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Lei do clube-empresa e regime centralizado de execuções: um 3º tempo aos clubes de futebol

Em meio ao crescente endividamento de clubes de futebol nacionais, é promulgada a lei 14.193/21 que, a despeito da promessa de revolucionar o esporte, cria um regime de privilégios e contradições.

24/9/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

De todas as razões pelas quais o povo brasileiro é identificado ao redor do mundo, é consenso que o futebol é uma das mais características expressões daqueles que têm o privilégio de ostentar suas raízes brasileiras. Todavia, ainda que inegável o engajamento dos fiéis torcedores, percebeu-se, nos últimos anos, um crescente endividamento dos clubes de futebol nacionais. A má-gestão esportiva, aliada à inesperada pandemia de covid-19, que esvaziou os estádios e comprometeu grandes fontes de renda dos clubes, culminou em dívidas bilionárias ostentadas por clubes de pequeno a grande porte, de modo a evidenciar uma verdadeira democratização – na pior de suas acepções – da dívida esportiva nacional.

Nesse sentido, vê-se o Direito brasileiro caminhando no sentido de buscar, por meios jurídicos próprios, formas efetivas de soerguimento dos clubes de futebol, a exemplo do recente deferimento da recuperação judicial do Figueirense FC, tradicionalíssimo representante do futebol catarinense. É justamente daí que, no dia 9 de agosto de 2021, entrou em vigor a lei 14.193/21 ("LSAF"), que institui a Sociedade Anônima do Futebol ("SAF"), de modo a estabelecer medidas que, em tese, ajudarão os clubes a se tornarem ainda mais duradouros e viáveis economicamente.

A fim de que se entenda o funcionamento de uma SAF, pode-se compará-la, em termos, com a Sociedade Anônima convencional. Em suma, tem-se que a constituição de uma Sociedade Anônima se dá, dentre outras, em razão da necessidade de captação de recursos de investidores para alavancar a operação da empresa, de modo que há a possibilidade de se optar pela abertura de seu capital por meio da emissão de valores mobiliários a serem negociados no mercado financeiro. Nesse caminho, a LSAF prevê que o financiamento desse novo tipo societário ocorrerá por meio da emissão de debêntures, observadas determinadas regras para a SAF.

De acordo com a LSAF, o clube de futebol que optar pela sua transformação neste novo tipo societário – ou mesmo cisão do departamento de futebol nos termos do inciso II do art. 2º da lei em cotejo - deve respeitar alguns parâmetros que, em um primeiro momento, poderão servir como grande incentivo para o desenvolvimento do esporte no país. Isto porque, para se adequar ao novo modelo, o clube deverá, necessariamente, desenvolver tanto o futebol masculino quanto o feminino em competições profissionais.

Além disso, é importante destacar que, a partir da entrada em vigor da LSAF, não só clubes de futebol já instituídos poderão aderir à SAF. Também podem ser criadas Sociedades Anônimas de Futebol por iniciativa tanto de pessoas naturais e jurídicas quanto de fundos de investimentos interessados em começar um novo empreendimento; bem como é possível que o departamento de futebol de clube já existente se separe do clube de origem e se transforme em uma SAF, de modo que a constituição de um não implica a extinção do outro.

No entanto, determinados bens da instituição de origem poderão permanecer sob a propriedade desta, a exemplo das instalações desportivas – estádio, centro de treinamento etc. Nessa hipótese, faz-se necessário que se estabeleçam as condições de usufruto, pela SAF, dessas instalações, visto que, afinal, esses são elementos fundamentais para a manutenção do clube-empresa.

Haja vista o fato de a LSAF permitir o exercício da atividade futebolística em regime híbrido, por meio da manutenção do clube como associação civil acrescida da constituição de uma SAF, houve a preocupação de se regulamentar a alocação das obrigações originais do clube, uma vez que esta matéria foi uma das principais razões para a criação desse novo regime.

Nesse sentido, a fim de evitar eventuais decisões que venham a tratar o clube e a SAF como um único ente, prejudicando a aplicação do novo regime, a LSAF prevê, como regra geral, a ausência de responsabilidade da SAF em relação às obrigações do clube ou pessoa jurídica que a constituiu, sejam estas anteriores ou posteriores à sua constituição (art. 9º). Percebe-se, assim, o alinhamento da LSAF com a recente tendência legislativa de delimitar de forma clara a responsabilidade dos entes empresários, tal como fez a Lei de Liberdade Econômica (lei 13.874/19) e a reforma da Lei de Recuperação Judicial e Falência (lei 14.112/20).

