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Postura criteriosa do Poder Judiciário nos reflexos da pandemia nas relações contratuais

Considerando que os efeitos da pandemia podem perdurar por bastante tempo a depender do sucesso das medidas aplicadas mundialmente para a contenção do vírus, podendo o filtro aplicado ser abrandado, nesses primeiros dezoito meses vê-se uma postura compreensiva, porém criteriosa, do Poder Judiciário em relação ao tema pandemia.

13/9/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

O cenário no final de 2019 era muito otimista: crescimento do PIB naquele terceiro semestre ligeiramente acima das expectativas do mercado e avanço de investimento por parte das empresas. Além desses fatos também houve crescimento de 0,8% na indústria nacional.

Olhando os números de 2019, esperava-se que 2020 seria um ano muito bom do ponto de vista econômico. Só não contávamos que o planeta seria atropelado pelo trem covid-19.

A partir daí as lideranças mundiais precisaram voltar todos os seus olhares para controlar a pandemia, seja com imposição de restrições de circulação, protocolos sanitários e desenvolvimentos de vacinas e medicamentos capazes de evitar a transmissão ou auxiliar no tratamento da doença. Nesse momento também surgiu a dificuldade de manter a economia rodando, uma vez que a paralisação, ao menos parcial, de algumas atividades seria indispensável para tentar frear o avanço da pandemia.

Trazendo a questão para uma perspectiva mais micro, em relação às obrigações contraídas por entes privados, muitos foram afetados pela pandemia e pela paralização parcial ou total de alguns segmentos. Algumas atividades estavam em alta no final de 2019, o que fez com que determinados empresários arriscassem mais diante do cenário otimista, esses prejudicados pela necessidade de imposição de restrições e protocolos sanitários.

De outro lado, de maneira inusitada, alguns ramos empresariais foram beneficiados pelo cenário pandêmico, tal como o alimentício. Notou-se também crescimento das empresas de entregas, como Mercado Livre, Rappi e Ifood, que se tornaram serviços praticamente essenciais no período, já que em boa parte dos anos de 2020 e 2021 sofremos com restrições de circulação, sendo o “delivery” a melhor opção para aquisição de produtos.

A consequência da mudança de cenário foi a inevitável chegada de assuntos relacionados aos supostos desequilíbrios contratuais no Poder Judiciário. Já que o assunto chegou, questionou-se qual seria a diretriz adotada por um juiz para dirimir um suposto desequilíbrio contratual e, principalmente, qual foi o impacto que a pandemia trouxe ao jurisdicionado.

Neste ponto, passado um ano e meio da decretação da pandemia, ainda não se pode afirmar a posição que o judiciário irá adotar sobre todos os assuntos relacionados aos estragos gerados pelo Covid-19, mas já há indicativos de que as análises para pedidos de reconhecimento de desequilíbrio contratual serão criteriosas e obedecerão a regra do caso a caso.

Os indicativos dessa análise criteriosa são as recentes decisões em que o tema pandemia era o grande personagem do embate.

A primeira análise foi feita em uma sentença proferida em uma ação revisional de contrato1 envolvendo uma distribuidora de alimentos e uma instituição financeira, cujo pedido visa a readequação dos termos do contrato e, por conta da pandemia, o alongamento do prazo acordado para adimplemento. A ação foi julgada improcedente em maio de 2021.

Vale transcrever o trecho da sentença que demonstra a adoção de postura criteriosa para acolhimento da pretensão de readequação da obrigação em razão dos efeitos da pandemia:

“Em primeiro lugar, vemos que a alegação de que a situação financeira da autora se deve ao grave momento de crise sanitária em que vivemos não encontra respaldo nos autos, diante do que sustentou o réu, ao lembrar que o “Termo de Acordo Extrajudicial, ora em discussão, que já consiste de renegociação de dívidas pretéritas da Autora e foi firmado em 29/11/2019, ou seja, muito antes de subsistir a pandemia do Covid-19, a Autora já demonstrava dificuldade no cumprimento de suas obrigações’.

A dois, vale lembrar que Autora possui como atividade principal o comércio atacadista de produtos alimentícios em geral, possuindo como atividade secundária o mais variado comércio do ramo alimentício, ramos que são considerados essenciais e que não deixaram de funcionar mesmo nos períodos de lockdown decretados pelo Poder Público como forma de conter o avanço da disseminação do vírus Covid-19, não sendo demonstrado que a dificuldade financeira do autor teve como causa exclusiva a pandemia que estamos sofrendo.”

Nessa situação, ao enfrentar o mérito, o juiz não só analisou o ramo de atividade da empresa autora, que é uma distribuidora de alimentos, mas também notou que a obrigação já havia sido repactuada em momento anterior à pandemia, decidindo por manter a obrigação nos termos estabelecidos.

Caso semelhante compõe a análise sobre os critérios para a modificação de obrigações, desta vez envolvendo uma ação revisional2 envolvendo uma rede de supermercados e outra instituição financeira, já em sede de recurso.

Na ocasião a rede de supermercados, cujo processamento da recuperação judicial já havia sido deferido, mencionou que as bases do contrato precisavam ser repactuadas por conta dos reflexos causados pela pandemia, evento que teria ocasionado queda de faturamento. Narraram que a intuição financeira teria recebido extrema vantagem por conta da pandemia, contudo, o relator do recurso foi claro ao expor que a rede de supermercados não “imputou de modo objetivo onde estaria a extrema vantagem do banco”.

Diferente da primeira decisão analisada, esta segunda, representada por acórdão prolatado em julho de 2021, faz menção à forma genérica como a empresa expôs seus argumentos, não tendo apresentado argumentos que levaram à queda de faturamento por conta da pandemia.

Entende-se que essas decisões demonstram que o Poder Judiciário está preocupado em não banalizar o tema pandemia, evitando assim que seja utilizado sem qualquer parcimônia por jurisdicionados mal-intencionados, aplicando a mitigação do princípio pacta sunt servanda3 quando realmente restar demonstrado que o Covid-19 foi determinante para a continuidade ou manutenção do volume da atividade empresarial. Por essa óptica, pode-se considerar que o judiciário funciona como um freio, evitando que a palavra pandemia se torne uma espécie de “imunidade” nos processos.

Acrescenta-se que as decisões acima representam uma tendência inicial de análise dos juízes quando o tema pandemia é colocado na mesa. Considerando que os efeitos da pandemia podem perdurar por bastante tempo a depender do sucesso das medidas aplicadas mundialmente para a contenção do vírus, podendo o filtro aplicado ser abrandado, nesses primeiros dezoito meses vê-se uma postura compreensiva, porém criteriosa, do Poder Judiciário em relação ao tema pandemia, o que, por ora, garante certa segurança jurídica nas relações privadas.

________

1 Processo: 0829264-34.2020.8.20.5001 – 16ª Vara Cível da Comarca de Natal - RN.

2 Processo 1006311-59.2020.8.26.0011.

3 O contrato faz lei entre as partes.

Henrique de Moura Perez
Advogado Especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Escola Paulista de Direito, bacharel pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. É coordenador de uma das equipes de Direito Bancário, Recuperações Judiciais e Falências do Carmona Maya, Martins e Medeiros Advogados, Sociedade de Advogados.

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