Para aqueles que trabalham e estudam a propriedade industrial no Brasil, o ano de 2021 vai ficar marcado pela alteração do regime de vigência das patentes no País. Ao julgar a ADIn 5.529 o Supremo Tribunal Federal limitou a vigência das patentes brasileiras a 20 anos, eliminando o prazo adicional concedido pelo parágrafo único do art. 40 da Lei de Propriedade Industrial (“LPI”), que era aplicado como uma compensação pela demora no exame de pedidos de patente pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (“INPI”).
No campo farmacêutico, essa decisão representou uma nova guinada na composição das forças de mercado. De fato, se até 1996 (ano de publicação da LPI) era expressamente vedada a concessão de patentes de medicamentos no Brasil (conforme art. 9°, “c”, do Código da Propriedade Industrial – Lei 5.772/71) e desde então o país passou a garantir uma proteção amplíssima às invenções farmacêuticas, por no mínimo 20 anos, mas sem um termo final pré-definido. Após a ADIn 5.529, chegou-se a um meio termo, que passou a ser atendido pelo INPI de forma quase imediata, mediante a revisão das patentes concedidas com extensão de prazo.
O impacto dessa questão sobre o mercado é fundamental. Isso acontece porque, ainda que existam tons de cinza, os players podem ser reunidos em dois grupos distintos: por um lado, os que têm seu business fundado em monopólios de patente, normalmente empresas estrangeiras que atuam no Brasil principalmente com medicamentos chamados de referência; e por outro, aqueles que atuam na dinâmica da ampliação de acesso à saúde, em geral empresas brasileiras que têm como core a produção de medicamentos genéricos.
Dada essa geografia, a ampliação dos benefícios concedidos aos detentores de patente impulsiona a penetração da indústria estrangeira no país, enquanto a definição de limites mais estritos fomenta a atuação das farmacêuticas nacionais. Nesse contexto, a ADIn 5.529 foi um ponto de inflexão porque abriu para a indústria de genéricos um novo portfólio de produtos, antes de fabricação restrita, apesar de sua ampla penetração de mercado (o mais importante deles a rivaroxabana, medicamento cuja referência é assinalada pela marca Xarelto®).
Evidentemente, o movimento provocado pela ADIn 5.529 tem causado reações que buscam resgatar o status quo ante. Como não é possível simplesmente repristinar a norma taxada como inconstitucional pelo Supremo, as multinacionais têm buscado outras estratégias.
Dentre essas iniciativas, merece menção, no âmbito do Poder Judiciário, ação movida pela Johnson & Johnson (Proc. 1054432-34.2021.4.01.3400, 14ª Vara Federal Cível SJDF) buscando impedir a revisão do prazo de vigência de uma de suas patentes (que protegia o medicamento Stelara®), realizada pelo INPI em cumprimento à decisão do Supremo na ADIn 5.529.
Afastando-se da análise de inconstitucionalidade abstrata, a multinacional ingressou nas minúcias do processo administrativo em que o INPI tramitou o pedido patente em questão, alegando que, em específico, houve demora desproporcional e injustificada do Órgão, sem que tenha havido, da parte dela, qualquer contribuição para isso. Nestes termos, a autora pede que haja compensação prorrogando-se o prazo de vigência da patente pelo período equivalente ao atraso, cuja extensão entende deva ser apurada mediante perícia. Ainda, para contornar de forma explícita a ADI n. 5.529 indica que o próprio relator do caso, Ministro Dias Toffoli, teria afirmado no voto condutor do caso que a adoção de mecanismos dessa natureza seria uma medida juridicamente válida.
A tutela de urgência foi negada, e a decisão externou o entendimento de que a compensação de atrasos do INPI mediante extensão de prazo de vigência da patente representaria burla à competência do Supremo, uma vez que a decisão da ADIn 5.529 esteve lastreada no fato de que a proteção conferida pela patente surge já na data da publicação do pedido de patente (art. 44, LPI) e no interesse social que deve emoldurar o direito de propriedade industrial, nos termos do art. 5°, XXIX, da Constituição.
