Migalhas de Peso

1ª Minuta Marco da Biodiversidade

O futuro Marco sobre Biodiversidade será importante para definir prioridades, indicar o rumo, permitir o acompanhamento do estado do ambiente e justificar eventuais ajustes.

18/8/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

I. INTRODUÇÃO

Julho foi mês auspicioso no âmbito da Convenção sobre Diversidade Biológica da ONU (CDB). Em preparação à 3ª Reunião do Grupo Aberto de Trabalho sobre o Marco Global da Biodiversidade Pós-2020, a realizar-se virtualmente de 23 de agosto a 3 de setembro, seus Copresidentes publicaram nota no início deste mês contendo a esperada 1ª Minuta do documento, até então referida como Minuta Zero.

A Nota inclui detalhes sobre o processo de formulação do Marco e proposta de decisão para a sua adoção formal durante a próxima Conferência das Partes (CoP). Originalmente marcada para o começo de 2020 e depois adiada para o 2º semestre, a COP-15 está em princípio agendada para este outubro, na China.

O futuro Marco Global da Biodiversidade Pós-2020 será acompanhado por três documentos: marco de monitoramento, glossário e informação técnica acerca de cada meta e objetivo. A expectativa é a de que ele seja usado não apenas na implementação da própria CDB e de seus Protocolos, mas também de todos os tratados, processos e instrumentos relevantes, inclusive a Agenda 2030. De modo a facilitar a sua implementação, a CoP-15 também deve adotar: (i) documento de abordagem multidimensional aprimorada de planejamento, monitoramento, relato e revisão; (ii) plano atualizado sobre governos subnacionais; (iii) estratégia de mobilização de recursos; (iv) marco estratégico de longo prazo para capacitação e desenvolvimento em apoio a prioridades nacionais; (v) novo plano de ação de gênero; e (vi) estratégia de comunicação.

II. ASPECTOS DE GOVERNÇA

No tema, a minuta aborda a governança da biodiversidade em quatro componentes:

Teoria da Mudança: A teoria a embasar o design da minuta do marco refere-se à necessidade de ação política em todos os níveis capaz de transformar os modelos econômicos, sociais e financeiros que contribuem à crise da biodiversidade. Especificamente, a teoria enfatiza equidade de gênero, empoderamento de mulheres e jovens, participação de comunidades indígenas e locais, abordagens baseadas em direitos e o bem conhecido princípio de equidade intergeracional.

Não fica claro porque a minuta limita-se aqui à participação de comunidades locais e indígenas. É claro que o papel destas é imprescindível, mas a verdadeira transformação das relações da humanidade com a natureza exigirá o envolvimento ativo, intenso e coerente de todos os setores sociais, em cada país e no plano global.

Para abordagens baseadas em direitos, possuem especial relevância os movimentos da comunidade internacional pela adoção do Pacto Global para o Meio Ambiente, pela codificação do ecocídio no Estatuto de Roma e pela adoção de legislações nacionais reconhecendo os direitos da natureza. A perspectiva de sucesso desses movimentos é incerta, com opositores veementes e campeões bem-posicionados para promover avanços. Em seu favor, o direito ao ambiente saudável, a responsabilização ambiental criminal e a proteção da natureza em si só – conceitos-chave por detrás de tais movimento – já estão presentes e vêm sendo implementados na legislação e jurisprudência de diversos países.

Ainda, os três movimentos citados têm gerado necessárias discussões acerca do papel, da adequação e da efetividade do Direito Ambiental em todos os países e no plano internacional. As contribuições desse jovem campo da ciência jurídico para mitigar os impactos das atividades humanas sobre a natureza têm sido importantes, embora não na escala e na velocidade necessárias para reverter as múltiplas crises ambientais, do nível global ao local, que enfrentamos. Daí a necessidade de reflexão continuada e profunda.

Condições facilitadoras: Estas são aquelas condições políticas, legais, regulamentares, institucionais e financeiras, entre outros temas de boa governança, que facilitam ações de proteção à biodiversidade. A minuta destaca o conceito de coerência política, ao prever a integração do futuro marco em outros acordos e processos multilaterais ambientais em todos os níveis. Neste aspecto, importante papel do advogado internacional ambiental será o de auxiliar na construção de mecanismos de coordenação, articulação e ação conjunta entre os diversos regimes na área. Há bastante trabalho nesse sentido do qual se pode partir.

Prestação de contas: No plano global, o sistema de prestação de contas da CDB será adotado junto com o marco, conforme já mencionado. Em cada país, o tema de responsabilidade e transparência deverá sustentar-se sobre sistemas próprios de planejamento, monitoramento, relato e revisão em cada país. Caberá, assim, à sociedade civil o papel de fiscalizar seus respectivos governos quanto à elaboração participativa e transparente de tais sistemas e sua posterior implementação.

