Com o avanço da vacinação da população brasileira contra o Covid-19 e a diminuição do número de casos de infecções e de óbitos decorrentes do vírus, muitas empresas têm adotado políticas de retorno ao trabalho presencial.
Contudo, esse retorno gradativo ao trabalho presencial implica na adoção de medidas protetivas das empresas para com seus funcionários, como a obrigatoriedade do uso de máscara, distanciamento social, disponibilização de álcool, higienização dos ambientes e, atualmente, tem-se discutido a possibilidade de os empregadores exigirem a vacinação contra o Covid-19 de seus funcionários. Além dessa obrigatoriedade de vacinação, questiona-se também quais as condutas que as empresas podem adotar em relação aos funcionários não vacinados.
A fim de responder com mais propriedade a esses questionamentos, é essencial analisarmos o atual contexto legislativo e jurisprudencial a respeito da responsabilidade do empregador quanto ao meio ambiente de trabalho, da compulsoriedade da vacinação e da possível limitação de direitos em caso de não vacinação.
Em 6 de fevereiro de 2020, logo no início da pandemia do covid-19, foi publicada a lei 13.979/20, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da pandemia. Dentre as medidas previstas, a lei estabeleceu que “(...) as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências (...) determinação de realização compulsória de (...) vacinação e outras medidas profiláticas” (art. 3º, III, d).
A lei 13.979/20 foi objeto de Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIn) 6586 e 6587 em relação à vacinação compulsória, e também do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1267879, no qual se discutiu o direito à recusa à vacinação por convicções filosóficas ou religiosas.
Em relação à vacinação compulsória, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela constitucionalidade da lei que possibilita a vacinação compulsória, mas ressaltou que a vacinação compulsória não significa vacinação forçada. A tese fixada pelo STF foi no seguinte sentido:
A vacinação compulsória não significa vacinação forçada, por exigir sempre o consentimento do usuário, podendo, contudo, ser implementada por meio de medidas indiretas, as quais compreendem, dentre outras, a restrição ao exercício de certas atividades ou à frequência de determinados lugares, desde que previstas em lei, ou dela decorrentes, e (i) tenham como base evidências científicas e análises estratégicas pertinentes, (ii) venham acompanhadas de ampla informação sobre a eficácia, segurança e contraindicações dos imunizantes, (iii) respeitem a dignidade humana e os direitos fundamentais das pessoas; (iv) atendam aos critérios de razoabilidade e proporcionalidade, e (v) sejam as vacinas distribuídas universal e gratuitamente; e (B) tais medidas, com as limitações expostas, podem ser implementadas tanto pela União como pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, respeitadas as respectivas esferas de competência.1
Ao mesmo tempo, acertadamente o STF entendeu que a vacinação compulsória não viola a liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis ou do poder familiar, fixando a tese de repercussão geral (Tema 1103):
“É constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, (i) tenha sido incluída no Programa Nacional de Imunizações, ou (ii) tenha sua aplicação obrigatória determinada em lei ou (iii) seja objeto de determinação da União, Estado, Distrito Federal ou Município, com base em consenso médico-científico. Em tais casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar”.2
Especificamente no meio ambiente do trabalho, às empresas cabe a responsabilidade de fazer valer o direito à saúde de todos os trabalhadores, uma vez que a Constituição Federal já prevê que “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais (...) [a] redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança” (art. 7º, XXII).
Da mesma forma, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) determina que as empresas têm relevantes deveres em relação à saúde de seus funcionários:
Art. 157 - Cabe às empresas:
I - cumprir e fazer cumprir as normas de segurança e medicina do trabalho;
II - instruir os empregados, através de ordens de serviço, quanto às precauções a tomar no sentido de evitar acidentes do trabalho ou doenças ocupacionais;
III - adotar as medidas que lhes sejam determinadas pelo órgão regional competente;
IV - facilitar o exercício da fiscalização pela autoridade competente.
No mesmo sentido, a CLT também prevê que os trabalhadores também têm obrigações relacionados ao meio ambiente de trabalho saudável, podendo, inclusive, sofrer sanções em caso de violações às normas estabelecidas pelo empregador:
Art. 158 - Cabe aos empregados:
I - observar as normas de segurança e medicina do trabalho, inclusive as instruções de que trata o item II do artigo anterior;
II - colaborar com a empresa na aplicação dos dispositivos deste Capítulo.
