Ao longo dos séculos e séculos de história da humanidade o establishment sempre esteve atento ao modo como as pessoas se vestiam. Esse fato acontece desde os primórdios da civilização ocidental quando foram instituídos os primeiros códigos não escritos sobre roupas e adereços, conforme transcreve-se:
Os progressos da civilização material, o estabelecimento da feudalidade, a decomposição do poder monárquico tiveram como efeito o acréscimo dos rendimentos senhoriais e a elevação do nível de vida aristocrático. Graças ao aumento dos recursos proveniente da exploração do direito de convocação dos vassalos e do crescimento da produção rural, puderam estabelecer-se cortes principescas ricas e faustosas que foram o solo nutriente da moda e de suas demonstrações de luxo. Ao que é preciso acrescentar o impulso das cidades, o estabelecimento das feiras e das feitorias distantes, a intensificação das trocas comerciais, que permitiram o aparecimento de novos núcleos de grandes fortunas financeiras. No século XIII, enquanto a expansão é cada vez mais dirigida pelas cidades e enquanto as cidades da Itália estão no centro da economia-mundo, os homens de negócios, os comerciantes, os banqueiros se enriquecem, uma alta burguesia começa a copiar as maneiras e os gostos de luxo da nobreza. Foi sobre esse fundo de decolagem econômica do Ocidente, de enriquecimento das classes senhoriais e burguesas que a moda pôde estabelecer-se. (LIPOVESTSKY, 2009, p. 46)
E essa situação acontece desde a existência dos grandes impérios das civilizações antigas, tanto no oriente quanto no ocidente, porque as roupas e seus adornos sempre foram utilizados como formas de autoafirmação e distinção social existindo normas tácitas que definiam o que era, ou não, apropriado para cada classe social e para as figuras chaves do poder, no caso os reis, rainhas, imperadores e imperatrizes.
Tal controle deve-se ao fato de que “a moda é o fenômeno que melhor demonstra esta capacidade e necessidade de mudanças da sociedade, que é refletida no processo de consumo. Moda essencialmente envolve mudança, definida pela sucessão de tendências e manias em espaço curto de tempo, é um processo de obsolescência planejada” (MIRANDA, 2008, pág. 17)
Diante disso, surgiu ao longo da história diversas leis, denominadas suntuárias ou sumptuárias, com o propósito de regular hábitos de consumo e restringir o luxo e a extravagância quanto a vestes, comida, móveis, dentre outros (PITTA, 2011).
Contudo, a finalidade de tais normas não era a busca pelo bem comum da sociedade ou disciplinar um segmento da economia, objeto da maioria das normas contemporâneas, mas corroborar o papel de distinção social e político que os trajes e adereços exerciam num momento histórico em que a emergente burguesia, representada pelos comerciantes, buscava ocupar um lugar de destaque entre as classes sociais dominantes da época. (BOM, 2018).
Tais normas espalharam-se pelo continente europeu e tinham o propósito de impedir a ascensão social, ou seja, não permitir que as classes mais humildes vestissem-se como os nobres impedindo a mobilidade entre as classes sociais (PITTA, 2011).
Esse problema persistiu por séculos e séculos no seio de nossa sociedade e nem o aparecimento do Estado conseguiu banir essa triste realidade histórica. (LIPOVESTSKY, 2009, pág. 28)
Para alguns historiadores somente Napoleão Bonaparte teria tido coragem de enfrentar a questão revogando mencionadas leis que não atingiram a finalidade pretendida (LIPOVESTSKY, 2009, pág. 38)
Apesar dessa triste realidade a moda tornou-se muito importante para o mundo ocidental transformando-se em uma das principais formas de subsistência econômica para muitas comunidades. O estilista Pierre Cardin certa vez destacou essa importância com a seguinte afirmação:
“Um mundo sem a moda seria cinza e triste, e milhões de pessoas não teriam do que viver.” Fonte: clique aqui.
Nesse contexto, verifica-se que as leis suntuárias ou sumptuárias nada tem a ver com o direito da moda pois destinavam-se a regular o modo como as pessoas deveriam vestir-se e o direito da moda em apertada síntese pretende disciplinar as controvérsias surgidas em torno da cadeia produtiva da indústria da moda (MARTINS & PEREIRA, 2020, p. 55-70)
Ao revés, o Provimento 205/21, que "dispõe sobre a publicidade e a informação da advocacia", ao regulamentar a forma do marketing nas redes sociais parece instituir uma verdadeira “lei suntuária ou sumptuária” pois disciplina usos e costumes dos advogado(a)s, de maneira no mínimo duvidosa, para não dizer ilegal e inconstitucional, posto cediço que de acordo com o artigo 5º, III, da Constituição da República, ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.
E isso fica transparente pela leitura superficial da redação do parágrafo único do art. 6° do Provimento 205/21 que preceitua:
Art. 6º
Parágrafo único. Fica vedada em qualquer publicidade a ostentação de bens relativos ao exercício ou não da profissão, como uso de veículos, viagens, hospedagens e bens de consumo, bem como a menção à promessa de resultados ou a utilização de casos concretos para oferta de atuação profissional.
