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Compensação de energia elétrica e a não incidência de ICMS, PIS e Cofins

O objetivo deste trabalho é tecer comentários acerca da desnecessidade das referidas normas isentivas, tendo em vista que sequer há de se falar em possibilidade de incidência do ICMS, do PIS e da Cofins nas operações realizadas dentro do sistema de compensação de energia elétrica, em razão da inocorrência do fato gerador previsto na regra matriz de incidência destes tributos.

2/9/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

A Agência Nacional de Energia Elétrica (“ANEEL”), através da Resolução Normativa 482/12, criou o Sistema de Compensação de Energia Elétrica e estabeleceu normas e condições para sua utilização.

Em uma breve explanação, por meio da sistemática da compensação de energia, é permitido ao pequeno consumidor, sujeito ao mercado cativo, gerar energia a partir de fontes naturais e renováveis e direcionar o excedente para a rede de distribuição local. Este excedente poderá, subsequentemente, ser utilizado pelo próprio consumidor na unidade geradora ou em outra unidade consumidora de sua titularidade.

Em uma suposta tentativa de beneficiar o setor, os Estados da Federação firmaram um convênio autorizando a concessão de isenção do Imposto Sobre a Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de transporte interestadual, intermunicipal e de comunicação (“ICMS”) incidente sobre a energia elétrica compensada neste sistema, trata-se do Convênio ICMS 16/2015.

Nesse esteio de estímulo à geração de energias renováveis, também foi editada a lei 13.169/15, que reduz à zero as alíquotas do PIS e da Cofins incidente sobre a energia elétrica compensada.

O objetivo deste trabalho é tecer comentários acerca da desnecessidade das referidas normas isentivas, tendo em vista que sequer há de se falar em possibilidade de incidência do ICMS, do PIS e da Cofins nas operações realizadas dentro do sistema de compensação de energia elétrica, em razão da inocorrência do fato gerador previsto na regra matriz de incidência destes tributos.

O sistema de compensação de energia elétrica representa opção ao consumidor que produz energia para consumo próprio, sendo assim definido, no artigo 2º, III da referida resolução:

III - sistema de compensação de energia elétrica: sistema no qual a energia ativa injetada por unidade consumidora com microgeração ou minigeração distribuída é cedida, por meio de empréstimo gratuito, à distribuidora local e posteriormente compensada com o consumo de energia elétrica ativa; (Redação dada pela REN ANEEL 687, de 24.11.2015.)

Observa-se, que a própria a Resolução Normativa ANEEL 482/12 define o sistema de compensação de energia elétrica como um empréstimo gratuito da energia gerada pelo consumidor à distribuidora, que será posteriormente compensada com o consumo da energia elétrica ativa.

Este posicionamento foi, inclusive, corroborado pela Procuradoria-Geral Federal, tendo sido objeto do Parecer 108/2012­PGE/ANEEL/PGF/AGU, que decidiu que a natureza jurídica da relação firmada entre o consumidor e a distribuidora é de “empréstimo gratuito de coisa fungível, ou seja, que pode ser substituída por outra de mesma espécie, qualidade e quantidade, na forma do art. 586 do Código Civil1

Da análise da relação jurídica delineada anteriormente, surge o seguinte questionamento: o empréstimo gratuito de coisa fungível é base de cálculo do ICMS, do PIS ou da Cofins?

A Constituição Federal estabelece que o ICMS incide sobre “operações relativas à circulação de mercadoria”, nos termos do seu art. 155, inciso II. Assim, a hipótese de incidência do ICMS consiste na prática de negócio jurídico (operação) apto a promover a transferência de titularidade (circulação) de bens com a finalidade de mercancia (mercadoria). Sobre o tema, destacam-se os ensinamentos de Geraldo Ataliba:

É a operação – e apenas esta – o fato tributado pelo ICMS. A circulação e a mercadoria são consequências e meros aspectos adjetivos da operação tributada. (...) Não é qualquer operação realizada que se sujeita ao ICMS. Destas, apenas poderão ser tributadas as que digam respeito à circulação atinente a uma especial categoria de bens: as mercadorias.2

Assim, para a ocorrência do fato gerador do ICMS, é necessário a presença dos seguintes elementos: (i) operação, (ii) circulação, e (iii) mercadoria. Inexistindo qualquer um destes fatores, o negócio jurídico não estará sujeito ao campo de incidência do ICMS.

