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Auspícios estrangeiros: Balança política europeia e o movimento da independência

O movimento pela Independência do Brasil se desenvolveu em território nacional, avaliando-se as alianças e os conflitos existentes desde 1808 até a declaração que consumou simbolicamente a separação. Essa declaração, do dia sete de setembro de 1822, ocorreu em momento extremamente conturbado para as relações comerciais e diplomáticas em todo o mundo ocidental, tendo sobre as mesmas um efeito bastante relevante.

8/9/2021
(Imagem: Arte Migalhas)

É claro que há sempre uma dimensão ideológica nesses governos que se pretendem expressão do “bem comum”, e que no limite acabam por se empenhar em preservar o status quo. Não se trata de confundir ideologia e realidade, mas é evidente que há graus de identificação entre estado e camada dominante, e os momentos reformistas são exatamente aqueles em que esta relação se torna mais complexa: o estado, nessas situações, tende a ver além dos interesses da camada dominante, com vistas à própria preservação da estrutura de dominação1.

Nos artigos anteriores, viu-se como o movimento pela Independência do Brasil se desenvolveu em território nacional, avaliando-se as alianças e os conflitos existentes desde 1808 até a declaração que consumou simbolicamente a separação. Apesar da fundamental importância de tais acontecimentos, porém, esse processo não deve ser considerado como um fenômeno social isolado. Se o rompimento político efetivamente gerou violentos conflitos dentro do território nacional, também se faz necessário avaliar as suas consequências externas. De fato, a declaração do dia sete de setembro de 1822 ocorreu em momento extremamente conturbado para as relações comerciais e diplomáticas em todo o mundo ocidental, tendo sobre as mesmas um efeito bastante relevante.

Pode-se dizer que a primeira metade do século XIX foi um período de profundas transformações na ordem política global, resultado de inúmeros movimentos de ruptura empreendidos pelo mundo no final do século anterior. Esse processo pode ser mais claramente visto nas sucessivas alternâncias de poder e ideologia, entre absolutistas e liberais, iniciado na Independência dos Estados Unidos da América em 1776, passando pela Revolução Francesa a partir de 1789 e se estendendo para atingir os impérios coloniais ibéricos. Eric Hobsbawm assim resume o período:

Após mais de vinte anos de guerras e revoluções quase ininterruptas, os velhos regimes vitoriosos enfrentaram os problemas do estabelecimento e da preservação da paz, que foram particularmente difíceis e perigosos. Os escombros de duas décadas tinham de ser varridos e a pilhagem territorial redistribuída. (…) Os reis e os estadistas não eram mais sábios nem tampouco mais pacíficos do que antes. Mas inquestionavelmente estavam mais assustados2.

A Europa ainda se recuperava das guerras napoleônicas, buscando a estabilização política e econômica prometida pelo Congresso de Viena de 1815, que somente viria pela restauração das monarquias absolutistas e aliadas, em oposição às pretensões democráticas ou republicanas das recentes revoluções burguesas — que logo surgiriam novamente.

O pensamento político europeu sofreu alterações pendulares nesse intervalo, oscilando entre o absolutismo e o liberalismo de forma imprevisível e até mesmo violenta. Após o primeiro momento de pânico, a união das elites rurais, do clero e da nobreza tradicional, com o apoio das cortes conservadoras, fez frente digna aos movimentos populares, prolongando a batalha ideológica na Europa e fora dela. Almeida Garrett, político e escritor português da época, traça em breves linhas o quadro geral do estado político do continente europeu e de seus satélites após a batalha de Waterloo:

O despotismo, a oligarquia triunfaram mais uma vez na Europa; a liberdade vacila na América... Estará perdida a causa dos povos, a causa da civilização? Não: cegueira dos seus inimigos, cobardia de seus fracos amigos o supõe: enganam-se. Derramemos a vista por essa parte da Europa e América a que damos com justiça o nome de ‘mundo civilizado’. Vejamos se a submissão é perfeita, e duradoira essa paz de sepulcro3.

Com efeito, o diálogo das potências em Viena tinha por objetivo predominante a eliminação decisiva da fragilidade monárquica explorada pelos agentes da Revolução Francesa, evitando, dessa forma, o aparecimento de grupos políticos com semelhantes ideais. Henry Kissinger afirma que a França era percebida, nesse contexto, de forma semelhante à Alemanha no século XX: “uma potência inerentemente desestabilizadora e cronicamente agressiva4. Por isso, forjou-se, entre Áustria, Prússia, Rússia e Reino Unido, a Quádrupla Aliança, que teria por finalidade “cortar quaisquer tendências agressivas da França pela raiz com força esmagadora5.

