar a apólice no caso de suspensão do contrato por ordem ou inadimplemento da Administração. A regra é coerente com o art. 39 da lei 8.987/95 e evita a interrupção dos serviços.
Como a vedação à interrupção não abrange as obrigações acessórias, como a prestação de garantia, e a lei 8666/93 é omissa em relação à (des)necessidade de renovação da garantia ou endosso da apólice em caso de suspensão do contrato por ordem ou inadimplemento da Administração, a nova legislação é aplicável como diretriz interpretativa para proteger o contratado.
9) Prerrogativas da Administração e alteração de contratos e preços
Quanto às prerrogativas da Administração e à alteração de contratos e preços, a lei 14.133/21 institui regime que, embora similar ao pré-existente, privilegia as disposições de cada contrato.
Segundo o art. 124, II, d, a solução a ser adotada no caso concreto dependerá da matriz de risco definida no contrato. A lógica não se aplica aos pleitos de reequilíbrio em andamento nem afasta a teoria da imprevisão,5 embora afete seu âmbito de incidência. Também não é permitido que alterações contratuais desfigurem o objeto original do contrato, nos termos do art. 126 da Lei.
10) Direitos processuais dos concessionários
O art. 123 da lei 14.133/21 determina que toda e qualquer solicitação apresentada pelo particular deve ser apreciada pela Administração em tempo razoável. Trata-se de disposição idêntica à do art. 49 da lei 9.784/99 que prestigia o devido processo legal e a duração razoável do processo. A norma não afasta a aplicação do art. 24 lei 9.784/99 e, por sua natureza processual, tem eficácia imediata em relação aos processos em trâmite.
11) Responsabilidade objetiva por projetos e obras
O art. 140, §§ 5º e 6º, da lei 14.133/21, impõe a responsabilidade objetiva de projetistas e executores de obras. Não altera o regime de responsabilidade dos contratantes nos contratos em curso, em atenção ao ato jurídico perfeito. Sua aplicação futura é questão ainda em aberto, notadamente em relação às obras objeto de contratação, projeto e execução já sob a vigência da lei 14.133/21. Caso aplicável o novo regime, o acréscimo de custos vinculado à ampliação da responsabilidade ensejará reequilíbrio contratual.
12) Meios adequados de resolução de controvérsias
O art. 153 permite que os contratos sejam aditados para a adoção dos métodos adequados de resolução de controvérsias como os previstos no art. 151.
A hipótese também é prevista pelo art. 23-A da lei 8.987/95 e amplamente aceita pela doutrina6 e pela jurisprudência7. A relevância do dispositivo é que ele confirma a possibilidade de alteração dos contratos com base na Lei 14.133/2021. Trata-se de comprovação de que o art. 190 não veda, indistintamente, a aplicação das soluções mais eficientes do novo regime. O objetivo do dispositivo é assegurar as relações contratuais já estabelecidas. Há inovação em relação à possibilidade de instauração de dispute boards (comitês de prevenção e solução de conflitos), até então sem previsão em normas gerais de contratação.
A exigência do art. 154 de adoção de determinados critérios para a escolha de árbitros e instituições reflete o entendimento consolidado de que a escolha não depende de licitação (ou mesmo contratação direta), devendo ser racional e motivada em parâmetros objetivos. Ao aludir a critérios transparentes, o art. 154 não impõe a publicidade imediata do ato que motiva a escolha, devendo tal publicidade ser diferida para após o encerramento do litígio, uma vez que publicidade imediata afetaria ato de grande importância estratégica para a posição da Administração na disputa. Os critérios do art. 154 têm eficácia interna e vinculam apenas a Administração, pelo que seu descumprimento, por si só, não gera a invalidade da arbitragem ou da sentença arbitral, cuja validade é aferida exclusivamente à luz da lei 9.307/96.
13) Extinção de contratos e desequilíbrio contratual pendente
As hipóteses de extinção dos contratos administrativos previstas pelo art. 137 da lei 14.133/21 não se aplicam aos contratos em curso. Quanto ao inciso III do dispositivo, só haverá extinção caso o novo contratado não comprove sua qualificação para cumprir a parcela do contrato que ainda não foi executada. É desnecessário atender às exigências do edital em relação ao contrato como um todo.
Nos termos do art. 138, III, da lei 14.333/21, os contratos administrativos em geral podem ser extintos de forma consensual inclusive por mediação ou dispute board. Ainda que o regime de extinção dos contratos de concessão seja disciplinado pelos arts. 35 a 39 da lei 8.987/95, a forma pode ser a da lei 14.333/21.
