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Aplicabilidade da nova Lei de Licitações e Contratações Administrativas às concessões e parcerias público-privadas

A lei 14.133/21 produz efeitos imediatos sobre as concessões e parcerias público-privadas em curso, tanto pela aplicação subsidiária prevista no seu art. 186 quanto como indutora de nova interpretação da legislação anterior que permanece vigente.

30/9/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

1) Objeto1

Esta nota destaca aspectos da lei 14.133/21 aptos a aplicação subsidiária às concessões e parcerias público-privadas (PPPs) regidas pelas leis 8.987/95 e 11.079/04. Discutem-se pontos em que o diploma produz efeitos imediatos, independentemente do regime de transição dos arts. 190, 191 e 193.

O objeto principal são os contratos existentes, embora se trate também de licitações sob a vigência da Lei 14.133/2021. O foco é a posição jurídica do concessionário. Não se aprofunda a análise dos temas de governança e estruturação administrativas, uma das inovações da lei 14.133/21.

2) Aplicação subsidiária (art. 186)

Como faz o art. 124 da lei 8.666/93, o art. 186 da lei 14.1333/21 prevê a aplicação subsidiária da lei às concessões e PPPs. A própria lei 8.987/95 remete à legislação geral sobre licitações e contratações administrativas em pontos como (i) condições de participação; (ii) alocação de risco; (iii) modalidade de licitação e outras questões procedimentais; (iv) direitos e limitações de poderes da Administração; (v) direitos dos contratados; e (vi) recursos.

3) Regime de transição (arts. 190, 191 e 193)

A lei 14.133/21 não revogou a legislação anterior, que continuará vigente até o final do prazo de dois anos disposto pelo art. 193, II. A Administração poderá escolher que regime de licitação e contratação irá aplicar, nos termos do art. 191. Como regra geral, a nova lei não se aplica aos contratos anteriores (art. 190).

Alguns dispositivos da lei 14.133/21 ainda não são eficazes, tanto pelo regime de transição quanto por falta de regulamentação. Parcela da Lei é autoaplicável, conforme a doutrina2 e diferentes órgãos estatais3.

A vigência concomitante da lei 14.133/21 e da legislação pretérita proporciona transição gradual de regimes, criando ambiente favorável à experimentação. O aproveitamento desse período de transição pressupõe que ela seja aplicada sempre que possível, direta ou subsidiariamente.

4) Interpretação restritiva dos arts. 190 e 191 à luz do art. 186

Interpretam-se os arts. 190 e 191 da lei 14.133/21 de modo restritivo. O art. 191 faculta a escolha do regime para licitações e contratações diretas, vedada a combinação entre a lei 14.133/21 e a legislação pré-existente. Dispositivos sobre governança, segregação de funções e resolução de disputas, por exemplo, são imediatamente aplicáveis, independentemente da previsão do art. 190 de que os contratos anteriores permanecem regidos pela legislação da época de sua celebração.

A interpretação restritiva é ainda mais adequada no âmbito da aplicação subsidiária às concessões e PPPs, objeto de dispositivo próprio (art. 186) que não remete ao art. 191. As licitações para concessões e PPPs não se subordinam integralmente ao regime da lei 14.133/21. Nada impediria a aplicação subsidiária imediata do novo diploma mesmo no que se refere à licitação: por exemplo, adoção do diálogo competitivo ainda que o Portal Nacional de Contratações Públicas ou outros instrumentos previstos na lei 14.133/21 não estivessem plenamente operacionais. No entanto, a necessária segurança jurídica exige que o ato convocatório das licitações para concessões e PPPs indique expressamente se o certame será regido subsidiariamente pela lei 14.133/21 ou pela lei 8.666/93. Se for o caso, caberá ao interessado impugnar o edital para exigir a aplicação da lei 14.133/21 ou a fundamentação para o seu afastamento, ou, ainda, a indicação dos limites em que lei 8.666/93 permanecerá aplicável, observados estritamente os parâmetros do art. 191.

