Migalhas de Peso

Sobre a questão dos passageiros infratores a bordo de aeronaves e a urgente necessidade de adoção de medidas legislativas idôneas

O importantíssimo Protocolo de Montreal de 2014 entrou em vigor em 1? de janeiro de 2020, logo após a ratificação pelo 22? Estado, a Nigéria, em 26 de novembro de 2019.

29/9/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Infrações perpetradas a bordo por passageiros constituem grave ameaça à segurança de voo. A peculiaridade de o transporte aéreo não poder dispor do auxílio imediato de órgãos de segurança pública, somada à sua própria natureza complexa, sempre desafiadora da gravidade e tecnicamente sofisticada, fazem com que os conflitos gerados a bordo assumam forma exponencialmente perigosa.

Além disso, a desordem a bordo praticada por passageiros infratores têm enorme efeito deletério para os demais viajantes, para as companhias aéreas, para os operadores aeroportuários e para o sistema de transporte aéreo como um todo, em virtude dos atrasos, desvios de voo, pousos em aeroportos distintos do destino original etc., cada qual com seus prejuízos, riscos e danos próprios. Trata-se, portanto, de fenômeno merecedor, por parte de todos, de detida atenção e intenso esforço político-normativo no sentido de mitigar – ou, preferencialmente, eliminar – seus efeitos. 

Costuma-se definir o passageiro infrator como aquele cuja conduta, em descumprimento de regras específicas ou gerais aplicáveis ao transporte aéreo, perturba a ordem no aeroporto ou a bordo, podendo pôr em risco ou constituir ameaça à segurança da aeronave, de seus ocupantes e até mesmo de terceiros, de forma direta ou indireta, ou efetivamente causar-lhes danos econômicos, sociais ou até mesmo de natureza política.

Para aqueles que vivenciam o mundo jurídico do transporte aéreo comercial, há evidentes insuficiências normativas para o tratamento jurídico adequado do fenômeno, a começar pela simples questão terminológica.  Na língua inglesa, tem-se usado indistintamente os termos disruptive e unruly para os fenômenos envolventes da conduta antijurídica a bordo.  No âmbito da ICAO (Organização da Aviação Civil Internacional), ambos os termos são equiparados em significado1, muito embora o Anexo 17 à Convenção de Chicago tenha preferido a utilização do termo disruptive, não se encontrando referência ao vocábulo unruly no mesmo. 

Entre nós, quando o tema começou a ser ventilado no meio aeronáutico, utilizava-se a expressão “passageiro inconveniente”.  Entretanto, esta tímida locução foi sendo paulatinamente abandonada e o nosso mais relevante documento atinente à Segurança do Transporte Aéreo - o decreto 7.168 de 2010 - preferiu o termo “indisciplinado”.  Da mesma forma, o RBAC 108, expedido pela ANAC, que veio a tratar da “Segurança da Aviação Civil Contra Atos de Interferência Ilícita” no âmbito normativo da Agência Regulatória, também adotou a expressão “passageiro indisciplinado".

Já em Portugal, o legislador preferiu a expressão “passageiro desordeiro”, como se depreende do decreto-lei 254/03, que regulamentou a lei 50, daquele mesmo ano.

Em nossa avaliação, todas essas opções parecem constituir rótulos eufemísticos, de óbvia insuficiência semântica, já que, para além de mera desordem ou indisciplina, a conduta infracional a bordo pode chegar a pôr em risco bens jurídicos supremos, como a vida e a incolumidade física dos viajantes.

Assim, parece que mais adequado seria o emprego do adjetivo “infrator”, termo idôneo a abranger todas as categorias de conduta antijurídica, desde as mais simples até aquelas de maior grau ofensivo, que exemplificativamente se arrolam abaixo, tomando-se por base os supracitados textos do Anexo 17 à Convenção de Chicago, o Doc. 10117 da ICAO e demais instrumentos normativos congêneres:

Em segundo lugar, deve-se referenciar a carência normativa - não somente no Brasil, mas mundo afora - de que se ocupou a 33ª Assembleia Geral da ICAO, realizada em 2001, a qual aprovou, entre outras, a Resolução A33-4, que conclama todos os Estados contratantes a editarem as necessárias leis e regulamentos em seu âmbito interno que possam oferecer tratamento normativo efetivo para estes fatos. 