A decisão destaca ainda que embora o Ministro Dias Toffoli tenha feito, no voto condutor da ADIn 5.529, alusão a instrumentos do direito comparado utilizados para fins de compensação de atrasos na análise do pedido de patente, isso foi feito apenas a título de comparação ao dispositivo constante do parágrafo único do art. 40 da LPI (que determinava uma devolução de prazo direta, sem verificação de responsabilidades ou das especificidades do caso concreto) e não como uma autorização ou determinação de sua reprodução no Brasil. Ao contrário, a decisão reconheceu, nesse ponto, que se trata de matéria de competência legislativa.
De fato, existem no direito comparado mecanismos de compensação para os casos de atraso de tramitação dos processos de análise pelos escritórios de patente locais. O United States Patent and Trademark Office (“USPTO”), por exemplo, adota o Patent Term Adjustment (“PTA”), normatizado pela 35 U.S.C. 154. Em linhas gerais, esse instrumento estabelece prazos intermediários para os principais gatilhos de análise do pedido de patente (por exemplo, 14 meses para o exame inicial) e o prazo máximo total de 3 anos para a conclusão do processo, contados da data de depósito do pedido. Se tais prazos não forem respeitados por culpa do USPTO, o termo final de vigência da patente concedida será estendido por 1 dia para cada dia de atraso em relação aos prazo especificados para cada um dessas etapas de avaliação.
Esse tipo de mecanismo de compensação foi mencionado no julgamento da ADIn 5.529 para contrastar com o parágrafo único do art. 40 da LPI porque estabelecem um critério específico de compensação pela demora de análise do escritório de patentes. Essa comparação entre os tipos de mecanismo de compensação deixou ainda mais às claras a inconstitucionalidade que estava presente na lei brasileira. Isso, entretanto, não quer dizer que um mecanismo como o PTA seria juridicamente válido no Brasil, ainda que venha a ser estabelecido em Lei.
A dificuldade, do ponto de vista jurídico, para o estabelecimento de mecanismos dessa espécie no Brasil está no regime de responsabilidade civil do Estado. É certo que a Constituição define que a Administração Pública é responsável pelos danos causados por seus agentes (art. 37, §6°). Em regra, essa responsabilidade é definida em caráter objetivo, mediante identificação do dano, ação administrativa e nexo causal.
Mas, e a omissão, pode ser enquadrada como “ação administrativa”? Neste caso, tem predominado o entendimento de que na omissão estatal a responsabilidade é subjetiva (ver, por todos, Celso A. B. de Mello e Maria Sylvia Zanella Di Pietro). Isso porque a responsabilidade por omissão do Estado sempre decorre de ato ilícito (dever de agir não cumprido) e por isso é sempre necessário demonstrar negligência, imprudência, imperícia ou dolo do agente responsável pelo dano. Essa culpa ou dolo do Estado (e do agente responsável) deve ser demonstrada em Juízo, após amplo contraditório.
No caso da demora na análise de pedidos de patente pelo INPI, seria extremamente improvável a demonstração de culpa ou dolo do agente responsável pela condução do processo administrativo (ou de uma de suas etapas). Isso porque a demora, no caso, é crônica, decorrente do acúmulo de processo ao longo de muitos anos, o que ocorreu – ao menos em parte – em virtude do incentivo que o parágrafo único do art. 40 da LPI conferia para que os pleiteantes fizessem o possível para retardar o exame de seus pedidos de patente. Então, como discriminar os dias de demora decorrentes de culpa ou dolo numa omissão específica quanto a um determinado processo administrativo da demora crônica estabelecida pelo backlog do INPI? Impossível.
Essa circunstância torna o estabelecimento de um mecanismo semelhante ao PTA no Brasil incompatível com o regime constitucional, mesmo que no futuro passe a ser previsto em Lei. Buscar um efeito semelhante mediante provimento jurisdicional encontra ainda maiores dificuldades. Dentre elas, merecem destaque: i) ausência de previsão de prazos específicos para as distintas etapas do exame de pedidos de patente pelo INPI; e a ii) ausência de previsão de exceção ao regime de precatórios para o ressarcimento de danos em caso de omissão do Estado (INPI).