Não julgando ser tal pacto suficiente para conter as correntes nacionalistas e liberais na Europa, as três potências continentais (Áustria, Prússia, Rússia) assinaram um acordo adicional, proposto pelo Czar Alexandre I da Rússia, pelo qual se criava a Santa Aliança, instituição que visava manter os princípios absolutistas com viés precipuamente católico, condicionando a sua atuação ao consenso entre os seus membros.

A Santa Aliança reuniu os monarcas conservadores no combate às revoluções, mas também os obrigou a agir somente em conjunto, efetivamente dando à Áustria, um veto teórico sobre as aventuras de seu sufocante aliado russo. O chamado Concerto da Europa implicava que as nações que eram competitivas em um nível resolveriam assuntos que afetassem a estabilidade geral por consenso6.

A incerteza institucional que cercou a Europa em decorrência das invasões napoleônicas, não obstante as supracitadas medidas reacionárias adotadas pelas potências, dificultou a gerência das metrópoles sobre os seus domínios coloniais, afrouxando um laço fundamentalmente estabelecido e mantido até então pela dominação moral e militar. Assim, permitiu-se, pela primeira vez, a expansão de ideias liberais, de autonomia administrativa e mesmo de independência, reforçadas pelo exemplo da bem-sucedida campanha empreendida pelos Estados Unidos no século anterior. Movidas por essas circunstâncias, as colônias da América espanhola deram início à sua rebelião generalizada já em 1810, com as declarações de independência de México, Colômbia, Argentina, Venezuela e Equador.

O Brasil, por outro lado, teve a presença colonial fortalecida pela vinda da Corte ao Rio de Janeiro em 1808, permanecendo imune à onda liberal que se espalhava pelo continente. O poder absoluto exercido por D. João VI na colônia — Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves a partir de 1815 — representou uma verdadeira inversão dos valores constituídos entre metrópole e territórios, consistindo “no abandono das práticas mercantilistas que com maior ou menor coerência Portugal aplicava na sua colónia e na adopção de uma política mais liberalizante7. As ações do monarca foram largamente interpretadas em Portugal como desrespeito da sua importância política e simbólica de capital do império marítimo. A historiadora portuguesa Maria Cândida Proença ilustra o ânimo dos dois lados do oceano:

Se as decisões políticas levadas a efeito no Brasil tinham sido uma retroacção amplificadora de carácter progressivo positivo nos contextos económico e social da colónia, em Portugal, essas medidas tiveram também uma função cumulativa mas de sinal diferente. Aqui [em Portugal] tratou-se de uma amplificação regressiva negativa que a breve trecho conduziu a uma crise porque, não tendo o governo capacidade de apresentar soluções que satisfizessem as exigências emanadas do contexto metropolitano, viu-se confrontado com uma situação de ruptura que acabou por conduzir à revolução que eclodiu no Porto em 18208.

D. João VI dissociou o Brasil da condição clássica de uma colônia com uma de suas primeiras medidas, tomada na cidade de Salvador apenas quatro dias após a sua chegada. Por meio da Carta Régia de 28 de janeiro de 1808, conhecida popularmente como “decreto de abertura dos portos”, ordenou-se que fossem “admissiveis nas Alfandegas do Brazil todos e quaesquer generos, fazendas e mercadorias transportados, ou em navios estrangeiros das Potencias, que se conservam em paz e harmonia com a minha Real côroa9.

Essa determinação foi, principalmente, uma recompensa pelo auxílio britânico à fuga da família real, que passava a poder negociar mercadorias nos portos do Brasil em caráter quase exclusivo. Além disso, favoreceu o desenvolvimento intelectual e cultural da elite brasileira, até então com ideias bastante retrógradas em virtude de seu isolamento geográfico. “A influência intelectual europeia (…) significava o ponto de vista liberal, composto dum republicanismo otimista, em que as ideias de pacto social e de democracia vestiam a crença racionalista e individualista10. Raymundo Faoro denota a magnitude dessa mudança:

O comércio estrangeiro, subitamente admitido na colônia, moderniza a acanhada vida colonial, com o padrão de costumes e ideias novas. (...) O nascente antagonismo entre colônia e metrópole quebra-se sob a mole devoradora de fidalgos, concentrando a soberania, a velha e a emergente, sob o trono11.