O art. 138, III, inova ao prever, de forma expressa, a possibilidade de extinção de contratos administrativos por sentença arbitral, o que também se aplica aos contratos em curso.
O art. 131 permite o reconhecimento de desequilíbrio econômico-financeiro mesmo após a extinção do contrato, mas seu parágrafo único exige que o pleito seja formulado durante a vigência do contrato. Trata-se de disposição inconstitucional8 e que, mesmo se fosse válida, não se aplica aos contratos em curso. No regime da lei 8.666/93, havia decisões isoladas em sentido similar ao do novo dispositivo9, pelo que é recomendável, sempre que possível, a formulação do pedido de reequilíbrio antes do termo final do contrato.
14) Anulação de contratos e termos aditivos
O art. 147 da lei 14.133/21 exemplifica aspectos que devem ser levados em consideração pela Administração para a anulação de contrato ou termo aditivo. Trata-se de disposição que consagra a aplicação do art. 21 da LINDB e do art. 4º do decreto 9.830/19, especificamente em relação aos contratos administrativos.
Os arts. 148 e 149 afastam o entendimento consagrado pela súmula 473 do STF, pois permitem a modulação dos efeitos da nulidade e a manutenção das relações contratuais por até seis meses após a sua declaração, resguardado direito à indenização. O regime próprio de nulidades e seus efeitos é uma das principais inovações da lei 14.133/21.
15) Infrações administrativas
O STF possui entendimento pela retroatividade da lei mais benéfica na aplicação de sanções administrativas.10 É o caso do art. 156, § 3º, que estabelece o valor máximo de multas administrativas em 30% sobre valor do contrato. O regime mais benéfico não se limita à quantificação ou duração das sanções, mas também ao procedimento de reabilitação, se o apenado o reputar mais favorável que o anteriormente vigente.
As normas processuais da lei 14.133/21, como os prazos previstos pelos arts. 157, 158 e 166, são imediatamente aplicáveis aos processos administrativos em curso.
16) Tramitação prioritária de processos judiciais
O art. 177 da lei 14.133/21 prevê a tramitação prioritária dos processos sobre normas gerais de licitação e contratações administrativas. O dispositivo não se restringe às normas da nova legislação. Trata-se de regra aplicável a qualquer ação ajuizada para a discussão de contratos de concessão de serviços públicos e parcerias público-privadas.
17) Conclusão
Ainda que alguns dispositivos da lei 14.133/21 não tenham eficácia imediata, por falta de regulamentação, parcela considerável do diploma é autoaplicável. A lei 14.133/21 produz efeitos imediatos sobre as concessões e parcerias público-privadas em curso, tanto pela aplicação subsidiária prevista no seu art. 186 quanto como indutora de nova interpretação da legislação anterior que permanece vigente.
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1 Os autores agradecem a colaboração de Matheus Guimarães Pitto, da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini, na pesquisa e revisão.
2 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas: Lei 14.133/2021. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 1770.
3 Vd. Parecer Jurídico nº 235/2021, emitido pela da Procuradoria-Geral do Distrito Federal no processo nº 04009-00000529/2021-09, de interesse da Secretaria de Estado de Turismo do Distrito Federal; o despacho nº 902/2021, proferido pela Procuradoria-Geral do Estado de Goiás no processo nº 202100017004219, de interesse da Gerência de Compras Governamentais; o Parecer nº 18.761821, emitido pela Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul no processo nº 21/1300-0002518-9, de interesse da Subsecretaria da Administração Central de Licitações; e os Pareceres nº 00682-21 e 00640-21, emitidos pelo Tribunal de Contas do Estado da Bahia nos processos nº 06574e21 e 06012e21, de interesse dos municípios de Andaraí e Jequié, de lavra das Assessoras Jurídicas.
4 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas: Lei 14.133/2021. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 459.
5 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas: Lei 14.133/2021. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 1380.
6 Conforme os enunciados 10 e 19 da I Jornada de Direito Administrativo.
7 STJ, REsp 904.813/ PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe 28.2.2012.
8 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas: Lei 14.133/2021. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 1.434-1.435.
9 TJ/SP, AC 1017266-96.2015.8.26.0053, 3ª Câmara de Direito Público, Rel. Des. Maurício Fiorito, j. 27.07.2020.
10 STF, RE 523471 AgR, 2ª T., Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 06.04.2010.