Onde os governos falharem, é também a sociedade civil que deverá buscar meios para exigir o respeito aos princípios de responsabilidade e transparência que regerão o futuro marco, seja por meios extrajudiciais, seja através de soluções jurídicas criativas perante o Poder Judiciário. Nesse ponto, os defensores da biodiversidade têm muito a aprender com a atuação intensa em litigância climática da comunidade de stakeholders no regime ambiental gêmeo à CDB.

Implementação: A 1ª Minuta antecipa que a implementação do futuro marco ocorrerá principalmente no plano nacional, com ações de apoio em outros níveis. A minuta insiste, assim, na mentalidade nacionalista que contamina as relações ambientais internacionais.

É fato que o ambiente não conhece fronteiras e, em grande parte, desafios na área exigem cooperação transfronteiriça, regional ou global. Basta se pensar em espécies migratórias, no ciclo hidrológico e no movimento contínuo das águas em cada bacia hidrográfica, na poluição atmosférica, na ação predatória de empresas multinacionais, nas comunidades de fronteiras, e assim por diante.

Imaginar-se que ações nacionais, como estratégias dominantes, serão capazes de reverter a crise da biodiversidade é quimera. Para o período de implementação do marco, provavelmente a última oportunidade que temos para impedir a degradação irreversível do planeta, a cooperação internacional ambiental deve ser vista como regra e abordagem principal, ao invés de exceção ou ação subsidiária, na proteção de nossos interesses comuns.

A cooperação interestatal profunda, cotidiana e multidimensional não constitui afronta à soberania das nações e ao seu domínio sobre o território e os recursos ali presentes. Ao contrário, é condição sine qua non para assegurar o exercício no longo prazo das prerrogativas e dos direitos soberanos inerentes ao Estado.

É tempo de os países-partes da CDB entenderem que não existe soberania sobre um planeta morto, tal como já reconhecem muitas empresas que não haveria economia tão menos dividendos sem os bens ou serviços com os quais lhes provê a natureza.

III. METAS E OBJETIVOS

A minuta possui quatro metas para 2050 e 21 objetivos para 2030. As metas de longo prazo tratam da melhora da integridade ecossistêmica, das contribuições da natureza à humanidade, da repartição de benefícios associados a recursos genéticos e de meio de implementação, inclusive financeiros.

Os objetivos estão organizados em três categorias: (i) redução de ameaças à biodiversidade, (ii) uso sustentável e repartição de benefícios associados às funções e aos serviços ecossistêmicos e (iii) ferramentas e soluções de implementação e integração.

Os objetivos abordam diversos temas de interesse para o Brasil e para o direito ambiental internacional. Vejamos:

Objetivo 14: Integração da biodiversidade em instrumentos e processos de governança, planejamento, desenvolvimento, contabilidade e avaliação de impactos – em todos os níveis governamentais, setores da economia e fluxos financeiros.

Em relação ao papel do Direito na solução da crise ecológica, o conceito de integração é fundamental pois o ideal é que os princípios e as regras de sustentabilidade ambiental estejam incorporados transversalmente nos sistemas legais domésticos e na ordem jurídica internacional como um todo.

Objetivo 15: Relatórios corporativos de avaliação e divulgação de como determinado empreendimento depende da biodiversidade e de quais impactos causa aos seus recursos.

O objetivo abarca todas as empresas – públicas e privadas, grandes, médias e pequenas, ao longo da cadeia de fornecimento inteira. Ele inclui os compromissos de redução de riscos e impactos negativo (no mínimo, pela metade), de aumento de efeitos positivos e de alcance total da sustentabilidade nas etapas de extração, produção, uso e disposição final.

Sobre o assunto, o Brasil possui o Decreto 9.571/2018, que estabelece as Diretrizes Nacionais sobre Empresas e Direitos Humanos, com base nos princípios da ONU sobre o mesmo tema. O decreto inclui diretriz dirigida ao Estado quanto à “exigência de compromisso público de respeito aos direitos humanos e publicação de relatório anual das empresas”; e ao “estímulo à prestação de contas sobre os riscos de sua operação aos direitos humanos e exigência de adoção de medidas de prevenção, controle e reparação” (art.3º, IV).

Na linha do Objetivo 15 da minuta, o próximo passo seria efetivamente tornar obrigatória, por meio de lei própria, a publicação de relatório anual que contemplasse as relações positivas e negativas de cada empreendimento com a biodiversidade no contexto do direito humano ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

O direito comparado pode trazer interessantes abordagens para informar a elaboração de eventual lei específica sobre o assunto. A União Europeia, por exemplo, está desenvolvendo nova diretiva sobre relatórios de sustentabilidade corporativa. Em torno da proposta sob análise, há riqueza de material sobre o assunto, muito do que talvez possa servir de referência para o direito canarinho seguir na mesma direção, de modo a alinhar-se com o futuro marco.

