A doutrina registra e os fatos demonstram que, desde o início da vigência da atual Constituição Federal, se há um domínio do regime jurídico-administrativo que tem vivenciado forte expansão e reconfiguração, este é, sem dúvida, o Direito Administrativo Sancionador (DAS 1). Entre os principais fatores de impulso dessa transformação, pode-se mencionar (i) a aplicação dos direitos e garantias fundamentais no campo do DAS; (ii) a influência das teorias jurídicas inspiradas no pragmatismo e no consequencialismo e, em especial; (iii) a introdução da consensualidade na atividade sancionatória 2.
Primeiramente, essa incidência dos direitos e garantias fundamentais, dedicada a evitar abusos e arbitrariedades, pode ser traduzida na submissão do ius puniendi estatal a determinados princípios formais e materiais imanentes ao próprio Estado Democrático de Direito 3, como o do devido processo legal adjetivo (ampla defesa e contraditório) e substantivo (proporcionalidade e razoabilidade), da segurança jurídica, da legalidade, da tipicidade, da presunção de inocência, da prescritibilidade e da motivação das decisões sancionatórias 4.
Ao lado dessa atenção conferida aos direitos e garantias fundamentais, a influência do pragmatismo despertou no DAS a preocupação com a eficiência da atividade sancionatória, o que, por sua vez, pressupõe identificar a finalidade da sanção administrativa e, bem assim, compreender o seu caráter instrumental. Com precisão, destaca Alice Voronoff que a sanção administrativa deve ter por fim conformar condutas em favor da realização do interesse público – e não meramente castigar o infrator 5. A sanção, assim, é uma ferramenta que deve ser operada de forma prospectiva e guiada por uma visão marcadamente pragmática e consequencialista. Por certo, entender que a sanção administrativa seja sempre uma reposta – automática e necessária – ao cometimento de toda e qualquer infração faz com que se perca o próprio sentido de se questionar se ela, sanção, atende, ou não, a alguma finalidade 6.
De outro lado, é essa ideia de instrumentalidade da sanção, aliada à imperativa busca de uma atuação administrativa eficiente, que permitiu conduzir o Direito Administrativo Sancionador ao caminho da consensualidade 7.
Em outras palavras, a opção pela consensualidade exige exatamente a noção de que as sanções administrativas são ferramentas condicionadas à finalidade de satisfação do interesse público, objetivo que, a depender do caso concreto, somente será atingido pela negociação com o infrator. Na via consensual, bem por isso, “é especialmente cara a análise dos efeitos esperados pela ação administrativa para que a Administração Pública delibere pela consensualidade ou pela imperatividade” 8.
De lege lata, pode-se dizer que o caminho para a consensualidade teve como um de seus primeiros passos a inclusão do compromisso de ajustamento de conduta na Lei da Ação Civil Pública (artigo 5º, § 6º). Deve-se também citar a figura dos acordos de leniência, previstos na lei 10.149/00 e, depois, na lei 12.529/11, juntamente com os compromissos de cessação de conduta. Irrecusável ainda mencionar a Lei 13.140/15 (Lei da Mediação) e a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), que expressa, no seu artigo 26 9, a possibilidade de celebração de compromissos para eliminar situação contenciosa na aplicação do Direito Público. Especiais destaques merecem a Lei 12.846/13 (Lei Anticorrupção), ao disciplinar o acordo de leniência, e a lei 13.964/19, que veio a expressamente permitir o acordo de não persecução cível na lei de Improbidade Administrativa.
O próprio Código de Processo Civil, diga-se, é igualmente pródigo ao estimular a consensualidade em diversos de seus dispositivos 10. Sem prejuízo, deve-se referenciar o papel de diversos acordos e convenções internacionais para o fortalecimento da ideia de ajustes e concertações no âmbito punitivo estatal 11. De outra parte, a ideia de que a consensualidade era incompatível com as sanções administrativas foi sendo particularmente desafiada pela adoção de métodos consensuais no próprio campo do Direito Penal, reconhecidamente uma modalidade mais gravosa de punição 12. Em suma, todo esse conjunto de leis, direcionadas à consensualidade, permitiu no plano normativo essa significativa e profunda inovação no Direito Administrativo Sancionador.
Já no plano dos fatos, essa virada de chave espelhou a insuficiência do modelo tradicional de sancionamento, que passou a exigir a experimentação e a utilização de novas técnicas para um combate mais efetivo da prática de atos ilícitos e para uma solução mais célere e econômica dos conflitos dela decorrentes. Seja por razões de ineficiência das estruturas estatais, seja em razão da sofisticação e complexidade de determinadas organizações dedicadas à ilicitude, o fato é que negociar passou a ser a única forma de se descobrir a extensão de certas práticas ilícitas, de punir, de ressarcir danos e de fazer paralisar condutas indesejáveis.
É que, a partir do momento em que se admite a possibilidade de negociação entre o ente sancionador e um dos participantes da ilicitude, coloca-se em permanente risco a própria relação de confiança entre os infratores, uma condição essencial para a formação e a estruturação de qualquer organização voltada à prática de ilícitos. Como destaca Renata Lane, esse “elemento desestabilizador” é particularmente relevante no ambiente em que as ilicitudes são cometidos por diversos autores e na clandestinidade, “como a formação de cartel, subornos de agentes públicos e fraudes em contratos públicos” 13. Por outro lado, busca-se com a consensualidade aumentar o grau de cumprimento das sanções, no mais das vezes prejudicado por demorados e infindáveis trâmites procedimentais, que acabam por agravar uma geral sensação de impunidade.
