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A advocacia pós covid-19 e a rede em defesa da advocacia feminina

Existe um fenômeno chamado de “teto de vidro” que explica a discriminação sofridas pelas mulheres, em razão do gênero, no mercado de trabalho. São as barreiras “invisíveis” que todas enfrentam para acessar e permanecer no mercado.

15/9/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

A crise sanitária trazida pelo covid-19 e a necessidade de adaptação para enfrentá-la escancarou a profundidade das diferenças existente também na advocacia brasileira.

Os diversos congressos e eventos promovidos em torno da temática, transpassando os diplomas legais até as repercussões sociais desse momento tão delicado, certificam o reconhecimento da importância do exercício das funções primárias da advocacia para o enfrentamento e recuperação da crise no país. Além de trazerem a reflexão em torno da utilização dessa ferramenta que é o direito e todo o sistema judiciário, para não só sobrevivermos a esse novo modo de existência mas também, enquanto operadoras e operadores do direito, possamos ser capazes de cumprir com nossos deveres de forma diligente e responsável com nossos clientes e pares.

Todavia, é de suma importância que reconheçamos que, em razão das profundas raízes coloniais que alimentamos, da estrutura cisheteropatriarcal, racista, classista e sexista que nós sustentamos, assim como nossa sociedade, a advocacia brasileira é plural e diversa, mas ainda não tem refletida essa diversidade nos seus espaços.

Segundo o Conselho Federal da Advocacia, existem hoje no Brasil um milhão, duzentos e  vinte cinco mil e quarenta e sete advogadas e advogados ativos nos quadros da OAB. Sendo seiscentos e quatorze mil e vinte sete advogadas e seiscentos e onze mil e vinte advogados. Ou seja, as mulheres representam 50,12% da advocacia brasileira.

Todavia, ainda sim, esse equilíbrio quantitativo não é visto nos escritórios em geral, tão pouco nas grandes bancas do país. Sendo ínfima a quantidade de mulheres que ocupam a posição de sócias dentro dessas organizações.

As mulheres, desde o início da construção da nossa sociedade, tiveram funções pré-determinadas pelos homens. E, apesar dos avanços conquistados, o acesso continua sendo limitado. Mulheres não conseguem adentrar o mercado de trabalho da mesma forma que os homens e, quando acessam, diversas pesquisas demonstram que recebem menos a título de remuneração, ainda que melhor qualificadas.

Tudo, em razão da violência de gênero sofrida cotidianamente que deságua, inclusive, no apagamento e na falta de representatividade feminina também nas grandes bancas e escritórios do país. Daí a necessidade e a importância da luta em defesa da garantia dos Direitos das Mulheres também dentro deste contexto.

Existe um fenômeno chamado de “teto de vidro” que explica a discriminação sofridas pelas mulheres, em razão do gênero, no mercado de trabalho. São as barreiras “invisíveis” que todas enfrentam para acessar e permanecer no mercado. Esse fenômeno escancara o quanto mulheres são discriminadas e julgadas em razão do gênero e não em razão de intelectualidades.

Muito importante salientar que, dada a diversidade existente também dentro da perspectiva de gênero, ainda que falemos sobre advocacia feminina é impossível observá-la de a partir dos mesmos parâmetros. Se existe esse fenômeno conhecido como teto de vidro para mulheres brancas, para mulheres negras o teto é de titânio. Essas barreiras são muito mais intensificadas.

Fazendo um recorte de raça, segundo as últimas pesquisas realizadas pelo IBGE a sociedade brasileira é composta majoritariamente por pessoas declaradamente pretas. Os índices demonstram que nos últimos anos houve crescimento em relação ao percentual dessa população cursando o ensino superior, representando cerca de 50,3% dos estudantes da rede pública. Todavia, quando se trata de mercado de trabalho essa população representa 64,2% da população desocupada e 66,1% da população subutilizada.

Em relação às mulheres, pesquisas indicam que a taxa de desemprego entre as mulheres negras é muito maior do que entre mulheres brancas; mulheres negras, quando são inseridas no mercado de trabalho, além de receberem menos que as brancas, ocupando os mesmos cargos, levam o dobro do tempo para ascenderem em suas carreiras. Demonstrando que se existe avanço em relação a inclusão de gênero no mercado de trabalho, ele não contempla as mulheres negras, que enfrentam dupla barreira (gênero e raça) para serem inseridas.

Em relação à advocacia, de acordo com pesquisa realizada pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdade, em parceria com a Aliança Jurídica pela Equidade Racial - que é formada por importantes escritórios do país - com apoio do próprio Centro de Estudos e da Fundação Getúlio Vargas, pessoas negras representam apenas 1% da advocacia inserida nos maiores escritórios do país.

Então, analisando os dados existentes em relação à quantidade de mulheres advogadas do país, com o 1% da advocacia negra que compõe as maiores bancas do Brasil, em matemática simples, conclui-se que o número advogadas negras dentro dos grande escritórios é praticamente nulo.

Nesse contexto, é difícil fazer, inclusive, o recorte de orientação sexual ou identidade de gênero. Assim como não existem dados específicos sobre a advocacia feminina negra, não existem dados quantitativos sobre a presença e representatividade de mulheres lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais ou intersexos na advocacia.

Mas, essas mulheres existem. Porém, onde estão? Quais espaços estão ocupando? Se não estão ocupando as grandes bancas dos escritórios e representam a maioria da advocacia ativa do país, são essas mulheres que trabalham de casa ou empreendem em seus próprios escritórios, exercendo a “advocacia popular”. São essas mulheres que têm como clientes, grupos minorizados, vulnerabilizados e de menor poder econômico.

No contexto do Covid-19, onde grandes escritórios que possuem capital de giro estão diminuindo seu corpo de colaboradores para manterem-se funcionando, é fácil imaginar o que está acontecendo com essa parcela da advocacia que não tem reserva de capital e trabalha para pagamento das despesas mensais.

Além disso, tratam-se de mulheres que com a exigência do home office, têm o cuidado da casa e da prole inteiramente sob suas responsabilidades. Porque são essas mulheres também que, quando mães, em sua maioria, cuidam sozinhas dos filhos e filhas. Ressaltando nesse aspecto, o alto índice de abandono paterno nas famílias de mulheres negras.

Então, hoje, o que muito se vê, são mulheres advogadas passando por sérias dificuldades para sobreviverem do exercício da advocacia e por muitas vezes, não conseguindo. O que as faz buscar outros meios de subsistência e abandonar a profissão. Uma vez que o exercício dela tem se tornado impossível.

Por essa razão, nasce e é lançada a “Rede em Defesa da Advocacia Feminina”, com objetivo de valorizar a advocacia feminina, LBTQI e negra. Uma rede de networking onde as advogadas que atuam de forma independente, troquem experiências e trabalhos, de acordo com suas especializações e áreas de atuação. Para que em rede, de forma humanizada e atentas ao código de ética e disciplina da OAB, possam garantir o exercício da advocacia e transpassem juntas os efeitos da pandemia. 

Luanda Pires
Especialista em Direito Contratual, LGBTI+ e de Gênero. Pós-Graduanda em Direitos Humanos, Responsabilidade Social e Cidadania Global pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-RS). Presidenta da ABMLBTI - Associação Brasileira de Mulheres Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos; Diretora do Me Too Brasil; Diretora-Tesoureira do GADvS - Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero. Líder da pauta LGBTI+ no Movimento Advogadas do Brasil.

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