Migalhas de Peso

O Direito Marítimo e o IX Congresso Nacional: perspectivas positivas

A atuação de um P&I Club é uma operação de seguro que permanece inatingida pelo preceito legal da colocação obrigatória no mercado interno, razão pela qual ainda hoje somente é adquirida diretamente no exterior pelos interessados.

2/9/2021

 

(Imagem: Arte Migalhas)

1. Dos comentários iniciais

De 26 a 27 de agosto deste ano, participei do IX Congresso Nacional de Direito Marítimo, Portuário e Aduaneiro, desta vez realizado em Florianópolis e organizado pela comissão temática da OAB-SC1.

O presidente da comissão, o querido amigo James Winter – a quem publicamente agradeço –, convidou-me para participar como um dos expositores do Terceiro Painel, que tratou do tema “Tópicos especiais de Direito Marítimo (Responsabilidade Civil)”.

O painel foi presidido por Alberto Bernardi e coordenado por Renã Margalho, colegas ilustres e dignos de admiração.

Participaram como expositores alguns dos mais brilhantes profissionais da área no Brasil, nomes de peso e extensa vida acadêmica: Godofredo Mendes Vianna, Eliane Octaviano Martins e Felipe Galante. Diante deles, como confessei ao qualificadíssimo colégio de participantes, senti-me um peixe fora d'água.

Antes de comentar sobre os assuntos tratados pela distinta mesa e, em especial, aquele que me coube (A responsabilidade solidária entre armador e P&I CLUB), registro minha satisfação de rever amigos para lá de estimados, que enriqueceram o evento com suas presenças: Marcelo Sammarco, José Urbano Cavalini Junior, Thiago Miller, Iwam Jaeger, Larry Carvalho, Ricardo Martins, Fernando Neves, Douglas Winter, Pedro Calmon Neto e tantos outros que deixo de citar pela quantidade, e para não cometer a indelicadeza de esquecer de algum. Todos ajudaram a fazer do evento um inegável sucesso.

Aos amigos todos, citados ou não, externo meu contentamento e registro o mais sincero e comovido agradecimento, certo de que o faço em nome do meu amigo Rubens Walter Machado Filho, que esteve a meu lado nos dois dias de intensas atividades.

Em um congresso aprende-se muita coisa e se confraterniza com pessoas fantásticas, renova-se o ânimo acadêmico-profissional, estreitam-se os laços de coleguismo e de amizade.

Com este não foi diferente. Meu sócio e eu ficamos especialmente animados e com desejo sincero de aplicar em nosso cotidiano profissional o que aprendemos nos dois dias. Parte do ânimo também tem a ver com a acolhida dos organizadores, colegas em geral e amigos em especial.

Diante disso tudo, resolvi comentar – ainda que sumariamente – alguns pontos do painel do qual tive a satisfação de participar.

  2. Do painel de responsabilidade civil no Direito Marítimo

Os temas tratados e seus expositores foram os seguintes:

Convenções internacionais, Godofredo Mendes Vianna

Arbitragem, Eliane Octaviano Martins

O CDC e os danos ambientais, Felipe Galante.

Coube a mim expor sobre a solidariedade entre o P&I CLUB e o armador.

Godofredo Mendes Vianna, com peculiar elegância, destacou a importância das convenções internacionais e a necessidade de serem reconhecidas e aplicadas pelo Brasil. Fez uso do Direito Comparado e convidou a todos à reflexão. Penso que seus argumentos muito têm a ver com a visão econômica do Direito e bem se alinham à ideia de estabelecer um ambiente favorável ao empreendedorismo.

A professora Eliane Octaviano Martins tratou da questão da arbitragem segundo a doutrina e a jurisprudência. Expôs brilhantemente sobre os aspectos positivos do uso da arbitragem para a solução de conflitos maritimistas e destacou a necessidade de negociação prévia entre os interessados. Em pouco tempo conseguiu falar muita coisa, e o fez de modo muito bem fundamentado.