5) Aplicabilidade da lei 14.133/21 aos contratos em curso

O art. 190 da lei 14.133/21 dispõe que os contratos firmados antes da entrada em vigor da Lei continuarão a ser regidos pela legislação anterior. A regra é coerente com o art. 6º, § 1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), que assegura o respeito ao ato jurídico perfeito. A disposição também se aplica aos termos aditivos. A vinculação ao edital implica a impossibilidade de alteração do regime adotado na celebração do contrato (arts. 3º, 41, 54, § 1º, e 55, XI, da lei 8.666/93). A Administração não se pode valer da lei 14.133/21 para impor obrigações não previstas pela legislação anterior.

É possível que a lei 14.133/21 seja aplicada aos contratos de concessão de serviços públicos e parcerias público-privadas em curso, desde que isso ocorra: (i) para incorporação de previsões específicas, por meio de termo aditivo, observada a vedação à imposição de soluções da nova lei que agravem a situação do particular em face do regime jurídico original da contratação; (ii) em virtude do princípio da retroatividade da lei mais benéfica, no âmbito do direito administrativo sancionador; ou (iii) no âmbito de normas que não digam respeito à licitação ou ao regime de contratação.

6) Diálogo competitivo

Os arts. 179 e 180 da lei 14.133/21 inovam ao possibilitar que os contratos de concessão e PPPs sejam licitados por meio de diálogo competitivo. A modalidade, conceituada pelo art. 6º, XLII, proporciona fase de discussão, entre a Administração e os particulares interessados, sobre soluções técnicas, econômicas e jurídicas para contratos de alto risco e elevada complexidade.

A lei 14.133/21 não restringe o diálogo competitivo à definição de objetos ou prestações específicas. O art. 32, I, enumera requisitos cumulativos.4

O art. 32, II, exemplifica aspectos do contrato que podem ser submetidos ao diálogo competitivo. Como no art. 30, item 3, da Diretiva 2014/24 da União Europeia, a lei 14.133/21 prevê que o debate integra a própria licitação.

7) Âmbitos de aplicação da lei 14.133/21 aos contratos de concessão de serviços públicos e parcerias público-privadas

Alguns dos âmbitos de aplicação da lei 14.1333/21 aos contratos de concessão e PPPs são: (i) garantias; (ii) prerrogativas da administração; (iii) alteração de contratos e preços; (iv) direitos dos particulares; (v) responsabilidade objetiva por projetos e obras; (vi) meios adequados de resolução de controvérsias; (vii) extinção de contratos e desequilíbrio contratual pendente; (viii) anulação de contratos e termos aditivos; (ix) infrações administrativas; e (x) tramitação prioritária de processos judiciais.

8) Garantias

Os arts. 99 e 102 da lei 14.133/21 possibilitam que, nas contratações de obras e serviços de engenharia de grande vulto, a Administração exija do contratado a apresentação de seguro-garantia em valor 30% superior ao do contrato. Pelo art. 190 da Lei, a determinação não pode ser aplicada para obrigar o contratado a apresentar seguro mais oneroso que o inicialmente previsto.

Se o art. 102 ensejar o barateamento do seguro, cabe a celebração de aditivo para estender à seguradora cláusula de step-in direcionada ao financiador.

Além disso, o contratado pode pleitear a incidência do art. 96, § 3º, para se isentar da obrigação de renovar a garantia ou endossar a apólice no caso de suspensão do contrato por ordem ou inadimplemento da Administração. A regra é coerente com o art. 39 da lei 8.987/95 e evita a interrupção dos serviços.

Como a vedação à interrupção não abrange as obrigações acessórias, como a prestação de garantia, e a lei 8666/93 é omissa em relação à (des)necessidade de renovação da garantia ou endosso da apólice em caso de suspensão do contrato por ordem ou inadimplemento da Administração, a nova legislação é aplicável como diretriz interpretativa para proteger o contratado.

9) Prerrogativas da Administração e alteração de contratos e preços

Quanto às prerrogativas da Administração e à alteração de contratos e preços, a lei 14.133/21 institui regime que, embora similar ao pré-existente, privilegia as disposições de cada contrato.

Segundo o art. 124, II, d, a solução a ser adotada no caso concreto dependerá da matriz de risco definida no contrato. A lógica não se aplica aos pleitos de reequilíbrio em andamento nem afasta a teoria da imprevisão,5 embora afete seu âmbito de incidência. Também não é permitido que alterações contratuais desfigurem o objeto original do contrato, nos termos do art. 126 da Lei.

