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O confisco alargado e o sequestro de bens no Processo Penal Líquido

A mitigação de direitos e garantias individuais pela flexibilização de regras até então consolidadas (como a não interferência do Estado na propriedade salvo nos casos previstos na Constituição) gera o que se chamou de Processo Penal Líquido.

10/9/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

1. Introdução

Zygmunt Bauman, um dos maiores pensadores, filósofos e sociólogos da modernidade, criou e desenvolveu o conceito de “liquidez” das instituições, afirmando que a mudança é a única coisa permanente e a incerteza, a única certeza.1

No cenário atual do processo penal brasileiro, o empréstimo do termo “líquido”, para ser aplicado às novas regras introduzidas pelo chamado “Pacote Anticrime”, especialmente no que se refere ao perdimento de bens (também chamado de confisco alargado de bens) e a sua destinação em caso de sequestro, é bastante apropriado.

O confisco alargado de bens surgiu com a reforma do Código de Penal promovida no final do ano de 2019 e permite a decretação da perda, como produto ou proveito do crime, dos bens correspondentes à diferença entre o valor do patrimônio do condenado e àquele que seja compatível com o seu rendimento lícito. Embora venha como um suposto efeito condenatório da sentença, o instituto surge claramente como uma forma de também conceder uma maior elasticidade às medidas assecuratórias no Processo Penal, eis que objetiva alcançar o patrimônio do “criminoso” em casos de bens adquiridos de forma (supostamente) ilícita.

Assim, ao indicar a diferença patrimonial entre o que o denunciado “tem” e o que [não] “deveria ter”, a acusação pavimenta a via para um eventual pedido de sequestro, a fim de garantir que o patrimônio tido por ilícito seja resguardado. Mais, pela nova regra do Código de Processo Penal, o bem sequestrado já pode, inclusive, ser utilizado por órgãos de segurança pública, para o desempenho de suas atividades.

Mais do que nunca, é o Estado interferindo (e tendo interesse) no patrimônio de particulares, antes de qualquer condenação, apenas embasado em uma suspeita de incompatibilidade do patrimônio com os rendimentos lícitos, o que, por si só, já transformaria esse em proveito da infração, sendo passível de ser sequestrado.

O patrimônio do acusado, dessa feita, passa a ser “líquido”, na medida em que se reveste do caráter da fluidez, a depender do entendimento da acusação (e posteriormente do Juízo), sobre a licitude de sua origem. O direito de propriedade e o princípio do estado de inocência estariam relegados a um segundo plano, justamente para poder concretizar essa “fluidez”.

Dado que o próprio Bauman afirma que Vivemos tempos líquidos, nada é para durar2, aparentemente os direitos conquistados com a Constituição Federal de 1988, que se acreditava serem cláusulas pétreas, também seriam efêmeros.

Estamos no tempo do “Processo Penal Líquido” e dos “direitos constitucionais fluidos”.

2. A inovação trazida pelo confisco alargado de bens e a possibilidade de sequestro da diferença patrimonial

O novo artigo 91-A do Código de Penal3 trouxe a possibilidade de ser decretado o perdimento de todo e qualquer bem de titularidade ou sob o domínio do condenado, que ultrapasse a capacidade do seu rendimento lícito. A única exigência da lei para tanto, é que a pena máxima cominada ao crime em abstrato seja superior a seis anos. A forma como será feita a análise da compatibilidade entre o patrimônio do condenado e seus rendimentos lícitos fica totalmente a critério da acusação, que deve formular o pedido já na denúncia.

O novo artigo 133-A do Código de Processo Penal4, por sua vez, criou a possibilidade de utilização do bem sequestrado pelos órgãos de segurança pública previstos no art.144 da Constituição Federal, do sistema prisional, do sistema socioeducativo, da Força Nacional de Segurança Pública e do Instituto Geral de Perícia, para o desempenho de suas atividades. O § 4º do mencionado artigo ainda prevê a possiblidade de transferência definitiva da propriedade do bem ao órgão público beneficiário ao qual foi esse custodiado após o trânsito em julgado da condenação.

