Motivo de comemoração para a classe trabalhadora, no dia 1º de setembro de 2021, o Senado Federal rejeitou, por 47 votos contrários e 27 favoráveis, o PLV 17, texto da MP 1.045 oriundo da Câmara dos Deputados.
Foi de extrema importância a atuação das entidades sindicais e sociedade civil, conscientizando e mobilizando a população para que o Senado votasse contrariamente ao texto, uma vez que, infestado de jabutis plantados na Câmara dos Deputados, trazia maior precarização dos direitos trabalhistas, sob o falacioso argumento de que "menos direitos" ajudariam no aumento do número de vagas de trabalho.
Inicialmente, o senador Confúcio Moura (MDB-RO) apresentou relatório ao texto, retirando algumas, mas não todas as modificações vindas da Câmara. No início da sessão, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, indeferiu todos os requerimentos de impugnação das matérias estranhas ao texto original, considerando que os dispositivos impugnados guardavam conexão com o objeto da MP.
Após, votado o mérito, o plenário decidiu pela rejeição, mas não sem antes o governo tentar manobra de retirar do relatório um dos programas de contratação precária (o Requip) e reiniciar a votação, o que é vedado pelo regimento e não foi aceito pelo presidente da casa.
Para relembrar
No dia 10 de agosto, o relator da MP na Câmara dos Deputados, deputado Federal Christino Áureo (PP-RJ), apresentou ao plenário novo texto da MP, uma subemenda substitutiva que acatou outras emendas no momento da votação. O mérito do texto foi aprovado e, em 11 e 12 de agosto, os deputados e deputadas votaram os destaques.
Na data, ao estudarmos o novo texto, enviado ao Senado, vinha à nossa cabeça: São muitas matérias estranhas ao texto original da MP, que tinha 25 artigos e passou a 94. Não era um jabuti, mas um monte deles! Qual seria o coletivo de jabutis? Não há! Um monte deles, a MP 1.045!
Jabuti
Jabuti, no jargão parlamentar, é a matéria de conteúdo temático estranho ao objeto originário da medida provisória, prática que vem se tornando comum nesse governo, mas vedada, inclusive pelo Supremo Tribunal Federal, por violar a Constituição federal, principalmente o princípio democrático e o devido processo legislativo.
O texto aprovado na Câmara continha diversas alterações da legislação trabalhista e novas modalidades de contratação. A MP 1.045, originariamente, visava tão somente estabelecer regras para garantir empregos e renda, com o pagamento do Benefício Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, redução proporcional de jornada de trabalho e salários e suspensão temporária do contrato de trabalho durante a pandemia, uma reedição da MP 936, convertida na lei 14.020, de 6 de julho de 2020, mas que perdeu validade com o fim do estado de calamidade pública, em 31 de dezembro de 2020.1
Todos esses jabutis eram muito prejudiciais aos trabalhadores e às trabalhadoras, trazendo à tona dispositivos da MP 905, de 2019, a denominada MP da Carteira Verde-Amarela, revogada pelo governo dias antes de perder sua validade, e da MP 927/2020, e criava três novas modalidades de contratação precarizadas: (1) o Priore – Programa Primeira Oportunidade e Reinserção no Emprego (bastante semelhante ao contrato verde-amarelo); (2) o Requip – Regime Especial de Trabalho Incentivado, Qualificação e Inclusão Produtiva; e (3) o Programa Nacional de Prestação de Serviço Social Voluntário.
Os deputados e as deputadas ignoraram o devido processo legal e o entendimento do STF, com a justificativa de que era da competência do Poder Legislativo encontrar soluções para a crise trabalhista durante e depois da pandemia. O Deputado Marcelo Ramos (PL-AM), no exercício da Presidência da Câmara, durante a discussão em plenário, chegou a dizer que se tratava, pasmem, de "pertinência temática flexível".
Na verdade, a Câmara dos Deputados, sem nenhum debate com a sociedade e de forma açodada, quase repassou de novo a conta da crise econômica à classe trabalhadora: troca empregos formais, seguros e com direitos por modalidades precárias, com menos direitos, privilegiando apenas as empresas.
No Senado, os jabutis finalmente foram barrados e impediu-se que uma legislação excepcional se torna-se permanente, em detrimento da valorização do trabalho humano.
A votação da medida e a derrota do governo no Senado também serviu para escancarar o embate entre a casa e a Câmara dos Deputados. As senadoras e os senadores não acreditaram que os deputados honrariam o acordo entre os presidentes das casas e pelo governo, para retirar os jabutis que mudavam a CLT. A MP voltaria à Câmara, que aprovaria o texto segundo o relatório do senador Confúcio Moura.