No Brasil, assim como em diversos outros países, em que pesem tais diretrizes da ICAO e o rogo incessante de vários setores da indústria em favor da adoção de legislação própria para disciplinar o tema, ainda não sobreveio providência normativa específica para tratar adequadamente a questão.  E as normas hoje existentes limitam-se a atos infralegais e leis menos-que-perfeitas2, incapazes de fazer frente à alta complexidade do fenômeno.  Deveras, o ordenamento jurídico brasileiro reclama imediata providência legal sobre a matéria, por ser de relevância inenarrável para a Segurança da Aviação.

No campo da prevenção, a indústria tem sido incansável na tentativa de oferecer treinamento adequado ao pessoal de voo e ao pessoal aeroportuário com vistas ao gerenciamento deste tipo de ocorrência, muito embora segurança pública seja tarefa estranha às atividades próprias da aviação civil.  Trata-se, pois, de mera contribuição suplementar da indústria para mitigar efeitos de um problema que ultrapassa seus limites vocacionais próprios.

Além disso, algumas companhias desenvolvem, sob os auspícios ou conjuntamente com a autoridade aeronáutica à qual se vinculam, procedimentos específicos a serem utilizados pelos tripulantes, tanto no campo da prevenção quanto da repressão, ora através de mecanismos de aviso prévio (warnings)3, ora pela adoção de medidas restritivas propriamente ditas, quando necessárias, sem prejuízo de demais normas de natureza processual penal que se aplicam ao público em geral, aí incluídas as providências que podem ser adotadas pelos tripulantes ou outros passageiros na qualidade de cidadãos (ex.: art. 301, CPP).

Mas isto está longe de suficiente.  Há várias outras questões jurídicas que necessitam ser enfrentadas pelo legislador para que se possa oferecer aos bens jurídicos em jogo a necessária proteção. 

Em primeiro lugar, há que se considerar e classificar as possíveis infrações a bordo, cominando-se-lhes sanções consentâneas à sua gravidade.  Com efeito, na maior parte dos casos, poderia ser recomendável a aplicação de meras sanções de natureza administrativa, impostas ao passageiro-usuário do serviço público de transporte aéreo como corolário de uma das facetas do exercício do poder de polícia pelo Estado, que fiscaliza os condicionamentos às liberdades em razão do interesse público: a segurança dos voos. 

Por outro lado, faz-se necessário estabelecer de forma inequívoca o papel de cada um dos participantes do sistema de transporte aéreo no que diz respeito às ocorrências de infrações a bordo, i.e., as atribuições, deveres e poderes dos comandantes de aeronave, demais tripulantes, agentes aeroportuários e empresas concessionárias.

O Comandante da aeronave detém amplos poderes instrumentais e necessários à garantia da segurança da operação de voo.  Trata-se de munus sui generis previsto em nosso atual Código Brasileiro de Aeronáutica. Além disso, a Convenção de Tóquio de 1963 buscou colmatar algumas lacunas normativas, sobretudo na esfera processual penal, atribuindo ao Comandante da aeronave, de modo inequívoco, poderes necessários ao exercício de suas funções atinentes à preservação a segurança, além de oferecer-lhe imunidade em face de possíveis pretensões voltadas à sua responsabilização civil ou penal por seus atos praticados.

Mas há muito mais a ser detalhado, idealmente por intermédio de quadro normativo específico, no que diz respeito à atribuição de cada participante do sistema, detalhamento das formas procedimentais e processuais aplicáveis, e tipificação certeira das infrações a bordo, tudo com vistas a minimizar aquele que é um dos maiores problemas de nosso sistema legal: a incerteza jurídica.  

Ressalte-se que tal percepção vai ao encontro do compromisso internacional genérico assumido pelo Brasil perante a ordem internacional, no qual há expectativa de que as normas e práticas recomendadas pela ICAO sejam, tanto quanto possível, internalizadas em nosso ordenamento através de providências legislativas capazes de prover adequado tratamento a este grave problema. 