A lei 13.964/19 adveio do Projeto de lei 10.372/18, que objetivava introduzir “modificações na legislação penal e processual penal para aperfeiçoar o combate ao crime organizado, aos delitos de tráfico de drogas, tráfico de armas e milícia privada, aos crimes cometidos com violência ou grave ameaça e crimes hediondos, bem como para agilizar e modernizar a investigação criminal e a persecução penal.” Ao PL-10372/2018 foi apensado o PL 882/19, que também estabelecia “medidas contra a corrupção, o crime organizado e os crimes praticados com grave violência a pessoa”.

A Nota Técnica PGR/2ªCCR 03/19, da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão da Procuradoria-Geral da República, ao analisar o Projeto de lei 882/19, concluiu que a inserção do confisco alargado de bens no ordenamento jurídico brasileiro cumpria com as diretrizes estabelecidas em convenções internacionais da qual o Brasil é signatário5; que o confisco alargado pode ser instituído por lei ordinária, não necessitando de emenda à Constituição; que o instituto respeita os princípios da presunção de inocência e de não culpabilidade; que o confisco (nas modalidades clássico e por equivalência) já era previsto no ordenamento jurídico brasileiro e que o instrumento é necessário dada a insuficiência das outras medidas existentes.6

Ao discorrer sobre o respeito aos princípios constitucionais da presunção de inocência e da não culpabilidade, a Nota Técnica sustenta não haver qualquer afronta, uma vez que o confisco alargado seria decretado tão somente após a condenação, com a possibilidade de prova da licitude dos bens pelo condenado durante a instrução. Refere ainda que a medida tampouco violaria o estado de inocência, por não se tratar de nova condenação ou imposição de nova pena. No ponto, cita as palavras de Roberto D'Oliveira Vieira, alegando que se trataria de extensão de medida patrimonial assumida a partir da presunção de que o patrimônio fora amealhado pelo mesmo trajeto a que já foi condenado.

A Nota Técnica ainda invoca a justificativa apresentada pelas “Dez Medidas contra a Corrução” para o confisco alargado, expondo a existência de situações nas quais não se consegue identificar ou provar a prática de crimes graves que geram benefícios econômicos, ao menos não de forma suficiente para uma condenação criminal, e que o confisco alargado teria por objetivo a extirpação do patrimônio de origem injustificada de criminosos, quando sua culpa não pudesse ser completamente apurada.7

A motivação trazida pelo Projeto de lei 882/19 foi a de que a corrupção no Brasil possui índices alarmantes, que crescem exponencialmente, que a criminalidade tem acuado o Estado brasileiro e que é preciso aumentar e eficiência do sistema, pois a segurança pública também é um direito garantido pela Constituição Federal. A justificação do Projeto de lei 10.372/18, por sua vez, afirma que “O combate ao crime organizado exige racionalidade instrumental e priorização de recursos financeiros e humanos direcionados diretamente para a persecução da macro criminalidade.”

Nas suas “Reflexões sobre o Confisco Alargado”, Juarez Cirino dos Santos e June Cirino dos Santos referem que as justificações apresentadas nos anteprojetos mencionam que o Brasil seria signatário de documentos internacionais que adotariam o confisco alargado no combate ao crime organizado, bem como que as práticas de cooperação internacional seriam regidas pela máxima de que o “o crime não deve compensar”, mas que a moderna criminologia negaria natureza científica ao conceito de crime organizado e que a Constituição brasileira garante a propriedade no inciso XXII de seu artigo 5º, sendo que o inciso XXIV do mesmo artigo determina que essa só poderá ser expropriada por necessidade ou utilidade pública, ou ainda por interesse social, mediante justa e previa indenização em dinheiro.