10) Direitos processuais dos concessionários

O art. 123 da lei 14.133/21 determina que toda e qualquer solicitação apresentada pelo particular deve ser apreciada pela Administração em tempo razoável. Trata-se de disposição idêntica à do art. 49 da lei 9.784/99 que prestigia o devido processo legal e a duração razoável do processo. A norma não afasta a aplicação do art. 24 lei 9.784/99 e, por sua natureza processual, tem eficácia imediata em relação aos processos em trâmite.

11) Responsabilidade objetiva por projetos e obras

O art. 140, §§ 5º e 6º, da lei 14.133/21, impõe a responsabilidade objetiva de projetistas e executores de obras. Não altera o regime de responsabilidade dos contratantes nos contratos em curso, em atenção ao ato jurídico perfeito. Sua aplicação futura é questão ainda em aberto, notadamente em relação às obras objeto de contratação, projeto e execução já sob a vigência da lei 14.133/21. Caso aplicável o novo regime, o acréscimo de custos vinculado à ampliação da responsabilidade ensejará reequilíbrio contratual.

12) Meios adequados de resolução de controvérsias

O art. 153 permite que os contratos sejam aditados para a adoção dos métodos adequados de resolução de controvérsias como os previstos no art. 151.

A hipótese também é prevista pelo art. 23-A da lei 8.987/95 e amplamente aceita pela doutrina6 e pela jurisprudência7. A relevância do dispositivo é que ele confirma a possibilidade de alteração dos contratos com base na Lei 14.133/2021. Trata-se de comprovação de que o art. 190 não veda, indistintamente, a aplicação das soluções mais eficientes do novo regime. O objetivo do dispositivo é assegurar as relações contratuais já estabelecidas. Há inovação em relação à possibilidade de instauração de dispute boards (comitês de prevenção e solução de conflitos), até então sem previsão em normas gerais de contratação.  

A exigência do art. 154 de adoção de determinados critérios para a escolha de árbitros e instituições reflete o entendimento consolidado de que a escolha não depende de licitação (ou mesmo contratação direta), devendo ser racional e motivada em parâmetros objetivos. Ao aludir a critérios transparentes, o art. 154 não impõe a publicidade imediata do ato que motiva a escolha, devendo tal publicidade ser diferida para após o encerramento do litígio, uma vez que publicidade imediata afetaria ato de grande importância estratégica para a posição da Administração na disputa. Os critérios do art. 154 têm eficácia interna e vinculam apenas a Administração, pelo que seu descumprimento, por si só, não gera a invalidade da arbitragem ou da sentença arbitral, cuja validade é aferida exclusivamente à luz da lei 9.307/96.

13) Extinção de contratos e desequilíbrio contratual pendente

As hipóteses de extinção dos contratos administrativos previstas pelo art. 137 da lei 14.133/21 não se aplicam aos contratos em curso. Quanto ao inciso III do dispositivo, só haverá extinção caso o novo contratado não comprove sua qualificação para cumprir a parcela do contrato que ainda não foi executada. É desnecessário atender às exigências do edital em relação ao contrato como um todo.

Nos termos do art. 138, III, da lei 14.333/21, os contratos administrativos em geral podem ser extintos de forma consensual inclusive por mediação ou dispute board. Ainda que o regime de extinção dos contratos de concessão seja disciplinado pelos arts. 35 a 39 da lei 8.987/95, a forma pode ser a da lei 14.333/21.

O art. 138, III, inova ao prever, de forma expressa, a possibilidade de extinção de contratos administrativos por sentença arbitral, o que também se aplica aos contratos em curso.

O art. 131 permite o reconhecimento de desequilíbrio econômico-financeiro mesmo após a extinção do contrato, mas seu parágrafo único exige que o pleito seja formulado durante a vigência do contrato. Trata-se de disposição inconstitucional8 e que, mesmo se fosse válida, não se aplica aos contratos em curso. No regime da lei 8.666/93, havia decisões isoladas em sentido similar ao do novo dispositivo9, pelo que é recomendável, sempre que possível, a formulação do pedido de reequilíbrio antes do termo final do contrato.