Por fim, ressalte-se que a questão do conflito de leis no espaço requer um ambiente de cooperação internacional cada vez maior, de forma que, sem embargo das normas específicas de cada Estado, as provisões sancionatórias aplicáveis a passageiros infratores não possam ser esquivadas por artifícios ou obstáculos de natureza processual.  Esta foi, aliás, a principal mens legis subjacente a algumas convenções como a de Tóquio de 1963, que objetivou uniformizar entendimentos acerca de importantes tópicos processuais, como a competência jurisdicional e a extradição. 

Neste sentido, cumpre destacar a importância extrema do mais recente instrumento normativo internacional voltado para a segurança do transporte aéreo: o Protocolo Adicional à Convenção de Tóquio (Montreal, 2014).  Embora uma análise mais detalhada do Protocolo de Montreal de 2014 extrapole os limites atribuídos a este texto, é mister indigitar que tal instrumento logrou preencher diversas falhas, incertezas e lacunas existentes no campo da jurisdição processual penal internacional, obrigando os Estados contratantes à adoção de medidas processuais adequadas no caso de determinadas infrações suficientemente graves praticadas a bordo de aeronaves por passageiros, incluindo-se a agressão física ou ameaça a tripulantes ou desobediência a ordens e instruções legitimamente expedidas pelo Comandante da aeronave.

Além disso, de suma importância para o debate atual sobre passageiros infratores, o Protocolo de 2014 prevê taxativamente o direito de as companhias aéreas buscarem indenização pelas perdas e danos sofridos no curso da administração do conflito gerado a bordo por passageiros infratores, passando estes a ser responsáveis pela reparação dos custos envolvidos com pousos em aeródromos intermediários, cancelamentos, taxas aeroportuárias, custos por atrasos subsequentes etc.

O importantíssimo Protocolo de Montreal de 2014 entrou em vigor em 1? de janeiro de 2020, logo após a ratificação pelo 22? Estado, a Nigéria, em 26 de novembro de 2019.  O Brasil assinou o referido instrumento mas ainda não o ratificou.  Trata-se, portanto, de oportunidade ímpar para o nosso País, na vanguarda internacional e na esteira de demandas normativas internas já antigas, proceder à ratificação do Protocolo, aproveitando, outrossim, o ensejo de sua tramitação no Congresso para a efetiva elaboração, oportuna e necessária, de novel legislação própria e adequada ao tema das infrações cometidas a bordo.

___________

1 “The terms ‘unruly passengers’, ‘disruptive passengers’ and  ‘unruly and disruptive passengers’ are commonly understood as referring to passengers who fail to respect the rules of conduct on board aircraft or to follow the instructions of crew members and thereby create a threat to flight safety and/or disturb the good order and discipline on board aircraft”.  In: ICAO.  Doc 10117.  Manual on the Legal Aspects of Unruly and Disruptive Passengers.  1a. Ed.  Montreal: 2019

2 Refere-se, aqui, à conhecida classificação das leis quanto à sanção: perfeitas, mais-que-perfeitas, imperfeitas, menos-que-perfeitas.

3 A Agência Regulatória Norte-Americana (FAA) vinha aplicando as chamadas “warnings” e “counseling” aos infratores a bordo.  O aumento exacerbado dessas ocorrências recentemente, assim como sua intensidade e efeitos, levou o FAA a adotar a política de “tolerância zero” a partir de janeiro deste ano, aplicando diretamente multas vultosas, uma delas atingindo a cifra de 45 mil dólares.

Paulo M. Calazans
Advogado especialista em Direito Público. Pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho pela UCAM/RJ. Mestre em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC-Rio. Membro da Comissão de Direito Aeronáutico e Aeroespacial da OAB/RJ e da European Air Law Association. Ex-professor da PUC-Rio. Organizador e palestrante em diversos congressos e seminários nas áreas de Direitos Humanos, Direito Constitucional e Direito Aeronáutico. Coautor do livro "Temas de Constitucionalismo e Democracia"; coautor em diversas coletâneas e autor de inúmeros artigos em periódicos jurídicos. Sócio do escritório Vinhas e Redenschi no Rio de Janeiro.

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