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O que diz a medida provisória que altera o marco civil da internet?

A polêmica medida provisória altera trechos importantes do marco civil da internet e tenta deixar para trás o PL das fake news.

15/9/2021

O presente artigo pretende discutir o teor dos artigos da MP 1.068/21 que alteram o Marco Civil da Internet (MCI) e compará-los com a versão atual do PL das Fake News. Tal discussão se dará da seguinte maneira: i) breve retrospectiva das circunstâncias em que a MP foi editada; ii) alterações no MCI promovidas pela MP frente ao PL das Fake News (PL 2.630/2020); e iii) considerações finais.

I

Às vésperas do feriado de 7 de setembro, o Presidente da República editou a MP 1.068/21, alterando o MCI sob o argumento de que tal medida traria maior proteção à liberdade de expressão no âmbito das redes sociais.

Como se sabe, o texto da MP foi objeto de ataques pelos mais variados flancos (veja-se, exemplificativamente, a ADI 6991), especialmente por conta da necessidade de preenchimento dos requisitos de relevância e urgência previstos no art. 62 da Constituição Federal e pelo potencial inviabilização da moderação de notícias inverídicas nas plataformas.

Parece-nos que as críticas referentes aos requisitos constitucionais são pertinentes, posto que, salvo a iminência das festividades da Proclamação da República e todas as disputas político-ideológicas que dela seguem, nada havia de urgência na matéria a ponto de legitimar a supressão da competência da função legislativa em tema tão delicado.

Entretanto, fazendo abstração dos eventuais motivos políticos que ensejaram a edição da MP e de sua constitucionalidade, pretende-se verificar sua congruência ou incongruência com as discussões levadas a cabo no âmbito do legislativo a respeito da moderação de perfis e conteúdos na internet.

II

A MP altera o MCI nos seguintes temas: i) âmbito de aplicação da lei; ii) definições; iii) direitos dos usuários; iv) regras de remoção de perfil e conteúdo; v) sanções; e vi) revogação de dispositivos do Marco Civil da Internet.

No que tange à extraterritorialidade de aplicação da legislação, inseriu-se parágrafo único no art. 1º do MCI para abranger sociedades empresárias sediadas no exterior, desde que os serviços sejam ofertados aos brasileiros ou possua um estabelecimento no país. Neste aspecto, o dispositivo segue o mesmo caminho do art. 1º, § 2º, do PL das Fake News e, para finalidade de comparação, diverge do art. 3º da LGPD, que não exige a presença de estabelecimento no país.

No que tange às definições, os incisos VII e VIII do art. 5º do MCI sofreram ligeiras modificações, mas o efetivamente relevante foi a inserção de dois incisos particularmente interessantes a respeito da definição de rede social e moderação em redes sociais.

O inciso IX dispõe que se considera rede social a "aplicação de internet cuja principal finalidade seja o compartilhamento e a disseminação, pelos usuários, de opiniões e informações (...) em uma única plataforma, por meio de contas conectadas ou acessíveis de forma articulada, permitida a conexão entre usuários, e que seja provida por pessoa jurídica que exerça atividade com fins econômicos e de forma organizada, mediante a oferta de serviços ao público brasileiro com, no mínimo, dez milhões de usuários registrados no país".

Este dispositivo do MCI entra em conflito com o PL das Fake News, visto que o PL é aplicável a qualquer rede social com mais de dois milhões de usuários (art. 1º, §1º, do PL). No mais, as definições de rede social são extremamente similares, embora a redação dada ao MCI seja mais prolixa do que a inserida no art. 5º, VIII, do PL das Fake News.

Após a MP, o art. 5º, X, do MCI passa a considerar moderação em redes sociais as "ações dos provedores de redes sociais de exclusão, suspensão ou bloqueio da divulgação de conteúdo gerado por usuário e ações de cancelamento ou suspensão, total ou parcial, dos serviços e das funcionalidades de conta ou perfil de usuário de redes sociais".

Neste ponto há uma considerável divergência, o PL das Fake News não apresenta uma definição de moderação, mas impõe o dever de "garantir o direito de acesso à informação e à liberdade de expressão de seus usuários nos processos de elaboração e aplicação de seus termos de uso, disponibilizando mecanismos de recurso e devido processo" (art. 12).