A importância dada à amizade britânica se tornou patente pouco depois, quando Portugal e Reino Unido concluíram, em 1810, dois importantes acordos: o Tratado de Comércio e Navegação e o Tratado de Aliança e Amizade. O primeiro consolidava os laços comerciais entre as nações, determinando taxas de importação/exportação extremamente favoráveis aos navios britânicos. Ademais, criava o “juízo da conservatória inglesa”, que garantia imunidade de jurisdição para quaisquer questões envolvendo súditos desse país, que só poderiam ser julgados por um juiz especialmente nomeado por D. João VI, que decidiria com base nas leis britânicas12.

O segundo tinha como objetivo principal a formalização da aliança entre as duas nações, contendo um plano internacional para a abolição do tráfico de escravos, já então visto na Europa como uma instituição atrasada que manchava a honra de uma nação civilizada. Ademais, o rei de Portugal garantia a liberdade de culto aos britânicos, afirmando que jamais permitiria a vinda da Inquisição aos seus territórios americanos.

O problema da escravidão foi largamente discutido no Congresso de Viena, tendo sido objeto do Anexo XV do seu Ato Final. Com as independências das colônias espanholas, o Brasil se tornou rapidamente o único importador de escravos africanos do mundo; o assunto era tão importante que, após a sua própria Independência, o país chegou a ser um dos pontos fundamentais da negociação para o seu reconhecimento diplomático. Hobsbawm explica que “[a]s razões para isto foram tanto econômicas quanto humanitárias: a escravidão era revoltante e extremamente ineficaz13.

Realmente, as propostas britânicas para a abolição não presumiam necessariamente a concordância de outros países, passando a ser, ao longo do tempo, cada vez mais agressivas. O isolamento brasileiro no assunto acabou por ter sérias consequências econômicas, pois, “caracterizando-se o sistema econômico escravista por uma grande estabilidade estrutural14, qualquer alteração que nele se operasse era vista como potencialmente cataclísmica. Manuel de Oliveira Lima, diplomata e historiador brasileiro, expõe o entendimento britânico sobre o tema, revelado por Lord Amherst, governador-geral da Índia, em sua visita ao Rio de Janeiro em 1823:

(...) uma nação independente não poderia decentemente preservar uma instituição que era somente tolerável numa colônia, campo de cultivo e comércio, sem a dignidade de uma potência soberana, nem as responsabilidades da defesa de sua integridade territorial. Além disso o Brasil permaneceria isolado, como uma vasta mancha negra, na América Latina livre, único a sustentar um comércio odioso e universalmente reprovado. A justiça britânica ser-lhe-ia facultada, como o sói ser a qualquer país, mas a amizade britânica, essa tinha de ser conquistada mediante aquele sacrifício, que era uma depuração15.

Quando se discute o instituto da escravidão, é fundamental ter-se em conta a modificação que, como todas as palavras, o seu sentido sofreu ao longo dos séculos. Assim, a análise jurídica dos instrumentos e problemas para sua abolição impõe um anterior cotejo histórico, com a cautela de buscar sempre a significação mais adequada aos debates que então se apresentavam. José Reinaldo de Lima Lopes expõe o problema das continuidades na História, relacionando-o diretamente com o escravismo enquanto instituto jurídico:

Falar em escravos na América portuguesa e no Brasil novecentista pouco tem a ver com a escravidão do mundo antigo (…). Logo, a legitimação da presença de escravos faz-se aqui com elementos jurídicos muito diferentes dos tradicionais. Quando os juristas debatem entre nós, na segunda metade do século XIX, a abolição, o tema proeminente do debate é o direito da propriedade dos senhores. A constituição imperial, entre os direitos individuais inalienáveis, registrava o direito de propriedade: como abolir a escravidão sem indenizar os senhores pelo seu ‘direito adquirido’?16.

A primazia do direito de propriedade, afirmada desde o início da colonização do Brasil com a divisão e a cessão das terras régias aos capitães-donatários e a sua prerrogativa legal de distribuir cartas de sesmarias17, foi perpetuada por séculos pelos grandes proprietários de terras e escravos. “A política dos nossos homens de Estado foi toda, até hoje, inspirada pelo desejo de fazer a escravidão dissolver-se insensivelmente no país18. Assim, a construção histórica da escravidão brasileira ainda representava um instituto jurídico firme, sendo determinante a pressão internacional para sua redução e eventual abolição, que viria a ocorrer apenas em 1888, no ocaso do Império.