Contudo, em exceção à regra em comento, a SAF será responsável por: (i) obrigações relacionadas às atividades específicas do seu objeto social; e (ii) obrigações transferidas nos termos do art. 2º, § 2º da LSAF, quais sejam: (ii.1) contratos de trabalho, relacionados diretamente ao departamento de futebol; (ii.2) contratos de imagem; e (ii.3) contratos vinculados à atividade de futebol.

Em que pese tais obrigações sejam de responsabilidade da SAF, a LSAF prescreve que o seu adimplemento, no que toca ao efetivo pagamento dos valores devidos, será feito pelo clube ou pessoa jurídica original, por meio das formas prescritas no art. 10, a saber: (i) por meio de receitas desses entes; (ii) pela destinação de 20% das receitas mensais da SAF, por meio de aplicação do Regime Centralizado de Execuções; e (iii) pela destinação de 50% dos dividendos, dos juros sobre capital próprio ou de outra remuneração da SAF. Ressalte-se que a destinação dos montantes para esta finalidade possui caráter vinculante, isto é, não podem ser direcionados para outro fim senão ao pagamento dessas obrigações, sob pena de responsabilização pessoal dos administradores da SAF, bem como do presidente do clube ou sócios da pessoa jurídica original.

Embora a Seção IV da LSAF, destrinchada acima, verse sobre a alocação de obrigações em um contexto de constituição da SAF e não a respeito de um cenário de insolvência já estabelecido, o seu art. 12, de forma um tanto quanto deslocada, acaba por introduzir regime extremamente protetivo desenhado à SAF. Em seu teor, prevê que, enquanto esta cumprir com os pagamentos das obrigações anteriores à sua constituição, não poderá sofrer qualquer constrição ao seu patrimônio. Ao tratar do tema, provavelmente o legislador já adiantava eventual cenário de pagamento de dívidas por meio dos regimes introduzidos pela LSAF e a seguir apresentados, levando-se em consideração, portanto, que o clube que constituísse uma SAF contaria com obrigações inadimplidas anteriores à constituição desta. Nesse sentido, sobressai-se o intuito da LSAF: não se busca em primeiro plano o crescimento do futebol brasileiro por meio de adaptação de regimes societários para captação de investimentos, e sim instrumentalizar escape a clubes que hoje amargam dívidas milionárias e enfrentam a ofensiva de credores via medidas judiciais executórias.

Objetivamente, por meio do art. 12 da LSAF, o que o legislador faz é criar um plano de pagamentos de credores anteriores à constituição da SAF, indicando que o pagamento será feito a partir das receitas dispostas no art. 10 da lei. Em troca, concede uma proteção patrimonial ao clube-empresa, salvaguardando-o de eventuais constrições. Assim, pecou o legislador por não deixar clara a sua real intenção, de modo que a alocação desse dispositivo na Seção IV tornou a discussão mais complexa. Nessa linha, seria mais pertinente se tivesse reservado a discussão sobre os débitos à Seção seguinte, a qual trata sobre o modo de quitação das obrigações.

Quanto a esse tópico, a LSAF adota o concurso de credores como método de quitação de obrigações, divididos em duas modalidades: Regime Centralizado de Execuções ("RCE") e recuperação judicial ou extrajudicial, nos termos da lei 11.101/2005. Este artigo analisará tão somente o primeiro, haja vista sua novidade e a necessidade de corte metodológico para sua melhor compreensão.

O RCE possui nítida inspiração no Procedimento de Reunião de Execuções ("PRE") instituído pelo Tribunal Superior do Trabalho, por meio do provimento 1 de 2018, o qual se baseia em uma fase de parcelamento dos débitos trabalhistas, denominado Plano Especial de Pagamento Trabalhista ("PEPT") e outra – não necessariamente posterior – de excussão de bens, denominada Regime Especial de Execução Forçada ("REEF"). Entre os clubes, o primeiro regime especial era aplicado sob a forma do ato trabalhista, o qual foi adotado por diversos times, podendo-se citar como casos bem-sucedidos o Clube de Regatas do Flamengo e o Guarani Futebol Clube, os quais chegaram a zerar seus passivos trabalhistas; e como exemplo malsucedido o Clube de Regatas Vasco da Gama, o qual não conseguiu honrar os pagamentos e teve o REEF iniciado recentemente, com a execução una de R$ 93,5 milhões.  