Parágrafo único - Constitui ato faltoso do empregado a recusa injustificada:
a) à observância das instruções expedidas pelo empregador na forma do item II do artigo anterior;
b) ao uso dos equipamentos de proteção individual fornecidos pela empresa.
Ainda, a legislação previdenciária também dispõe na lei 8.213/1991 que “A empresa é responsável pela adoção e uso das medidas coletivas e individuais de proteção e segurança da saúde do trabalhador” e que “Constitui contravenção penal, punível com multa, deixar a empresa de cumprir as normas de segurança e higiene do trabalho” (art. 19, §§ 2º e 3º).
Por derradeiro, a lei 13.979/20 estabelece que “Durante a emergência de saúde pública decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019, o poder público e os empregadores ou contratantes adotarão, imediatamente, medidas para preservar a saúde e a vida de todos os profissionais considerados essenciais ao controle de doenças e à manutenção da ordem pública.” (art. 3º-J).
Deste modo, analisando a legislação específica e o entendimento do STF sobre o assunto, concluímos que a vacinação, além de ser um direito dos cidadãos, trata-se também de um dever de todos, na medida em que a necessidade de imunização da coletividade transcende eventuais interesses particulares, por mais legítimas que essas eventuais escusas possam parecer para determinados cidadãos. Neste ponto, vale mencionar que a CLT também reconhece a prevalência do interesse coletivo sobre o privado, ao estabelecer em dispositivo que trata da interpretação das normas “que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público” (art. 8º).
Além de se tratar de um direito-dever dos cidadãos à vacinação, as empresas têm a obrigatoriedade de exigir que seus funcionários apresentem o comprovante de vacinação para retorno às atividades presenciais, sob pena de, não o fazendo, serem responsabilizadas por essa omissão, inclusive com a rescisão indireta do contrato de trabalho, situação que ocorre quando o funcionário dá a justa causa ao empregador.
Para que as empresas possam exigir a vacinação de seus funcionários, recomenda-se que prevejam no PCMSO (Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional) a obrigação de proporcionar aos seus funcionários o acesso às vacinas, seja facilitando seu encaminhamento à rede pública de saúde, seja prevendo programas de imunização no âmbito das empresas, bem como estabeleçam no PPRA (Programa de Prevenção de Riscos Ambientais) o risco biológico do Covid-19, especialmente para os empregadores que atuam na área da saúde.
Assim, os funcionários que retornarão às atividades presenciais deverão apresentar comprovante de vacinação contra o Covid-19 no prazo estipulado pela empresa ou justificativa médica para a não vacinação, como alergia a algum reagente da vacina ou contraindicação médica. Neste caso, deverá ser analisada individualmente qual conduta adotar em relação a esse funcionário, como, por exemplo, manutenção do home office.
Na hipótese de o funcionário se recusar a se vacinar por convicção pessoal, recomenda-se, inicialmente, a orientação do trabalhador sobre a importância da vacinação, com envolvimento da área de gestão de pessoas, do SESMT (Serviço Especializado em Engenharia de Segurança e Medicina do Trabalho) e da CIPA (Comissão Interna de Prevenção de Acidentes), se houver. Destacamos que essa orientação deve ser formalizada expressamente e não deve ter caráter punitivo, mas orientativo, uma vez que a aplicação de advertência prévia pela recusa à vacinação pode acarretar em impeditivo para a dispensa por justa causa, haja vista a impossibilidade de aplicação de dupla punição pelo mesmo fato.
Caso o trabalhador, mesmo após orientado quanto à importância da vacinação, recuse-se a vacinar-se por convicção pessoal, entendemos que será legítima a dispensa por justa causa pela empresa, por todos os motivos anteriormente citados.
Nesse sentido, tanto empregadores do setor público quanto do setor privado estão divulgando normativas quanto à obrigatoriedade de vacinação de seus funcionários. Como exemplo, podemos citar as prefeituras das cidades de São Paulo3 e Rio de Janeiro4, que emitiram decretos estabelecendo a vacinação obrigatória para servidores públicos municipais, sendo que a recusa sem justa causa será classificada com falta disciplinar. No setor privado, a companhia aérea Gol5 foi a primeira grande empresa do país a estabelecer a compulsoriedade da vacinação de seus funcionários, sob pena de rescisão do contrato de trabalho.