Paulo de Barros Carvalho, ao definir o conceito de operação, define-o como qualquer “ato ou negócio hábil para provocar a circulação de mercadorias”. Logo, operação é toda e qualquer atividade, regulada pelo Direito, e que tenha a virtude de realizar aquele evento.

Circulação, por sua vez, significa para o direito mudar de titular. Geraldo Ataliba esclarece que se convenciona “designar por titularidade de uma mercadoria, a circunstância de alguém deter poderes jurídicos de disposição sobre a mesma, sendo ou não seu proprietário (disponibilidade jurídica)”3. 

Por fim, vale esclarecer que para um produto ser classificado como mercadoria, o bem precisa ser comercializado de maneira habitual e destinar-se à persecução do objetivo principal da empresa. José Eduardo Soares de Melo possui considerações relevantes sobre o tema:

Os bens negociados ou transmitidos por particulares, prestadores de serviços de qualquer natureza, financeiras, etc., sem implicar mercancia, e não sendo transacionados com habitualidade, não são qualificados como mercadoria. Exemplo: o automóvel vendido por particular não é mercadoria, enquanto o mesmo veículo negociado por fabricante ou concessionária caracteriza-se como mercadoria.4

No caso dos negócios jurídicos realizados no âmbito da câmara de compensação de energia elétrica, não há dois elementos essenciais a caracterização do fato gerador do ICMS, quais sejam: (i) circulação; e (ii) mercadoria.

No que diz respeito a ausência de mercadoria, como pontuado anteriormente, para que um bem seja considerado uma mercadoria é necessário que ele seja utilizado pelo seu titular em operação com intuito de mercancia.

Não se desconhece que a energia elétrica é tratada como mercadoria pela constituição federal. Mas isso apenas é possível nos casos em que a energia é transacionada habitualmente e com intuito comercial.

Contudo, no caso específico, se energia compensada é transferida à distribuidora como empréstimo gratuito, afasta-se qualquer hipótese concretização de operação mercantil onerosa, ou seja, não há que se falar em compra e venda de energia elétrica.

O micro ou minigerador de energia possui como finalidade o abastecimento do seu próprio estabelecimento, sem qualquer finalidade de obtenção de lucro. Trata-se, portanto, de autoprodução de energia.

No caso específico, se energia compensada é transferida à distribuidora como empréstimo gratuito, afasta-se qualquer hipótese de concretização de operação mercantil onerosa, ou seja, não há que se falar em compra e venda de energia elétrica.

Pela ausência de caráter mercantil, não há como se caracterizar a energia elétrica como uma mercadoria (nas hipóteses das transações realizadas dentro da câmara de compensação de energia elétrica).

Assim, ainda que este ativo possa ser caracterizado como mercadoria para algumas empresas (geradoras, distribuidoras e comercializadoras), ela não o é para o consumidor integrante do sistema de compensação de energia, cujos negócios jurídicos pactuados são de empréstimo gratuito de coisa fungível (e não compra e venda comercial).

Logo, inexistindo mercadoria, não há que se falar em cobrança do ICMS.

Ato contínuo, também não há que se falar em circulação.

Importante pontuar que ao dispor sobre titularidade, a Resolução Normativa 414/10 da ANEEL determina que a cada consumidor corresponde a uma ou mais unidades consumidoras. Portanto, ainda que a energia seja gerada em uma unidade e consumida em outra, não há alteração da titularidade jurídica do bem.

Sobre o tema, destaca-se a súmula 166 do STJ, segundo a qual “não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte”. O presente posicionamento foi ratificado pela corte ao julgar o Recurso Especial 1.125.133/SP.

Assim, tendo em vista que o consumidor da energia elétrica é a mesma pessoa que a gerou, não há troca de titularidade jurídica do bem apta a ensejar a cobrança do ICMS.