Luiz Felipe Galante, excelente advogado, abordou a questão do uso da legislação consumerista por vítimas de danos ambientais causados por navios. Apresentou decisões favoráveis e desfavoráveis e argumentou o equívoco dos defensores da tese, já que não há por parte das vítimas dos danos aquilo que a doutrina e a jurisprudência chamam de relação de consumo adjacente a justificar o conceito legal de vítima do fato do produto e do serviço.

Três excelentes apresentações, instigantes, em nada prejudicadas pelo pouco tempo destinado aos protagonistas.

Tão instigantes que me permito comentar rapidamente cada uma delas.

Sobre as convenções internacionais devo primeiramente confessar minha parcial ignorância.

Sempre disse que o Brasil não incorporou nenhuma das convenções internacionais de Direito Marítimo ao seu ordenamento jurídico.

Descobri que não é bem assim. O Brasil introduziu, sim, algumas convenções em seu Direito interno. Então, eu estava errado esse tempo todo?

Não exatamente. Explico: sempre considerei convenções aquelas que tratam do Direito Marítimo como um todo, destacando-se o trato da responsabilidade civil do transportador de cargas.

Por isso, afirmei, como ainda afirmo, apenas fazendo-o com ressalvas doravante, que o Brasil não se submete a qualquer das grandes convenções internacionais, isto é, as de âmbito amplo, geral. É signatário apenas da de Hamburgo, mas não a ratificou por meio do seu Poder Legislativo.

Não obstante, assinou e ratificou não poucas, de menor amplitude e sobre temas pontuais, muito específicos.

Alguns exemplos: a Convenção de Arresto de Navios de 1999, a Convenção de Nairóbi sobre Remoção de Destroços de 2007, a Convenção sobre Responsabilidade Civil por Danos Causados por Óleo Bunker de 2001, o Protocolo de 2000 sobre a preparação, resposta e cooperação frente a incidente de poluição por substâncias perigosas e nocivas.

A quantidade de convenções internacionais é enorme, e o Brasil não se orienta nem por um terço, mas muito me aproveitará, doravante, ser mais cuidadoso ao afirmar que o Brasil não se orienta por nenhuma delas. Algumas vigem no país e compõem seu ordenamento jurídico.

Nenhuma ampla, geral, exaustiva, como a de Haia-Visby (Regras de Haia de 1924), mas todas afetas ao Direito Marítimo, ainda que apenas em parte.

Convencido pelos argumentos do expositor, concluo que a aderência do Brasil ao conjunto normativo internacional talvez possa mesmo ser positiva, desde que não prejudique de algum modo dois princípios fundamentais, que são verdadeiras garantias constitucionais, o princípio da reparação civil integral (ou da indenizabilidade irrestrita) e o princípio do acesso à jurisdição nacional, além da regra civil que trata das causas legais excludentes de responsabilidade do transportador, que são apenas o caso fortuito, a força maior e o vício de origem (de embalagem).2

Relativamente ao tema arbitragem, afirmo se tratar de um dos mais importantes atualmente do Direito Marítimo em exercício; e sua expositora, a famosa professora Eliane Octaviano Martins, deu-lhe o tratamento merecido, com didatismo exemplar e notável riqueza informativa.

Concordo com a professora quando dá ao procedimento arbitral o crédito de ser especial e prático, pautado pelo conhecimento bem específico das particularidades da disciplina.

É exatamente isto que se espera da arbitragem: o selo da especificidade material. As partes escolhem os árbitros e estes, presumidamente, são notórios especialistas do assunto em conflito.

Concordo mais ainda quando afirma que a voluntariedade é pressuposto de validade do uso da arbitragem, até por ser algo exigido pela própria lei especial brasileira que a disciplina. 