É certo, no entanto, que embora a redação original dos projetos de lei elencassem um rol de crimes aos quais se aplicaria o confisco alargado (incluindo entre esses o tráfico de drogas, crimes de corrupção e cometidos mediante o emprego de violência) ou tivessem como foco principal a atuação de organizações criminosas, a redação final da lei fez constar apenas a exigência de crime com pena máxima em abstrato superior a seis anos, possibilitando, dessa forma, que o instituto seja aplicado à qualquer pessoa, mesmo a réus primários que não tenham qualquer ligação com organizações criminosas. Em âmbito processual, em havendo o pedido de perdimento de bens tidos por ilícitos por falta de aparente compatibilidade com os rendimentos lícitos do réu, já resta fixada a presunção de ilicitude dos bens, sendo esses, portanto, passíveis de serem sequestrados.

Em a denúncia apontando que parte do patrimônio do condenado consiste em bens advindos de proveito de infrações, é natural pressupor que tais bens poderia ser, portanto, objeto de sequestro, nos termos do artigo 126 do Código Penal, dado que, para a decretação da medida, basta a existência de indícios veementes da proveniência ilícita dos bens. Ora, se a acusação já coletou indícios suficientes (ao menos ao seu ver) de que o acusado não teria condições econômicas de auferir aquele patrimônio de forma lícita, já trouxe os indícios veementes da proveniência ilícita dos bens.

Com isso, o confisco alargado de bens tem potencial para transformar o sequestro de bens na regra, e não na exceção, toda vez em que for requerido na denúncia. Cabe notar ainda, que o próprio artigo 133-A do Código de Processo Penal, também inserido pela lei 13.964/19, estabelece ser facultado ao Magistrado a transferência definitiva da propriedade ao órgão público ao qual foi custodiado o bem após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória com a decretação de perdimentos dos bens.8

Ou seja, a própria lei 13.964/19 já anteviu que o pedido de perdimento de bens formulado na denúncia, com a indicação da incompatibilidade patrimonial, já consistiria em indícios veementes da proveniência ilícita dos bens a amparar o sequestro e já tratou por solidificar essa situação com o trânsito em julgado da condenação. Com isso, os agentes públicos elencados no artigo 133-A, que não deveriam ter qualquer interesse pessoal no deslinde da causa, passam a ter um nítido interesse patrimonial na condenação. Os mesmos policiais que elaboraram os relatórios de investigação e testemunharão em Juízo contra o acusado serão aqueles que se beneficiarão com a condenação do réu, arrecadando seu patrimônio.

Não obstante, o § 1º do artigo 133-A estabelece ainda que “O órgão de segurança pública participante das ações de investigação ou repressão da infração penal que ensejou a constrição do bem terá prioridade na sua utilização.”

A norma processual, portanto, criou um interesse na ilicitude do patrimônio por parte do Estado, que passa a tomar para si a propriedade particular, seja de modo cautelar, com o sequestro, seja de modo definitivo, com o perdimento de bens (confisco alargado), eximindo-se de seu dever de instrumentalizar os órgãos de segurança, amparando-se na mera presunção da ausência de licitude.

3. O Processo Penal Líquido e a fluidez dos direitos

Embora Zygmunt Bauman não tenha se dedicado a estudos referentes ao Processo Penal (especialmente ao brasileiro), muitas de suas ideias e conceitos se encaixam com perfeição.

No prefácio de seu aclamado livro “Modernidade Liquida”,9 Bauman refere que “Fluidez é a qualidade de líquidos e gases. O que os distingue dos sólidos, como a Enciclopédia Britânica, com a autoridade que tem, nos informa, é que eles “não podem suportar uma força tangencial ou deformante quando imóveis” e assim “sofrem uma constante mudança de forma quando submetidos a tal tensão”. (...) “Como todos os fluidos, eles não mantêm a forma por muito tempo. Dar-lhes forma é mais fácil do que mantê-los nela. Os sólidos são moldados para sempre. Manter os fluidos em uma forma requer muita atenção, vigilância constante e esforço perpétuo – e mesmo assim o sucesso do esforço é tudo menos inevitável”.