Quanto ao primeiro ponto, de fato, a lógica por trás do PTA está em devolver ao pleiteante os dias adicionais utilizados pelo USPTO na conclusão de cada um dos principais gatilhos do processo de exame de patente. Para isso, é indispensável a definição dos prazos intermediários de análise pelo órgão, que constam no 35 U.S.C. 154.
Entretanto, no caso do Brasil, a LPI não define esses prazos intermediários de análise (e nem mesmo um prazo máximo total), mas apenas prevê prazos a serem cumpridos pelo administrado, pleiteante da patente (vide, por exemplo, artigos 16, 21, 33, 34, 36, 38 da LPI).
O que haveria de mais próximo à definição desses prazos intermediários, é a previsão geral constante da Lei de Processo Administrativo Federal (Lei 9.784/99, art. 24) de 5 dias úteis, prorrogável por igual período. É evidente, entretanto, que tal parâmetro não pode ser adotado, uma vez que esse prazo geral é pensado para despachos simples (por isso sem outra previsão específica) e não para análises técnicas complexas.
Estando adstrita ao princípio da legalidade estrita, não competiria à Administração (INPI) a definição desses prazos, com consequências tão graves como a manutenção de monopólio de medicamentos. Também não seria possível uma definição dessa natureza pelo Judiciário, porque inevitavelmente seriam extravasados os limites da lide.
Por outro lado, ainda que eventualmente configurado o dano (decorrente da omissão ou demora de prestação administrativa) e a responsabilidade do Estado (mediante verificação de culpa ou dolo do agente responsável), a forma de compensação não é discricionária, nem muito menos de livre escolha.
A culpa ou o dolo do Estado (e reflexamente do agente responsável) na omissão em questão em regra deve ser demonstrada em âmbito judicial. Caberá também, na mesma oportunidade, a demonstração da extensão do dano sofrido.
Não havendo previsão legal expressa para a compensação de dano dessa natureza mediante ampliação do prazo de vigência de patente, o que surge então é um débito contra a Fazenda (INPI). Quanto a isso, a Constituição estabelece um meio exclusivo de satisfação: o precatório (art. 100, CF).
Note que não é trivial a substituição da satisfação via precatório por uma compensação mediante extensão de monopólio patentário, já que no primeiro caso quem “paga” são os concorrentes diretos do produto patenteado (e indiretamente os pacientes que dependem do medicamento que possui essa tecnologia protegida), enquanto no segundo o ressarcimento se dá pelo efetivo causador do dano, isto é, o Estado. Como fazer um terceiro (concorrentes e pacientes), sem qualquer responsabilidade sobre a conduta do INPI, ter a si imputado o ônus de um ressarcimento dessa espécie sem que nem sequer haja base legal para tanto? E mesmo com previsão legal, a constitucionalidade de um tal dispositivo seria, quando menos, questionável.
O que parece claro, ao fim, é que as iniciativas de reacomodação de forças após a ADIn 5.529 deveriam se concentrar não nos efeitos do problema, mas em suas causas. Ou seja, seria muito mais produtivo que a farmacêuticas multinacionais despendessem seus recursos em esforços para fomentar a celeridade dos exames realizados pelo INPI e não na busca criativa de compensações pela demora do órgão.
Esse, além de ser o caminho legal e legítimo possível, pode criar uma agenda comum para todo o setor, unindo forças com a indústria nacional, e, mais do que isso, criando uma agenda positiva para economia brasileira. Isso é possível porque no mundo atual nenhum agente econômico sério é “contra direitos de patentes” – o que se combate são apenas privilégios indevidos, incompatíveis com aquilo que pensou o constituinte ao garantir ampla proteção à propriedade industrial, mas desde que alinhada ao interesse social e ao desenvolvimento tecnológico e econômico do país.