Sobre este ponto em especial há algum tempo me posiciono pela invalidade e ineficácia, mesmo nulidade, da cláusula de arbitragem presente nos conhecimentos internacionais de transporte marítimo de carga.

Acredito que a cláusula que dispõe sobre o compromisso arbitral é abusiva porque não há compromisso propriamente dito, mas imposição por parte do transportador.

O negócio de transporte marítimo de carga é instrumentalizado pelo conhecimento, o Bill of Lading. Sua natureza jurídica, para muitos, é a de um contrato de adesão. Para outros tantos, de título de crédito. Em termos práticos, importa um pouco menos a discussão, já que o clausulado que contém é efetivamente determinado apenas por uma das partes, o emissor (transportador).

Nele não há manifestação bilateral de vontades. Daí dizer-se que as cláusulas são impostas ao embarcador e ao consignatário da carga.

Cláusulas unilaterais devem ser interpretadas e aplicadas restritivamente. Quando implicarem cerceamento de direitos ou algum prejuízo especialmente sensível, o signo da ilicitude (abusividade) se impõe.

O propósito aqui não é o de tratar detalhadamente da cláusula, mas apenas o de enfatizar a necessidade de negociação prévia entre as partes. Necessidade que decorre não só da deontologia do Direito, mas da própria Lei de Arbitragem, nunca é demais repetir.

Sabe-se que não existe renúncia tácita da garantia de acesso à jurisdição, razão pela qual também não se pode falar em validade e eficácia da cláusula de arbitragem não negociada prévia e formalmente.

Situação que se mostra ainda mais explícita, e até dramática, quando o interessado na luta pelo direito não é a vítima direta do dano, mas o segurador sub-rogado. Em que pesem vozes poderosas em sentido contrário, o segurador não pode ser obrigado ao cumprimento de disposição de contrato de que não é parte, especialmente se lhe importar prejuízo ao direito de regresso. Há em seu favor não só princípios poderosos como os da razoabilidade e da proporcionalidade, mas a lei (art. 786, 2º, do Código Civil) e a posição do Supremo Tribunal Federal (Súmula 188).3 E isso tudo faz muito sentido, afinal o direito de regresso do segurador não deriva do contrato de transporte incumprido, mas da sub-rogação legal, do pagamento da indenização de seguro à vítima do dano causado pelo transportador. Razões ônticas distintas que exigem respostas também distintas.

Tenho simpatia pela arbitragem, não obstante a preferência pela Justiça, e enxergo não poucos benefícios na sua regular utilização. Apenas advogo em favor da voluntariedade. A arbitragem não pode ser imposta às partes, mas tem que ser fruto da vontade livre, desimpedida, algo nascido do consenso e da negociação prévia entre os interessados.

Por fim, especial atenção merece o assunto abordado pelo prestigiado Luiz Felipe Galante: o uso do CDC para a responsabilização do transportador marítimo por danos ambientais.

Ele expôs as diferentes decisões judiciais a respeito e pendeu para a defesa da imperfeição da tese, sustentando que falta às vítimas a relação adjacente de consumo, a fim de se enquadrarem como tais relativamente ao fato do produto e do serviço.

Os argumentos apresentados para tanto foram muito consistentes e persuasivos.

Penso que ele está certo e sua posição merece prestígio. E o digo com a sinceridade de quem sobre isso mudou de entendimento ao longo do tempo.

Inicialmente, eu entendia que a responsabilidade civil do transportador marítimo deveria ser regulada pelo CDC.

Tratando-se de modalidade de prestação de serviço, o transporte marítimo se submetia ao regramento consumerista independentemente da falta de hipossuficiência factual dos seus atores e do destino da mercadoria transportada.

O que o credor da obrigação de transporte faria com a coisa transportada nada interessava. Importante era considerar o serviço em si, que começava com sua coleta no porto de origem e terminava com a entrega no porto de destino. Se imperfeito o serviço, a lei do consumidor incidiria automaticamente.