É justamente nessa “fluidez” mencionada por Bauman em que estão sendo transformados os direitos assegurados pela Constituição Federal, que como cláusulas pétreas que são, deveriam ser “sólidos”. A presunção de não culpabilidade, o direito à propriedade, o princípio do devido processo legal todos estão esmoecendo diante do avanço Estatal, em nome da falaciosa segurança pública.

O mais preocupante é a aparência de legitimidade e o disfarce de constitucionalidade das novas regras. Pelo confisco alargado, permite-se inverter o ônus da prova da licitude do bem, que passa a ser do acusado. À acusação cabe tão somente a indicação de ausência de compatibilidade (por critérios sequer pré-estabelecidos). Ao acusado, passa a recair o ônus de comprovar que seu patrimônio foi amealhado de forma lícita. Mais, em presumindo-se ilícitos seus bens, é cabível seu sequestro e destinação a órgãos do Estado, até o deslinde final da ação penal. Os beneficiários da constrição patrimonial têm ainda preferência na sua manutenção. Tudo sob uma suposta ótica de legalidade.

No posfácio do seu livro Legisladores e Intérpretes10 (que não se refere à interpretação das leis, mas sim traz o papel do filósofo como legislador e como intérprete do mundo), Bauman traz, a título ilustrativo, o exemplo de um “teste de conservadorismo”11, aplicado por meio de figuras, em que a primeira é claramente a de um gato e a última, claramente a de um cão, sendo as figuras intermediárias as mutações sofridas para se partir de uma e chegar a outra. A quantidade de imagens necessárias para que a pessoa identifique que a figura se trata de outro animal, que não o do início, é utilizada para determinar o seu nível de conservadorismo. O objetivo do teste é captar o chamado “atraso de percepção”, aflição geral (em suas palavras) que acomete a todos os seres humanos.

Segundo o autor, “Nossos olhos, como transparece nesse exemplo, são treinados por nossas experiências anteriores a reconhecer e “assimilar” novos e inovadores pontos de vista, e acomodá-los entre os familiares. Por isso mesmo, os olhos são induzidos a minimizar ou mesmo a não notar os fenômenos inovadores “que não se encaixam” na lição da experiência anterior e que, com isso, se recusam a ser incluídos à força nas categorias habituais.

A constatação de que o volume dessas “anomalias” tornou-se tão grande que não podemos continuar negligenciando a importância da sua alteridade – e o reconhecimento de que aquilo que nossos olhos veem não é o que eles veriam se tais fenômenos pertencessem de fato a categorias familiares, habituais – tende a apresentar um grande atraso em relação às mudanças num ambiente observado com atenção. Leva tempo até nossa visão alcançarmos o que vemos.”

Isso é exatamente o que ocorre com a inovação trazida pelo confisco alargado de bens e com a possibilidade de perdimento dos bens sequestrados e destinação a órgãos de segurança. O legislador insiste e olhar para os institutos como “nova modalidade de confisco” ou como “medida necessária para frear a criminalidade”, não se dando conta que estamos diante de uma modalidade de interferência estatal completamente nova, que subverte por completo nosso ordenamento jurídico.

4. Conclusão

A mitigação de direitos e garantias individuais pela flexibilização de regras até então consolidadas (como a não interferência do Estado na propriedade salvo nos casos previstos na Constituição) gera o que se chamou de Processo Penal Líquido. Seria uma maleabilidade do processo, para que possa melhor se encaixar nos objetivos fixados pelo Estado como metas a serem alcançadas.

A utilização de presunções (incompatibilidade do patrimônio com os rendimentos lícitos) e de premissas (barrar o aumento da criminalidade para proteger a sociedade) esconde uma violação individual cometida pelo Estado.

Ainda que a segurança pública seja um direito de todos, para seu alcance, não se pode aniliquilar direitos individuais, garantidos pela Constituição, desconsiderando-se o humanismo intrínseco de cada um, em uma ação supostamente voltada ao bem comum, sob pena de se criar um estado eminentemente utilitarista. O ser humano não pode servir a um fim, mesmo que esse fim seja um dos objetivos do Estado.