A organização das entidades sindicais e de outras da sociedade civil foi determinante para a vitoriosa rejeição do PLV, como se deu à época da MP 905 e da MP 936. Houve inúmeras campanhas nas redes sociais, diversos debates ao vivo, telefonemas a senadores e a senadoras, para explicar e pressionar contra a MP.
E quais os prejuízos contidos na MP?
Dentre os principais jabutis que retiravam direitos de quem trabalha, chamam a atenção os programas de emprego, qualificação e aprendizagem trazidos pela Câmara dos Deputados.
Vejamos.
O Priore – Programa Primeira Oportunidade e Reinserção no Emprego trazia à tona inúmeros dispositivos da MP 905, MP da Carteira Verde-Amarela, já que era destinado às pessoas com idade entre 18 e 29 anos, relativamente ao primeiro emprego com carteira assinada, e às pessoas acima de 55 anos que estejam sem o vínculo formal há mais de 12 meses.
Permitia a contratação no período de 36 meses, contudo, os contratos que firmados no último mês da vigência poderiam vigorar por até 24 meses, ou seja, o Priore produziria efeitos por até 60 meses, cinco anos.
Um dos principais prejuízos aos contratados pelo Programa era o recebimento do 13º salário e das férias com 1/3 de forma proporcional, se acordado entre as partes. A indenização sobre o FGTS também poderia ser paga de forma antecipada, mensalmente ou em outro período, desde que acordado entre as partes.
E havia, ainda, a redução da alíquota mensal do FGTS paga pelo empregador: de 2%, 4% e 6%, em vez de 8%, além da redução pela metade da indenização paga ao empregado sobre os depósitos do FGTS: 20%, em vez dos atuais 40%.
O Requip – Regime Especial de Trabalho Incentivado, Qualificação e Inclusão Produtiva, por sua vez, teria duração de três anos e pretendia garantir a qualificação profissional e a inclusão produtiva do jovem no mercado de trabalho, mas, na verdade, criava subcategoria de trabalhador em uma mesma empresa e abria margem para fraudes na relação trabalhista. As empresas poderiam, por exemplo, contratar e não dar qualificação profissional e cobrar essas pessoas como se fossem empregadas. Quem fiscalizaria?
Pela MP, a relação não seria considerada de emprego, e sim relação civil. A pessoa teria direito apenas ao vale-transporte e não receberia qualquer indenização ao fim do contrato, como aviso-prévio, férias e 13º proporcionais, mesmo que exercesse idêntica atividade e desempenhasse iguais tarefas de um outro colega de trabalho registrado em carteira de trabalho. A pessoa contratada pelo Requip, assim, não seria empregada, não seria estagiária: seria uma figura à margem, sem direitos, verdadeiramente o retorno da escravidão no Brasil.
O texto também desprestigiava a negociação coletiva, ao considerar que os beneficiários do Regime não constituíam categoria profissional e, portanto, os termos da contratação não seriam objeto de negociação coletiva, ficando a empresa autorizada a oferecer liberalidades e condições mais favoráveis.
Ao contratado, era assegurado o pagamento do BIP – Bônus de Inclusão Produtiva, de até cerca de R$ 220 mensais, pagos pela União até 31/12/2021, e pelo Sistema S, a partir de 2022. Uma pessoa contratada pelo Requip para trabalhar 22 horas semanais receberia apenas cerca de 40% do salário-mínimo e não teria direito a 13º salário, férias, FGTS e a nenhum direito trabalhista.
A Bolsa de Incentivo à Qualificação (BIQ), também assegurada, teria o mesmo valor, ou seja, a soma dos dois benefícios poderá chegar a R$ 440 mensais.
A BIQ possuía caráter indenizatório e era devida com base no valor do salário-mínimo hora, mas limitada a 11 horas semanais, não integrando a base de cálculo da contribuição previdenciária. E o empregador poderia excluir essa despesa do lucro líquido, para fins de imposto de renda, diversamente do que ocorre com os salários.
Por fim, o Programa Nacional de Prestação de Serviço Social Voluntário, outro grande jabuti introduzido pelo relator, trazia mais uma modalidade de precarização e exploração da força de trabalho das pessoas mais jovens e pessoas com mais de 50 anos, com maior vulnerabilidade social e econômica.