Os tribunais brasileiros já vêm decidindo no sentido de reconhecer a não ocorrência de ato jurídico que configure circulação de mercadoria, tendo em vista que também não há transferência de titularidade do bem. Portanto, o negócio jurídico verificado no sistema de compensação de energia elétrica é o “empréstimo gratuito, o que não tem o condão de ensejar a transferência de titularidade, não ensejando assim a incidência do ICMS.”5

Em acórdão do TJ/RS, o desembargador que liderou a divergência fundamentou a não incidência do ICMS no mesmo sentido, pontuando que “quando da compensação entre a energia consumida pelo estabelecimento e os créditos que a impetrante possui, o que há é a restituição daquilo que foi objeto do mútuo. Reitero: deve haver uma circulação jurídica da mercadoria para que haja tributação.”6

O TJ/PE também está decidindo em consonância com este entendimento, tendo sido prolatada sentença reconhecendo a inexistência de relação-jurídico tributária que obrigue o pagamento do ICMS sobre a energia compensada. Nesse sentido, é fato que o “que o ICMS incide sobre a venda de energia elétrica para distribuição ou comercialização. Não há incidência do ICMS quando o próprio consumidor gera a energia elétrica que irá consumir. Não se trata de isenção, mas de não realização da hipótese de incidência tributária.”7

Estes precedentes, uma vez aceitos pela Suprema Corte, podem pacificar esse tema definitivamente e gerar a segurança jurídica para que efetivamente não seja cobrado o ICMS sobre a energia excedente produzida por micro e minigeradores fotovoltaicos.

Assim, resta demonstrado que não há ocorrência do fato gerador do ICMS, circunstância que impede a cobrança do tributo, ainda que as operações não estejam abarcadas pela norma isentiva objeto do Convênio ICMS 16/2015. Houve, portanto, um erro legislativo ao outorgar uma isenção para uma operação que estava fora da hipótese de incidência do ICMS.

No que diz respeito ao PIS e Cofins, também não há que se falar em ocorrência do fato gerador destes tributos. Seja no regime cumulativo ou não cumulativo, o PIS e a Cofins incidem sobre as receitas auferidas.

Como exaustivamente pontuado, nas operações firmadas no âmbito do sistema de compensação de energia elétrica, as distribuidoras não auferem receita com os negócios jurídicos pactuados, posto que se trata de empréstimo gratuito de bem fungível.

Não havendo receita, não há fato gerador das contribuições sociais, logo, não há incidência do PIS e da Cofins. Portanto, mais uma vez, a norma isentiva se mostrou desnecessária, posto que o negócio jurídico firmado não está previsto na regra matriz de incidência tributária.

Apesar desses benefícios demonstrarem um estímulo ao setor, estão postos de maneira equivocada, em razão de não haver a concretização do fato gerador que enseje a incidência dos referidos tributos. Isto pois, a mera descrição da operação de compensação revela que inexiste circulação jurídica de energia elétrica.

A energia excedente produzida pelo micro ou minigerador é injetada na rede da distribuidora e apenas configura uma ficção jurídica para ilustrar o que poderá ser compensado pela produtora em um momento posterior. Desse modo, o fato gerador que dá origem a obrigação jurídica para o recolhimento do ICMS, que é a circulação jurídica de mercadoria, com intuito mercantil e transferência de titularidade, não se caracteriza na operação de compensação, na qual há apenas mútuo.

Por ser mútuo gratuito, também não há qualquer receita ou faturamento. Assim, não há o fato gerador que garante a incidência das contribuições ao PIS e à Cofins.

________

2 ATALIBA. Geraldo. ICMS. Incorporação ao ativo – Empresa que loca, oferece em ‘Leasing’ seus produtos – Descabimento do ICMS. Revista de Direito Tributário vol. 52. P.74

3 ATALIBA, Geraldo. Núcleo de definição constitucional do ICM. RDT 25/111.

4 MELO, José Eduardo Soares de. ICMS: Teoria e prática. 14 ed. Ver e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2018. fls.17.

5 TJ/MG. Mandado de Segurança 5094238-16.2020.8.13.0024 – 3ª Vara de Feitos Tributários do Estado – Comarca de Belo Horizonte – Publicado em: 20/08/2020

6 TJ/RS. Apelação  0017557-92.2020.8.21.7000 – Vigésima Primeira Câmara Cível – Comarca de Porto Alegre – Publicado em: 22/07/2020

7 TJ/PE. Mandado de Segurança 0030508-91.2020.8.17.2001 – 6ª Vara da Fazenda Pública da Capital – Comarca de Recife – Publicado em: 20/01/2021

Otávio Batista De Carvalho Júnior
Sócio da área de direito tributário do Da Fonte Advogados.

Maria julia campelo lima rodrigues
Sócia da área de direito tributário do Da Fonte Advogados.

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