________

 

1 Essa frase foi afirmada em diversas palestras dadas pelo autor. Disponível aqui.

2 Frase afirmada em entrevista concedida à Revista Isto É. Disponível aqui. Acesso em 17/07/2020.

3 Art. 91-A. Na hipótese de condenação por infrações às quais a lei comine pena máxima superior a 6 (seis) anos de reclusão, poderá ser decretada a perda, como produto ou proveito do crime, dos bens correspondentes à diferença entre o valor do patrimônio do condenado e aquele que seja compatível com o seu rendimento lícito.

§ 1º Para efeito da perda prevista no caput deste artigo, entende-se por patrimônio do condenado todos os bens:

I - de sua titularidade, ou em relação aos quais ele tenha o domínio e o benefício direto ou indireto, na data da infração penal ou recebidos posteriormente; e

II - transferidos a terceiros a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória, a partir do início da atividade criminal.

§ 2º O condenado poderá demonstrar a inexistência da incompatibilidade ou a procedência lícita do patrimônio.

§ 3º A perda prevista neste artigo deverá ser requerida expressamente pelo Ministério Público, por ocasião do oferecimento da denúncia, com indicação da diferença apurada

§ 4º Na sentença condenatória, o juiz deve declarar o valor da diferença apurada e especificar os bens cuja perda for decretada.

§ 5º Os instrumentos utilizados para a prática de crimes por organizações criminosas e milícias deverão ser declarados perdidos em favor da União ou do Estado, dependendo da Justiça onde tramita a ação penal, ainda que não ponham em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem pública, nem ofereçam sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos crimes.”

4 Art. 133-A. O juiz poderá autorizar, constatado o interesse público, a utilização de bem sequestrado, apreendido ou sujeito a qualquer medida assecuratória pelos órgãos de segurança pública previstos no art. 144 da Constituição Federal, do sistema prisional, do sistema socioeducativo, da Força Nacional de Segurança Pública e do Instituto Geral de Perícia, para o desempenho de suas atividades. (Incluído pela lei 13.964, de 2019)

§ 1º O órgão de segurança pública participante das ações de investigação ou repressão da infração penal que ensejou a constrição do bem terá prioridade na sua utilização. (Incluído pela lei 13.964, de 2019)

§ 2º Fora das hipóteses anteriores, demonstrado o interesse público, o juiz poderá autorizar o uso do bem pelos demais órgãos públicos. (Incluído pela lei 13.964, de 2019)

§ 3º Se o bem a que se refere o caput deste artigo for veículo, embarcação ou aeronave, o juiz ordenará à autoridade de trânsito ou ao órgão de registro e controle a expedição de certificado provisório de registro e licenciamento em favor do órgão público beneficiário, o qual estará isento do pagamento de multas, encargos e tributos anteriores à disponibilização do bem para a sua utilização, que deverão ser cobrados de seu responsável. (Incluído pela lei 13.964, de 2019)

§ 4º Transitada em julgado a sentença penal condenatória com a decretação de perdimento dos bens, ressalvado o direito do lesado ou terceiro de boa-fé, o juiz poderá determinar a transferência definitiva da propriedade ao órgão público beneficiário ao qual foi custodiado o bem. (Incluído pela lei 13.964, de 2019)

5 A Nota Técnica cita a Convenção das Nações Unidas Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e de Substâncias Psicotrópicas; a Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional e a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção.