Na redação da Lei do Clube-Empresa, o RCE manteve a premissa do PRE de concentrar em um único Juízo – cível ou trabalhista – as diversas execuções do clube, bem como suas receitas e os valores arrecadados por meio da SAF na forma do art. 10 da lei. O requerimento para criação do RCE será direcionado pelo clube ao Presidente do respectivo tribunal, o qual verificará a presença dos requisitos para tanto e então autorizará ou não a centralização das execuções, direcionando a demanda ao órgão de centralização de execuções já existente ou, caso o Tribunal não o possua, ao juízo que tiver ordenado o pagamento em primeiro lugar. Quanto a esse ponto, cabe ressaltar que a lei limitou o RCE às dívidas trabalhistas e cíveis, não fazendo qualquer menção às dívidas tributárias, cuja execução manterá o seu trâmite tradicional.

De maneira semelhante à recuperação judicial, o clube que requerer a instalação do RCE deverá apresentar, em 60 dias, o seu plano de pagamento aos credores, acompanhado de documentos contábeis e de termo de compromisso de controle orçamentário. 

Embora a Lei do Clube-Empresa preveja expressamente a possibilidade de recuperação judicial dos clubes de futebol, o RCE por si só já consiste em modo de superação de crise extremamente vantajoso. Apesar de não prever a hipótese de deságio por iniciativa do devedor – o deságio só pode ocorrer com a anuência do credor, após negociações –, dispõe de outras vantagens que tornam o regime muito atraente aos clubes que possuem dívidas vultosas.

Nesse sentido, pode-se citar a atualização monetária do montante devido que, durante todo o regime de pagamentos, será feita por meio da taxa Selic. Ademais, o RCE em si pode ser considerado como uma espécie de stay period, uma vez que, durante sua vigência e, enquanto os pagamentos forem cumpridos, o patrimônio do clube não poderá sofrer qualquer constrição.

Nessa linha, enquanto a recuperação judicial dispõe de um stay period de 180 dias renováveis por mais 180, o RCE possibilita ao clube um período de blindagem de 6 anos – sua duração máxima – renováveis por mais 4. Para que haja tal renovação, basta que ao fim do período inicial o clube tenha adimplido ao menos 60% do seu passivo original. Assim, os clubes que optam por esse tipo de recuperação podem fruir de um fôlego de 10 anos, ganhando uma grande vantagem frente aos devedores comuns.

Ao dispor sobre os meios de recuperação, contudo, o legislador não foi feliz quanto à redação do art. 13, uma vez que, embora a seção que versa sobre a quitação das dívidas esteja contida no capítulo denominado "Da Sociedade Anônima do Futebol", o texto do dispositivo não faz menção à SAF ao citar os meios de quitação das obrigações, se referindo somente ao clube e à pessoa jurídica original. Em que pese pareça uma simples questão de redação, a ausência da referência à SAF pode levar a questionamentos judiciais futuros quanto à sua legitimidade para aderir ao RCE. Ademais, questiona-se: seria necessária a constituição de uma SAF para que um clube estabeleça um RCE?

Deve-se pontuar, ainda, o risco de esvaziamento do instituto da recuperação judicial em relação a esses clubes. Isto, pois, existe a possibilidade de que o RCE garanta um prazo de até 10 anos para que os times paguem suas dívidas, o que inclui as dívidas trabalhistas. Nesse sentido, haja vista o fato de as dívidas trabalhistas representarem boa parte do montante devido pelos clubes de futebol e, considerando que a recuperação judicial proporciona um prazo máximo de 1 ano para pagamento desses créditos, o início de um processo recuperacional poderia ser muito menos atrativo, o que pode fazer com que seja a última escolha dos clubes, feita somente quando as finanças estiverem desequilibradas a tal ponto que não seja mais viável o soerguimento do clube por qualquer mecanismo.

Assim, conclui-se que o mote da Lei do Clube-Empresa é garantir condições extremamente vantajosas aos times de futebol – seja na forma de clube ou de SAF –, e o faz de um modo que pode esvaziar a sua própria definição: constituição da SAF. Isto porque, a redação ampla dos seus dispositivos que versam sobre quitação de obrigações permite a adesão de clubes não-empresas a esses regimes. Com isso, restringe-se a atratividade da SAF a poucos clubes, mais bem estruturados, o que poderá transformar esse novo tipo societário em letra-morta, com casos pontuais como o do Cruzeiro, que aprovou em assembleia recente a constituição desse novo tipo societário.

Se o novo marco legal irá ocasionar o crescimento do futebol ou não, só o tempo dirá, afinal, como bem sabem os admiradores desse esporte, o jogo só acaba quando o juiz apita.

Lucas Leandro Silva do Nascimento
Graduado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e advogado da área de Solução de Conflitos no escritório Lobo de Rizzo Advogados.

Pedro Maués de Freitas
Graduando em Direito pela PUC/SP e colaborador da área de Solução de Conflitos no escritório Lobo de Rizzo Advogados.

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