Enfim, a consensualidade ingressou, sem volta, no Direito Administrativo Sancionador. Mas a consensualidade impacta e transporta desafios... Impacta porque representa a superação da ideia da impossibilidade de negociação com o Poder Público ou de que a sanção administrativa deve ser sempre imposta, de forma unilateral e como uma resposta automática para toda e qualquer infração 14. E traz desafios porque exige um novo padrão de comportamento do ente sancionador, que terá de ponderar as opções (consensualidade ou imperatividade) que melhor possam materializar o interesse público.
A correta visualização do tema, portanto, perpassa por entender que o que se busca por meio da consensualidade é também atingir o interesse público, mas apenas de uma forma que seja mais eficiente em face do caso concreto. Como dito, em determinadas situações, a cooperação do particular será, numa visão pragmática, imprescindível para que o sancionamento seja verdadeiramente efetivo, célere, menos custoso e adequado. Numa palavra, eficiente – conforme exige o próprio artigo 37, caput, da Constituição Federal.
Naturalmente, essa opção pela via do ajuste implicará, em certa medida, permitir ao ente sancionador substituir, atenuar ou mesmo perdoar certas sanções, de modo que sempre haverá na consensualidade uma exigência de ponderação: as vantagens representadas pelo acordo não podem ir ao ponto de fazer com que o ilícito tenha valido a pena, mas há também que se evitar que os institutos consensuais fiquem desprovidos de atratividade.
De todo o modo, resta claro que não se pode nem se deve buscar descontruir a ideia de interesse público para que se possa admitir a consensualidade. Ao contrário, a opção pelo ajuste e pela negociação não é uma forma de dispor do interesse público, mas, sim, uma forma de atingir o próprio interesse público.
Em síntese, é o próprio interesse público que, a um só tempo, legitima e limita a consensualidade. Daí já se observa, em contrapartida, que a opção pela negociação, no campo sancionatório, impõe à autoridade administrativa um adequado ônus argumentativo, na medida em que a via consensual exigirá – sempre – uma motivação suficiente e idônea para explicitar que os ganhos advindos da transação com os infratores superam os resultados que se poderia esperar de uma atuação sancionatória tradicional, unilateral e impositiva 15.
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1 OLIVEIRA, José Roberto Pimenta; GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. Direito administrativo sancionador brasileiro: breve evolução, identidade, abrangência e funcionalidades. Interesse Público [Recurso Eletrônico]. Belo Horizonte, v. 22, n. 120, mar./abr. 2020, p. 83.
2 Ibid., p. 88-89.
3 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo; GARCIA, Flávio Amaral. A principiologia no Direito Administrativo Sancionador. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, Belo Horizonte, ano 11, n. 43, out/dez. 2013.
4 Sobre tais princípios, cf., entre outros, OSÓRIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, pp. 420 e ss.
5 Ou seja: sanciona-se o concessionário para que o serviço público seja adequado; sanciona-se o motorista para que se assegure a ordem no trânsito. A finalidade da sanção administrativa, portanto, é a de realizar esses objetivos (prestação de um serviço adequado ou segurança no trânsito), porque são eles de interesse público. O objetivo primordial da sanção não é castigar nem arrecadar. (VORONOFF, Alice. Direito administrativo sancionador no Brasil: justificação, interpretação e aplicação. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 99)
6 Ibid., p. 104.
7 Bem por isso, Maurício Zockun e Gabriel Morettini e Castella afirmam que “o princípio da consensualidade surge como forma de alcançar o princípio da eficiência”. (ZOCKUN, Maurício; MORETTINI E CASTELLA, Gabriel. Programas de leniência e integridade como nonos instrumentos no Direito Administrativo Sancionador hodierno. In: Direito Administrativo Sancionador. Estudos em homenagem ao Professor Emérito da PUC/SP Celso Antônio Bandeira de Mello. Coordenador José Roberto Pimenta Oliveira. São Paulo: Malheiros, 2019, p. 419)
8 PALMA, Juliana Bonacorsi de. Sanção e acordo na Administração Pública. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 281.
9 Inclusão promovida pela lei 13.655/2018.
10 Cf., por exemplo, artigos 3º, § 2° e 3º, 6º, 139, V, 165, § 3º, 174, 190, 221, 334, § 11 etc.
11 Mencione-se, de exemplo, a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção e a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Transnacional.
12 Veja-se que, desde a lei 9.099/95, inúmeros delitos contra a Administração Pública já admitiam a transação penal ou a suspensão condicional do processo. Mas, em especial, deve-se destacar aqui a figura da colaboração premiada, na forma regida pelo artigo 4º da Lei 12.850/2013, a Lei do Crime Organizado.
13 LANE, Renata. Acordos no domínio da improbidade administrativa. 2020. 256 f. Dissertação (Mestrado em Direito). Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2020, p. 112.
14 É a ideia de que a consensualidade significaria necessariamente ir de encontro ao interesse público: ao deixar de aplicar uma sanção administrativa em prol de uma solução consensual, o agente público estaria simplesmente dispondo do seu dever de punir e de sua competência sancionatória, o que seria de todo inadmissível em face da indisponibilidade do interesse público.
15 PELEGRINI, Marcia. A consensualidade como método alternativo para o exercício da competência punitiva dos Tribunais de Contas. In: Direito Administrativo Sancionador. Estudos em homenagem ao Professor Emérito da PUC/SP Celso Antônio Bandeira de Mello. Coordenador José Roberto Pimenta Oliveira. São Paulo: Malheiros, 2019. p. 410.