Por ele, as pessoas seriam contratadas pelos municípios e prestariam serviços, por até três dias na semana, sem qualquer reconhecimento de que se trata de uma relação de trabalho. Os contratados teriam uma bolsa em contrapartida, paga pela União e outra parcela pelo município.
A adesão ao Programa pelos municípios era voluntária e mediante instrumento de parceria fornecido pelo Ministério do Trabalho e Previdência, tudo muito aberto, sem regulamentação.
Em relação à fiscalização das empresas, a MP previa que as empresas só seriam multadas por descumprir a lei depois de duas visitas dos auditores do trabalho. O que era exceção, o critério da dupla visita, viraria regra, válida até mesmo para casos de trabalho análogo ao escravo e situação de trabalho infantil.
A MP interferia na instauração dos procedimentos para a ação fiscal e na autonomia do Ministério Público do Trabalho, com a possibilidade de celebração de termos de ajuste de conduta com prazos e multas inferiores aos atuais.
Além do mais, a MP estabelecia que o planejamento das ações de inspeção contemplasse projetos especiais de fiscalização setorial para a prevenção de acidentes de trabalho, doenças ocupacionais e irregularidades trabalhistas a partir da análise dos dados de acidentes e adoecimento ocupacionais, ações essas em que caberia a lavratura de autos de infração.
Modificava, ainda, procedimentos sobre recurso de decisão que impusesse multa administrativa, tudo, como se vê, para dificultar que as empresas fossem punidas e pagassem por descumprir a lei.
A MP alterava também a jornada de trabalho de algumas categorias de trabalhadores e trabalhadoras, ao prever a inclusão da extensão da duração normal do trabalho até o limite de 8 horas diárias no caso de atividades ou profissões com jornadas diferenciadas estabelecidas em lei, mediante acordo individual escrito, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, assegurado ao empregado o pagamento de hora adicional com valor de 20% da hora normal.
Permitia, assim, que pessoas com jornada de trabalho especial, como as de telemarketing e jornalistas, tivessem sua jornada estendida até 8 horas diárias, recebendo as horas excedentes com o acréscimo de 20%. O trabalhador deveria, na verdade, receber o acréscimo como hora extra, em 50%, como garante a Constituição federal, em seu art. 7º, inciso XVI.
Nesse ponto, chamava a atenção a incongruência da medida. Por um lado, para manter e criar empregos, reduzia a jornada e o salário. Para essas categorias com jornadas especiais, de outro, possibilitava o aumento da jornada, que é reduzida justamente para garantir a saúde dos trabalhadores e das trabalhadoras, em razão das atividades que exercem. Jabuti estranho esse...
Por fim, é preciso citar as inúmeras alterações à CLT em relação ao benefício da justiça gratuita. E não só: modificava a lei 5.010/66, que organiza a Justiça Federal; a lei 10.259/01, Lei dos Juizados Especiais Federais; e a lei 13.105/15, Código de Processo Civil, especialmente para estabelecer que teria direito a esse benefício a pessoa pertencente à família de baixa renda.
Qual era a pertinência temática, mesmo que flexível (!), dessas limitações ao acesso à Justiça?
Somente poderiam ter direito ao benefício aqueles com renda familiar mensal per capita de até meio salário-mínimo; ou com renda familiar mensal de até três salários-mínimos.
A prova dessa condição deveria ser realizada por meio da apresentação de comprovante de habilitação em cadastro oficial do governo instituído para programas sociais, não bastando a mera apresentação de declaração de insuficiência de recursos para o pagamento das custas e honorários do processo, como é atualmente.
No que se refere ao processo trabalhista, a MP propunha que teria direito ao benefício da justiça gratuita a pessoa física que, durante a vigência do contrato de trabalho mais recente, tivesse percebido salário igual ou inferior a 40% do limite máximo dos benefícios do RGPS (art. 790, § 3º, II, da CLT).
Como se vê, novamente, apenas as empresas seriam beneficiadas por todas as alterações e as novas formas de contratação, que custariam bem menos.
A MP 1.045, ao fim e ao cabo, era verdadeira continuidade da "reforma trabalhista" de 2017, com o intuito de diminuir custos para os empresários, mas não beneficiando nem mesmo o empresário nacional, uma vez que diminuía o poder aquisitivo da população e, consequentemente, o consumo.
Que os jabutis possam descansar em seu habitat natural e que o parlamento abra espaço ao debate de políticas de geração de empregos, qualificação profissional e recuperação de empregos e de renda, com a participação efetiva dos trabalhadores e das trabalhadoras!
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1 Conforme decreto 6, de 2020. Acesso em 11/8/2021.