6 No ponto, especificamente acerca da temática do “confisco alargado”, a iniciativa legislativa merece ser aprovada:

(i) a iniciativa cumpre diretrizes de tratados dos quais o Brasil é signatário e amolda o sistema jurídico pátrio a recomendações de fóruns internacionais voltados a coibir o crime organizado e harmoniza a legislação brasileira com sistemas jurídicos de outros países que já preveem medidas similares e com os quais o Brasil mantém relações e acordos de cooperação, permitindo a reciprocidade e o combate a crimes graves de efeitos transnacionais;

(ii) a temática do “confisco alargado” integra a liberdade de conformação do legislador, não necessitando de aprovação por meio de emenda à constituição, bastando ser introduzida no ordenamento jurídico pela via do projeto de lei ordinária;

(iii) o instituto do confisco alargado respeita a Constituição, em especial os princípios constitucionais da presunção de inocência e da não culpabilidade;

(iv) as figuras do confisco clássico e do confisco por equivalência, já previstas no ordenamento jurídico brasileiro, e importância de uma terceira espécie de confisco, apresentada pela campanha das “Dez Medidas Contra a Corrupção”, do

Ministério Público Federal;

(v) outras razões para a introdução do confisco alargado no ordenamento jurídico brasileiro: insuficiência das medidas clássicas do direito penal ao surgimento e incremento de crimes que afetam a Ordem Econômica e a instituição, de maneira mais efetiva, da ideia de que “o crime não compensa”.

7 O confisco alargado visa a instituir de maneira mais efetiva a ideia clássica de que “o crime não compensa”, ou, mais precisamente, não deve compensar. Em crimes graves que geram benefícios econômicos ilícitos, incumbe ao Estado, tanto quanto a punição dos responsáveis, evitar o proveito econômico da infração e a utilização do patrimônio decorrente da atividade criminosa em outros delitos. Mas a persecução criminal do Estado não é, não pode e até mesmo não deve ser exaustiva. Nem todas as infrações podem ser investigadas e punidas, inclusive por força das garantias constitucionais e legais dos cidadãos. O confisco clássico e o confisco por equivalente, previstos hoje na legislação penal brasileira (art. 91 do Código Penal), alcançam, além dos instrumentos do crime que sejam em si ilícitos (art. 91, “a”, do Código Penal), apenas os bens ou valores correspondentes que sejam produto ou proveito da específica infração objeto da condenação criminal. Mas, conforme já se anotou, há situações em que não é possível identificar ou comprovar, nos termos exigidos para uma condenação criminal, a prática de crimes graves que geram benefícios econômicos, embora as circunstâncias demonstrem a origem ilícita do patrimônio controlado por determinadas pessoas. Nesses casos, sem a possibilidade de se promover a responsabilidade criminal, o confisco clássico e o confisco por equivalente não são capazes de evitar o proveito ilícito e a utilização desse patrimônio de origem injustificada em novas atividades criminosas. O instituto ora proposto visa, assim, a criar meio de retirar o patrimônio de origem injustificada do poder de organizações e de pessoas com atividade criminosa extensa que não possa ser completamente apurada. (…) O confisco alargado ora proposto, na esteira da legislação de outros países, tem como pressuposto uma prévia condenação por crimes graves, listados no dispositivo, que geram presunção razoável do recebimento anterior de benefícios econômicos por meios ilícitos. Estabelece, nesses casos, um ônus probatório para a acusação acerca da diferença entre o patrimônio que esteja em nome do condenado, ou que seja por ele controlado de fato, e os seus rendimentos lícitos, ressalvando também a possibilidade de JUSTIFICATIVA por outras fontes legítimas que não decorram diretamente desses rendimentos. É garantida ao condenado oportunidade de demonstrar a legalidade do seu patrimônio, bem como aos terceiros indevidamente afetados pela decretação da perda ou pela constrição cautelar de bens. Como se trata de medida que atinge apenas o patrimônio de origem injustificada, sem imputar ao afetado nenhum dos efeitos inerentes a uma condenação criminal pelos fatos que ensejaram a posse desses bens, o confisco alargado se harmoniza com o princípio da presunção de inocência, conforme tem sido reconhecido em outros países e em organismos e fóruns internacionais. Compatibilizando o instituto proposto com a legislação processual penal atual, e na esteira do que estabelece o Código Penal a respeito do confisco por equivalente recentemente instituído (§ 2º do art. 91, incluído pela lei 12.684/2012), a proposta ressalta a aplicação das medidas cautelares reais penais para a garantia do confisco alargado. Também prevê expressamente a possibilidade de alienação antecipada de coisas sujeitas a deterioração ou depreciação, evitando que o tempo necessário para a decisão acerca do confisco resulte em perdas econômicas ou em prejuízos para o acusado ou terceiro de boa-fé. Considerando tratar-se de um dos efeitos da condenação criminal, o projeto prevê que o cumprimento da sentença que decretar o confisco alargado, após o trânsito em julgado, será processado, no prazo de até dois anos, no juízo criminal que proferiu a decisão. Nessa fase, o Ministério Público, com base no título jurídico judicial, deverá alegar e comprovar o patrimônio do condenado que não é compatível com os seus rendimentos lícitos e que também não tem outra origem lícita conhecida, segundo as informações públicas disponíveis. Remete-se o procedimento à legislação processual civil – permitindo a aplicação das normas de liquidação por artigos e de cumprimento de sentença do Código de Processo Civil. (…)