Embora não gostasse do rótulo, a verdade é que eu comungava da teoria maximalista do uso do CDC.

Durante bom tempo, a teoria foi bem recepcionada pelo Poder Judiciário, até que aos poucos começou a perder fôlego.

Antes mesmo da guinada jurisprudencial, porém, abandonei a tese.

Convenci-me de alguns equívocos argumentativos e, ainda mais importante, não vi mais a necessidade de sua aplicação nos litígios envolvendo transportes de cargas por causa da entrada em vigor do Código Civil de 2002.

Problemas que antes reclamavam o apoio da legislação consumeristas eram mais do que bem solucionados pelo então novo Código. O transportador marítimo de cargas passou a responder de forma objetiva, mesmo em danos não contratuais, por ser manejador de fonte de risco, conforme o art. 927.4

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o Direito Civil mudou substancialmente para se adaptar ao crescimento do que se pode chamar de sociedade de risco. Os riscos do viver em sociedade, hoje, não são os mesmos de cem, duzentos anos atrás. O grande paradoxo do desenvolvimento geral é o crescimento exponencial dos riscos.

E com esse crescimento a necessidade de respostas jurídicas verazes e eficazes veio a reboque. O direito de não ser lesado, a teoria do risco integral, a amplitude da responsabilidade objetiva, a reparação civil integral são algumas das respostas ao fenômeno.

Dada a natureza da atividade de transporte, impossível não reconhecer sua perfeita simetria com o que diz o parágrafo único da regra legal [Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem]. O transportador exerce atividade de risco e por isso responde sempre objetivamente pelos danos e prejuízos causados.

Isso cabe muito bem ao caso das vítimas de danos ambientais. Elas não precisam buscar amparo na legislação consumerista, cheia de nuances que tornam difícil sua aplicação, mas podem e devem muito bem usar o Código Civil, cujo espírito geral é o de proteger ao máximo as vítimas de danos.

É isso.

Por fim, comento a parte que me coube tratar no congresso: a solidariedade entre P&I CLUB e armador.

  • Clique aqui para conferir a íntegra do artigo.

_________

1 O evento que foi presencial observou rigorosamente os protocolos sanitários estabelecidos pelo estado de Santa Catarina para a pandemia do Covid-19 e se deu de forma tanto quanto possível segura.

2 As convenções internacionais dispõem, de um modo geral, de muitas causas legais excludentes de responsabilidade do transportador, o que é injusto e perigoso. O Brasil tem um dos mais equilibrados e justos regimes jurídicos sobre o assunto, garantindo os legítimos direitos e interesses dos donos de cargas prejudicados por serviços de transporte imperfeitos. Este regime não pode sofrer alterações significativas em caso de adesão a algum dos pacotes normativos internacionais.

Art. 786. Paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano.

§2º É ineficaz qualquer ato do segurado que diminua ou extinga, em prejuízo do segurador, os direitos a que se refere este artigo.

SÚMULA 188 - O SEGURADOR TEM AÇÃO REGRESSIVA CONTRA O CAUSADOR DO DANO, PELO QUE EFETIVAMENTE PAGOU, ATÉ AO LIMITE PREVISTO NO CONTRATO DE SEGURO.

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Parágrafo únicoHaverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

Paulo Henrique Cremoneze
Advogado com atuação em Direito do Seguro e Direito dos Transportes. Sócio do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas - Advogados Associados. Mestre em Direito Internacional Privado. Especialista em Direito do Seguro.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Coisa julgada, obiter dictum e boa-fé: Um diálogo indispensável

23/12/2024

Macunaíma, ministro do Brasil

23/12/2024

Inteligência artificial e direitos autorais: O que diz o PL 2.338/23 aprovado pelo Senado?

23/12/2024

(Não) incidência de PIS/Cofins sobre reembolso de despesas

23/12/2024

A ameaça da indisponibilidade retroativa

23/12/2024