Alinhados a esse entendimento, os Tribunais trabalhistas estão chancelando as decisões das empresas que dispensam por justa causa funcionários que se recusam à vacinação6 e também negando rescisão indireta pedida por funcionários que entendem que não devem se vacinar7. O mesmo entendimento foi adotado pelo Ministério Público do Trabalho em seu “Guia Técnico Interno do MPT sobre vacinação da Covid-19”8, senão vejamos:
Diante da recusa, a princípio injustificada, deverá o empregador verificar as medidas para esclarecimento do trabalhador, fornecendo todas as informações necessárias para elucidação a respeito do procedimento de vacinação e das consequências jurídicas da recusa;
Persistindo a recusa injustificada, o trabalhador deverá ser afastado do ambiente de trabalho, sob pena de colocar em risco a imunização coletiva, e o empregador poderá aplicar sanções disciplinares, inclusive a despedida por justa causa, como ultima ratio, com fundamento no artigo 482, h, combinado com art. 158, II, parágrafo único, alínea “a”, pois deve-se observar o interesse público, já que o valor maior a ser tutelado é a proteção da coletividade.
Vale lembrar que as limitações impostas para cidadãos que não desejam se vacinar contra o Covid-19 não são novidades criadas nesta pandemia, já que existem há muito tempo compulsoriedade de vacinação para participação em concursos públicos, realização de matrícula escolar, alistamento militar e viagens internacionais, além da percepção do salário-família (art. 67, da lei 8213/91), sendo que as restrições decorrentes da não vacinação devem ser suportadas pelo cidadão que age egoisticamente.
Apesar de o assunto abordado ter se tornado sensível e polêmico não só na nossa sociedade quanto em outros países, concluímos que não há margem legal para que cidadãos possam optar se devem ou não se vacinar contra o covid-19, especialmente no ambiente de trabalho. A criação de diversas vacinas em tempo recorde para combater a maior crise sanitária dos últimos 100 anos deve ser louvada. Aqueles que têm desacreditado as vacinas devem ser orientados e, caso não queiram a imunização mesmo após esses esclarecimentos, deverão sofrer as restrições decorrentes de sua escolha.
Para superarmos a pandemia do covid-19, é essencial que todos hajam com espírito cívico, deixando de lado ideologias anticientíficas inadmissíveis neste século XXI. Quando as pessoas acatam voluntariamente as regras de saúde, não é preciso controle nem medidas forçosas, que são tão custosas em termos de pessoal e de tempo. A sociedade deve agir em conjunto na imunização, de forma a todos protegerem-se a si próprios, suas famílias e toda a coletividade em uma rede de proteção compartilhada que somente gerará frutos positivos a todos.
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1 STF, ADIn 6586, Relator(a): Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, julgado em 17/12/2020, Processo Eletrônico DJe-063, divulgado em 06/04/2021, publicado em 07/04/2021.
2 STF, ARE 1267879, Relator(a): Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 17/12/2020, Processo Eletrônico Repercussão Geral - DJe-064 , divulgado em 07/04/2021, publicado em 08/04/2021.
3 Decreto 60.442, de 6 de agosto de 2021. Disponível em clique aqui. Acesso em 06/09/2021.
4 Decreto 49.286, de 17 de agosto de 2021. Disponível em clique aqui. Acesso em 06/09/2021
5 Clique aqui. Acesso em 06/09/2021.
6 TRT da 2ª Região. Processo: 1000122-24.2021.5.02.0472. Data: 19/07/2021. Publicação: 23/08/2021. Órgão Julgador: 13ª Turma. Relator(a): Roberto Barros da Silva.
7 TRT da 15ª Região. Processo: 0010091-68.2021.5.15.0068. Data: 20/07/2021. Publicação: 22/07/2021. Órgão Julgador: 3ª Câmara. Relator(a): Rosemeire Uehara Tanaka.
8 Clique aqui. Acesso em 06/09/2021.