14) Anulação de contratos e termos aditivos

O art. 147 da lei 14.133/21 exemplifica aspectos que devem ser levados em consideração pela Administração para a anulação de contrato ou termo aditivo. Trata-se de disposição que consagra a aplicação do art. 21 da LINDB e do art. 4º do decreto 9.830/19, especificamente em relação aos contratos administrativos.

Os arts. 148 e 149 afastam o entendimento consagrado pela súmula 473 do STF, pois permitem a modulação dos efeitos da nulidade e a manutenção das relações contratuais por até seis meses após a sua declaração, resguardado direito à indenização. O regime próprio de nulidades e seus efeitos é uma das principais inovações da lei 14.133/21.

15) Infrações administrativas

O STF possui entendimento pela retroatividade da lei mais benéfica na aplicação de sanções administrativas.10 É o caso do art. 156, § 3º, que estabelece o valor máximo de multas administrativas em 30% sobre valor do contrato. O regime mais benéfico não se limita à quantificação ou duração das sanções, mas também ao procedimento de reabilitação, se o apenado o reputar mais favorável que o anteriormente vigente.

As normas processuais da lei 14.133/21, como os prazos previstos pelos arts. 157, 158 e 166, são imediatamente aplicáveis aos processos administrativos em curso.

16) Tramitação prioritária de processos judiciais

O art. 177 da lei 14.133/21 prevê a tramitação prioritária dos processos sobre normas gerais de licitação e contratações administrativas. O dispositivo não se restringe às normas da nova legislação. Trata-se de regra aplicável a qualquer ação ajuizada para a discussão de contratos de concessão de serviços públicos e parcerias público-privadas.

17) Conclusão

Ainda que alguns dispositivos da lei 14.133/21 não tenham eficácia imediata, por falta de regulamentação, parcela considerável do diploma é autoaplicável. A lei 14.133/21 produz efeitos imediatos sobre as concessões e parcerias público-privadas em curso, tanto pela aplicação subsidiária prevista no seu art. 186 quanto como indutora de nova interpretação da legislação anterior que permanece vigente.

_______________

1 Os autores agradecem a colaboração de Matheus Guimarães Pitto, da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini, na pesquisa e revisão.

2 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas: Lei 14.133/2021. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 1770.

3 Vd. Parecer Jurídico nº 235/2021, emitido pela da Procuradoria-Geral do Distrito Federal no processo nº 04009-00000529/2021-09, de interesse da Secretaria de Estado de Turismo do Distrito Federal; o despacho nº 902/2021, proferido pela Procuradoria-Geral do Estado de Goiás no processo nº 202100017004219, de interesse da Gerência de Compras Governamentais; o Parecer nº 18.761821, emitido pela Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul no processo nº 21/1300-0002518-9, de interesse da Subsecretaria da Administração Central de Licitações; e os Pareceres nº 00682-21 e 00640-21, emitidos pelo Tribunal de Contas do Estado da Bahia nos processos nº 06574e21 e 06012e21, de interesse dos municípios de Andaraí e Jequié, de lavra das Assessoras Jurídicas.

4 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas: Lei 14.133/2021. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 459.

5 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas: Lei 14.133/2021. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 1380.

6 Conforme os enunciados 10 e 19 da I Jornada de Direito Administrativo.

7 STJ, REsp 904.813/ PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe 28.2.2012.

8 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas: Lei 14.133/2021. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 1.434-1.435.

9 TJ/SP, AC 1017266-96.2015.8.26.0053, 3ª Câmara de Direito Público, Rel. Des. Maurício Fiorito, j. 27.07.2020.

10 STF, RE 523471 AgR, 2ª T., Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 06.04.2010.

Cesar A. Guimarães Pereira
Sócio do escritório Justen, Pereira, Oliveira & Talamini - Advogados Associados.

Guilherme F. Dias Reisdorfer
Sócio júnior de Justen, Pereira, Oliveira & Talamini - Advogados Associados. Doutorando e Mestre em Direito Administrativo (USP).

Isabella Rossito
Sócia júnior de Justen, Pereira, Oliveira & Talamini - Advogados Associados. Mestre em Direito Administrativo (USP).

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