Ora nem no período mais sombrio de nossa sociedade, ou seja, na Idade das Trevas ou Idade Média, época em que se tem notícia da edição das primeiras leis suntuárias ou sumptuárias, a decisão de adoção desse mecanismo foi feita sem amparo de lei em sentido formal.
Ademais, temos que ponderar que “ostentação”, que nada mais é que a exibição de luxo, trata-se de conceito aberto que dá margem a diversas interpretações principalmente em um país de proporções continentais como o nosso levando-nos a concluir que o que é ostentação na Paraíba pode não o sê-lo em Goiás, no Distrito Federal, no Rio de Janeiro, em São Paulo etc. E vice-versa. (GADELHA, 2021)
Isso porque não possuímos no Brasil um conceito legal de luxo. Na França diferente do Brasil o luxo é um termo legalmente definido sendo em suma o que diferencia a alta costura do prêt-à-porter. A denominação alta-costura é uma criação francesa que só pode ser concedida ou retirada por falhas em cumprir regulamentos necessários e por uma comissão designada e nomeada pelo Ministério da Indústria da França. Isso mesmo! Na França até os dias de hoje o Estado regulamenta a indústria da moda.
Por sua vez, o prêt-à-porter, foi criado por Pierre Cardin, em 1959, apesar de muitos atribuírem a sua propagação ao estilista Yves St. Laurent, em virtude da crise do pós-guerra, que o levou a ter a ideia de fazer uma coleção para a Printemps, uma loja de departamentos de Paris, França, na qual a clientela poderia entrar, escolher uma peça e levar para casa. Aliás, essa iniciativa inovadora de Pierre Cardin contrariou o Sindicato de Criadores de Moda, também conhecido como Chambre Syndicale, que o expulsou acusando-o de vulgarizar e tirar o valor do luxo da alta-costura. Contudo, dez anos mais tarde ele voltou ao Chambre Syndicale e tornou-se presidente.
Nesse contexto, a alta costura expressão máxima e única do luxo, e que não se resume apenas as roupas, é tratada como uma criação artística fato, inclusive, que levou Jeanne Belhumeur advogada canadense a sofrer diversas críticas ao lançar em 2000 o seu livro Droit International de la Mode, em português Direito Internacional da Moda, resultante de sua tese de doutorado na Universidade de Genebra, na Suíça.
Isso porque apesar do seu trabalho ser inovador muitos o criticaram argumentando que ele foca apenas nas criações da alta-costura que necessitam de proteção legal por pertencerem ao universo da arte mesmo tendo ele abordado questões atinentes à proteção das criações da moda no âmbito da França, e em âmbito internacional, e o seu regime jurídico deixando de lado o estudo do prêt-à-porter, ou seja, do estilo que movimenta a maior parte da cadeia produtiva da indústria da moda. (OSMAN, 2017).
Assim, data venia me parece que o Provimento 205/21, que "dispõe sobre a publicidade e a informação da advocacia", deverá ser reavaliado com muita cautela sob pena de inconstitucionalidade, formal e material, e violação dos direitos fundamentais.
Adotemos o ensinamento de São Francisco de Assis, jovem italiano orgulhoso, vaidoso e rico que deixou para trás toda sua riqueza, dedicando sua vida à serviço dos pobres e doentes, tornando-se santo da Igreja Católica Apostólica Romana, “comece fazendo o que é necessário, depois o que é possível, em breve estarás fazendo o impossível.”
___________
BOM, Olga. A transformação do vestir: um estudo sobre leis suntuárias, moda e modernidade. Anais do 14º Colóquio de Moda, 2018 Curitiba, PUCPR, 2018.
BRASIL. DIÁRIO ELETRÔNICO – ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Provimento nº 205/2021. Disponível em: clique aqui. Acesso em 21 set. 2021
ETIQUETA ÚNICA. Prêt-à-Porter - Conheça seu Significado e sua História. Disponível em: clique aqui. Acesso em 21 de set de 2021
GADELHA, Marina. A OAB e o direito à ostentação. Disponível em: clique aqui.
LIPOVESTSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. Tradução: Maria Lúcia Machado. 7ª ed. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009.
MARTINS, S. L. A.; PEREIRA, C. L. A. Mas o que é este tal de fashion law? Qual a sua importância para os negócios da moda? In: Tessituras da moda: diálogos entre o vestir, modos e comportamentos. Organização Nélia Cristina Pinheiro Finotti. Goiânia: Editora Scotti, 2020, p. 55-70.
MIRANDA, Ana Paula de. Consumo de moda: a relação pessoa-objeto. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2008.
OSMAN, Bruna Homen de Souza. Fashion Law: desconstrução do direito da moda no Brasil. 2017. 105 f. Dissertação (Mestrado em Direito Político e Econômico) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2017.
PITTA, Denise. Sobre as Leis Suntuárias na História. Blog fashion bubbles. Rio de Janeiro, 14 de fev. de 2011. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 21 de set de 2021.