Assim, o PL das Fake News deixa entrever que a moderação de conteúdo se daria mediante violação dos termos de uso ou da eventual Lei das Fake News (art. 12, §1º), dando maior poder às redes sociais para estabelecer o que deve ou não ser moderado. Contudo, estabelece a exigência de fundamentação e possibilidade de defesa do autor da postagem, salvo nas hipóteses especificadas no §2º do mesmo dispositivo (danos de difícil reparação, segurança da informação ou do usuário, violação a direitos de crianças e adolescentes, condutas tipificadas na "Lei do Racismo" ou comprometimento da aplicação).

As alterações no MCI, por sua vez, estabelecem rol de "direitos e garantias dos usuários de redes sociais", dentre as quais se destacam: i) acesso a informação; ii) devido processo; iii) restituição de conteúdo; iv) restabelecimento de conta; v) não exclusão de perfil ou conta; e vi) acesso a resumo dos termos de uso mais importantes da rede social (art. 8º-A).

Tais regras são complementadas com hipóteses de exclusão de postagens e perfis condicionadas à justa causa e motivação (arts. 8º-B e 8º-C), alguns exemplos de justa causa seriam: i) inadimplemento do usuário; ii) contas que simulam identidade de terceiros; iii) contas automatizadas; iv) violação de propriedade industrial ou intelectual; v) cumprimento de determinação judicial; vi) violação do Estatuto da Criança e do Adolescente; vii) nudez; viii) prática, apoio ou promoção de crimes variados; ix) violação a normas do CONAR; x) disseminação de vírus e similares; e xi) publicidade de produtos impróprios ao consumo.

O descumprimento dos itens previstos nos arts. 8º-A, 8º-B, 8º-C inseridos na legislação podem dar azo a sanções que vão da advertência à proibição do exercício de atividades (art. 28-A).

Ambas as legislações deixam de tocar no ponto central do debate sobre as redes sociais, as chamadas Fake News, que constavam na versão original do PL das Fake News sob a denominação de desinformação, cuja definição era a seguinte: "conteúdo,  em  parte  ou  no  todo,  inequivocamente  falso  ou  enganoso, passível  de  verificação,  colocado  fora  de  contexto,  manipulado  ou  forjado,  com  potencial de  causar  danos  individuais  ou  coletivos,  ressalvado  o  ânimo  humorístico  ou  de paródia".

Noutras palavras, ambas as legislações deixam de lado ponto fundamental dos debates sobre os meios de comunicação, sendo que o PL das Fake News destina às plataformas o exercício da moderação da desinformação ao sabor de seus termos de uso. Por outro lado, as alterações no MCI tratam de temas que já constam, no mais das vezes, dentro dos termos de uso de plataformas como o Facebook e Instagram, YouTube ou Twitter e engessam a possibilidade de moderação da desinformação.

III

Verificados os pontos de contato e confronto entre a MP que altera o MCI e o PL das Fake News, oportuno observar que ambas as legislações necessitam de aperfeiçoamento a fim de harmonizar os diversos interesses em disputa.

Entretanto, não se pode deixar de notar que o PL das Fake News parece uma medida mais sensata frente às dinâmicas do ambiente eletrônico, visto que o não se deixa seduzir pela criação de um rol taxativo de justas causas como a MP que alterou o MCI.

Realmente, frente aos atuais problemas suportados, a criação de um conjunto de regras estáticas pode causar descompasso entre o legislador e a realidade social, cristalizando, por meio da legislação, ferramentas arcaicas para o combate à desinformação.

Sabe-se hoje que a desinformação pode levar a situações extremamente graves e que colocam em risco não apenas a estabilidade das democracias, mas a saúde pública e o exercício responsável da liberdade de expressão.

Dentro de tais considerações, parece-nos que a rejeição da Medida Provisória e o seguimento dos debates no PL das Fake News é a saída mais sensata.

Bruno Yudi Soares Koga
Doutorando em Direito Constitucional e mestre em Direito, Justiça e Desenvolvimento pelo IDP. Autor do livro "Precificação Personalizada". Advogado em São Paulo.

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