8 Art. 133-A. O juiz poderá autorizar, constatado o interesse público, a utilização de bem sequestrado, apreendido ou sujeito a qualquer medida assecuratória pelos órgãos de segurança pública previstos no art. 144 da Constituição Federal, do sistema prisional, do sistema socioeducativo, da Força Nacional de Segurança Pública e do Instituto Geral de Perícia, para o desempenho de suas atividades. (Incluído pela lei 13.964, de 2019)

§ 4º Transitada em julgado a sentença penal condenatória com a decretação de perdimento dos bens, ressalvado o direito do lesado ou terceiro de boa-fé, o juiz poderá determinar a transferência definitiva da propriedade ao órgão público beneficiário ao qual foi custodiado o bem. (Incluído pela lei 13.964, de 2019)

9 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

10 BAUMAN, Zygmunt. Legisladores e intérpretes: Sobre modernidade, pós-modernidade e intelectuais. Rio de Janeiro: Editora Schwarcz - Companhia das Letras, 2010.

11 Refere o autor: Um dos testes psicológicos característico para avaliar o grau de conservadorismo e ajustabilidade da percepção humana consiste numa sério de 20 desenhos apresentada em sucessão estrita. A primeira figura é clara e exibe indiscutivelmente a imagem de um gato “típico”. Os desenhos em sucessão gradual, e de modo furtivo (somos tentados a dizer “imperceptível”) se afastam passo a passo da configuração familiar de um felino, transformando-se, de maneira bem consistente, na imagem de outra criatura. O último dos 20 desenhos é novamente uma figura clara, inequívoca, uma representação fidedigna, só que dessa vez de um “típico” cão.

Pelo número de quadrados que precisam ser exibidos aos observadores para que percebam que o que veem não é mais um gato, e sim um cão, os psicólogos conseguem observar o grau de “conservadorismo” (ou rigidez) em contraposição ao grau de “ajustabilidade” (ou flexibilidade) de sua percepção: o teste tenta captar o fenômeno do “atraso de percepção”, aflição geral a todos os seres humanos e sua variação de intensidade entre os diferentes indivíduos.

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BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

BAUMAN, Zygmunt. Legisladores e intérpretes: Sobre modernidade, pós-modernidade e intelectuais. Rio de Janeiro: Editora Schwarcz - Companhia das Letras, 2010.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. 2ª Nota Técnica  02/2019. 11 de abr. 2019. Disponível aqui. Acesso em 17/07/2020.

SANTOS, Juarez Cirino e SANTOS, June Cirino. Reflexões Sobre o Confisco Alargado de Bens. Disponível aqui. Acesso em 17/07/2020.

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Patrícia Lopes Dannebrock Águedo
Pós graduada em Direito Penal Econômico na FGV e advogada sênior no Davi Tangerino & Salo de Carvalho Advogados.

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