A despeito desse obstáculo, as relações entre Portugal e Reino Unido chegaram nessa época ao período possivelmente mais harmonioso de sua história. Realmente, a dependência lusitana dos seus aliados insulares passava por aspectos primariamente econômicos, mas não se pode ignorar a influência que esses também exerceram na política e na cultura brasileiras.

Seja pela amizade de longa data, pelas inúmeras vantagens oferecidas ou pelo objetivo fundamental de se abolir o tráfico de escravos, é impossível discutir a Independência do Brasil no seu contexto internacional sem atentar para o papel preponderante que o Reino Unido teve em sua consolidação e reconhecimento.

_________

1 NOVAIS, Fernando Antônio. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial: 1777-1808. São Paulo: Hucitec, 1979. p. 302.

2 HOBSBAWM, Eric J. A era das revoluções: 1789-1848. 25ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011. pp. 167-168.

3 ALMEIDA GARRETT, João Baptista da Silva Leitão de. Portugal na balança da Europa: do que tem sido e do que ora lhe convém ser na nova ordem de coisas do mundo civilizado. 2ª ed. Lisboa: Livros Horizonte, 2005. p. 49.

4 KISSINGER, Henry. Diplomacy. New York: Simon & Schuster, 1994. p. 82.

5 KISSINGER, Henry. Diplomacy. p. 83.

6 KISSINGER, Henry. Diplomacy. p. 83.

7 PROENÇA, Maria Cândida. A Independência do Brasil: relações externas portuguesas, 1808/1825. Lisboa: Livros Horizonte, 1987. p. 19.

8 PROENÇA, Maria Cândida. A Independência do Brasil. p. 42.

9 PORTUGAL. Carta Régia de 28 de janeiro de 1808. Disponível aqui. Acesso em 05.08.2021.

10 SALDANHA, Nelson Nogueira. História das ideias políticas no Brasil. Brasília: Senado Federal, 2001. p. 89.

11 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 5ª ed. São Paulo: Globo, 2012. 286 e 287.

12 A conservatória inglesa foi um instrumento jurídico que efetivamente conferiu extraterritorialidade às leis do Reino Unido, importante condição para a continuidade de seu apoio a Portugal e, supostamente, para a manutenção dos interesses comerciais da Grã-Bretanha. Sua importância é tanta que, depois da Independência, uma proposta de tratado mercantil entre o Brasil e o Reino Unido que previa sua revogação foi recusada pelo Secretário de Assuntos Estrangeiros George Canning. Hoje, tal instituto seria impossível, visto que violaria o artigo 17 da lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei 4.657/42), pela ofensa à soberania nacional, notadamente ao direito de igualdade formal exposto no art. 5º, caput, da Constituição Federal.

13 HOBSBAWM, Eric J. A era das revoluções. p. 180.

14 FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 17ª ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1980. p. 136.

15 OLIVEIRA LIMA, Manuel de. O reconhecimento do Império: história da diplomacia brasileira. 2ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2015. p. 76 e 77.

16 LIMA LOPES, José Reinaldo de. O Direito na História: lições introdutórias. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 5.

17 A sesmaria foi criada em Portugal em 1375, sendo derivada do instituto jurídico romano da enfiteuse e destinada a solucionar os problemas de ocupação da terra, desemprego e escassez de cereais. Funcionava por meio da concessão de uma ‘carta de sesmaria’, que autorizava o donatário a cultivar determinado lote de terra, pagando um dízimo à Ordem de Cristo (na prática, à Coroa Portuguesa), podendo ser revogada caso a terra não fosse cultivada dentro de um prazo preestabelecido. O jurista português Marcello Caetano afirma que a lei tinha o “sentido de desenvolver a agricultura e de empregar a autoridade para forçar os patrões a lavrar a terra e os ciosos a trabalhar nela, combatendo os vícios que já então eram tradicionais em Portugal” (CAETANO, Marcello. História do direito português: 1140-1495. Lisboa: Verbo, 1981. p. 282).

18 NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. 4ª ed. Petrópolis: Vozes, 1977. p. 59 e 60.

Guilherme Lerer
Advogado do escritório Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados, com experiência em Contencioso Cível e Empresarial, bem como em Arbitragem e em confecção e análise de contratos.

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