Objetivo 18: Redirecionamento, revisão de finalidade, reforma ou eliminação de incentivos prejudiciais à biodiversidade e sua redução em, ao menos, US$500 bilhões anualmente, e garantia de que incentivos – públicos e privados, econômicos ou regulatórios – sejam positivos ou neutros para a biodiversidade.

Exemplo de incentivos a serem revistos são os subsídios por detrás da exploração excessiva de pescados, os quais têm sido discutidos de forma mais concreta ao longo de 2021 perante a Organização Mundial do Comércio.

Objetivo 19: Aumento dos recursos financeiros para a biodiversidade.

Vale referir o recém-lançado ‘Framework de Emissão de Títulos Sustentáveis’, como marco para a emissão de títulos verdes que buscam atrair recursos para empreendimentos brasileiros sustentáveis. Áreas que podem ser contempladas incluem energia renovável, proteção de bacias hidrográficas, combate à poluição, pesca e aquicultura sustentáveis e, na linha da Década da Restauração da ONU, que se iniciou em 2021, a despoluição das águas, a restauração e recomposição de vegetação nativa e a recuperação de sítios degradados.

Objetivo 21: Participação social no processo decisório sobre biodiversidade.

O Acordo de Escazú recentemente entrou em vigor e trata dos direitos de acesso à participação, informação e justiça e da proteção dos defensores da natureza na América Latina. O Brasil assinou o acordo, mas não há notícia de que tenha iniciado o processo de ratificação.

IV. CONCLUSÕES

Logo que publicada, a versão atual foi objeto mais de críticas negativas que de louvores. Não surpreende pois os planos anteriores da CDB não foram alcançados e, apesar de a Convenção completar seus 30 anos em 2022, a crise da biodiversidade segue avançando. Não se está aqui a criticar o regime em si, que desenvolveu ao longo dos anos incontáveis ferramentas e diretrizes de proteção à biodiversidade, avançou o direito internacional sobre áreas novas por meio de seus protocolos, prestou apoio a diversos países na implementação de seus dispositivos e contribuiu para o desenvolvimento da ciência ambiental e a conscientização da comunidade global. Provavelmente, sem a Convenção, a crise que hoje enfrentamos teria alcançado patamares ainda mais graves. Mas o direito internacional e sua implementação são apenas tão fortes quanto lhes permitam ser os estados – seus atores principais na formulação e execução das regras.

O futuro Marco sobre Biodiversidade será importante para definir prioridades, indicar o rumo, permitir o acompanhamento do estado do ambiente e justificar eventuais ajustes. Acima de tudo, o marco cumprirá o papel de manter o tema em destaque na agenda internacional e de servir como mapa para a ação da comunidade internacional e da sociedade civil na responsabilização dos respectivos governos e no apoio à adoção e implementação de legislações, políticas, planos e programas nacionais de conservação e uso sustentável.

O que mais necessitamos, porém, para assegurar a efetividade do marco, é de mudança fundamental em nossas relações com a natureza – cada indivíduo e comunidade, no monitoramento e na responsabilização de seus líderes e de outros atores, e entre os governos e as grandes empresas, que causam os maiores impactos e estão mais bem posicionados para dar escala e velocidade a ações de implementação. Nesses últimos setores, importantes avanços ocorreram, como a constituição do Pacto Global da ONU reunindo empresas sustentáveis; e a atuação efetiva de certos países em questões ambientais. Mas isso não é suficiente, se os mesmos países que exigem de outros ações mais contundentes insistem em manter subsídios a atividades degradadoras e se as mesmas empresas que são exemplos em casa atuam com negligência e descaso em nações menos desenvolvidas.

Outrossim, o termo Direito (‘Law’) não aparece em nenhuma parte do texto da minuta, apesar de suas menções expressas a outras condições facilitadoras e mecanismos de implementação, como financiamento e capacitação. Sozinho, o Direito Ambiental não conseguirá reverter a crise. Mas a conjunção de todas as demais condições e dos mecanismos ali previstos, na ausência de base jurídica sólida, nacional e internacional, também nos parece insuficiente. Nesse sentido, espera-se que o texto final do novo Marco da CDB eleve o Direito como ferramenta imprescindível à proteção e ao uso sustentável da biodiversidade e à repartição equitativa dos benefícios associados.

Da parte da comunidade jurídica, cumpre-nos manter vivo o debate sobre o Direito Ambiental, de modo a encontrar meios de transformar a nossa ciência em aliada cada vez mais efetiva na realização do desenvolvimento sustentável e na reconstrução da sociedade global em harmonia com a natureza.

Flavia Rocha Loures
Leading Lawyer do Milaré Advogados. Possui especialização e mestrado em Direito Ambiental e é doutoranda em Direito Internacional das águas.

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