O Superior Tribunal de Justiça firmou, em junho de 2017, em sede de Recurso Especial repetitivo, o entendimento de que “sob a égide da lei 10.444/2002 e para as decisões transitadas em julgado sob a vigência do CPC/1973, a demora, independentemente do seu motivo, para juntada das fichas financeiras ou outros documentos correlatos aos autos da execução, ainda que sob a responsabilidade do devedor ente público, não obsta o transcurso do lapso prescricional executório, nos termos da Súmula 150/STF" (Tema 880 – Resp 1336026/PE).
No entanto, um ano após tal conclusão, no julgamento dos Embargos de Declaração, opostos contra o acórdão em que definida a referida tese, a referida Corte, objetivando salvaguardar o princípio da segurança jurídica, modulou os efeitos da decisão, assentando que “para as decisões transitadas em julgado até 17/3/2016 (quando ainda em vigor o CPC/1973) e que estejam dependendo, para ingressar com o pedido de cumprimento de sentença, do fornecimento pelo executado de documentos ou fichas financeiras (tenha tal providência sido deferida, ou não, pelo juiz ou esteja, ou não, completa a documentação), o prazo prescricional de 5 anos para propositura da execução ou cumprimento de sentença conta-se a partir de 30/6/2017".
Como se percebe, o texto da tese firmada pelo Superior Tribunal de Justiça, em modulação de efeitos, é claro ao condicionar a sua aplicabilidade aos casos em que se esteja demonstrado que, a parte exequente, estava dependendo do fornecimento, pelo ente público executado, de documentos ou fichas financeiras, para ingressar com o cumprimento de sentença.
Neste precedente, o Superior Tribunal de Justiça assentou, ainda, que essas conclusões têm incidência em execuções que tenham grande número de substituídos, evidenciando à sua perfeita aplicabilidade aos cumprimentos de sentenças derivados de ações coletivas (individuais ou coletivos).
No ensejo, para os fins propostos neste breve ensaio, pergunta-se: a quem compete, nos cumprimentos individuais de sentenças coletivas, a prova de que, para o início da fase de cumprimento de sentença, o exequente estava dependendo do fornecimento de documentos pelo executado, para fins de adequação à referida tese?
Nos termos do disposto no artigo 373 do Código de Processo Civil, constitui ônus processual imposto à parte autora a prova dos fatos constitutivos de seu direito e ao réu da existência de fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor, podendo o juiz, de forma fundamentada, distribuir tais encargos de forma diferente, sempre que o caso assim reclamar (CPC, art. 373, §1º).
Desse modo, segundo a regra estática de distribuição do ônus da prova, nos cumprimentos de sentença, cabe a parte exequente a prova de que pode se beneficiar do título executivo judicial extraído dos autos da ação coletiva, e à Fazenda Pública a demonstração de fatos impeditivos ou extintivos da aludida pretensão, tal como ocorre com a prescrição. Nesta hipótese, o ônus de se comprovar a existência de fator de afastamento dessa causa extintiva, como os elencados nos artigos 197 e seguintes do Código Civil, recai sobre a parte exequente.
Nesse sentido, aliás, é o magistério de Alexandre Freitas Câmara (Câmara, 2017, p. 208):
“Imagine-se, por exemplo, um processo no qual o autor cobra do réu uma dívida resultante de um contrato (sendo o contrato o fato constitutivo do direito do autor). O réu, então, alega em sua defesa o pagamento (fato extintivo do direito). Pode ocorrer, então, de o autor, na réplica, afirmar que o pagamento foi inválido por ter sido feito a mandatário sem poderes para recebê-lo (fato impeditivo da eficácia extintiva do pagamento). Pois o texto do art. 373 não dá solução a uma relevante questão: sobre quem incidiria o ônus da prova acerca deste último fato alegado (o “fato impeditivo do fato extintivo”)? Daí por que é multissecular a afirmação de que o ônus da prova incumbe a quem alega (ei incumbit probatio qui dicit, non qui negat).
Em regra, portanto, o ônus da prova incumbe a quem tenha feito a alegação. Dito de outro modo, se no momento de proferir a decisão de mérito o juiz verifica que alguma alegação não está suficientemente provada, deve proferir decisão contrária a quem a tenha feito. Daí a razão pela qual também há muitos séculos se afirma que alegar e não provar é como não alegar (allegatio et non probatio, quasi non allegatio)”.
Vê-se, portanto, que o exequente, nessa conformidade, deverá demonstrar que pode se beneficiar do título executivo judicial, comprovando que, à época dos fatos, ostentava a qualidade de integrante da respectiva categoria, enquanto que à Fazenda Pública caberá o ônus de provar que, à luz da jurisprudência assente no c. Superior Tribunal de Justiça, formada no tema 877 de seus repetitivo 1, a pretensão executiva esta prescrita, por ter transcorrido lapso temporal superior a 05 (cinco) anos, contados do trânsito em julgado da ação coletiva de conhecimento.
Demonstrado, pelo ente público, tal situação fática, poderá a parte exequente demonstrar a existência de alguma causa impeditiva da ocorrência da prescrição, ainda que seja para dar guarida a aplicabilidade do estatuído na versão modulada do tema 880 do c. Superior Tribunal de Justiça. Ou seja, comprovando que estava dependendo da apresentação, pelo executado, de documentos ou fichas financeiras para viabilizar o início do processo de execução.
Se assim não fizer, de rigor o reconhecimento da prescrição da pretensão executória, tal como postulado pelo ente fazendário.
Não se olvida, por óbvio, da previsã (Didier Jr, Braga, & Oliveira, 2019)o contida no artigo 370 do Código de Processo Civil, que assegura poderes instrutórios à autoridade judicial. Ocorre que esses poderes não são ilimitados, ou seja, devem se restringir a complementar a atividade probatória atribuída às partes.
Nesse sentido, aliás, é o magistério de Fredie Didier Jr, Paula S. Braga e Rafael A. de Oliveira (Didier Jr, Braga, & Oliveira, 2019, p. 108):
“A melhor interpretação que se pode dar ao art. 370 do CPC, segundo nos parece, é aquela que privilegia o meio termo: a atividade probatória é atribuída, em linha de princípio, às partes; ao juiz cabe, se for o caso, apenas uma atividade complementar – uma vez produzidas as provas requeridas pelas partes, se ainda subsistir dúvida quanto a determinada questão de fato relevante para o julgamento, o juiz estaria autorizado a tomar a iniciativa probatória para saná-la” – Destaquei.
No mesmo norte, segue a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
“A produção de provas no processo civil, sobretudo quando envolvidos interesses disponíveis, tal qual se dá no caso em concreto, incumbe essencialmente às partes, restando ao juiz campo de atuação residual a ser exercido apenas em caso de grave dúvida sobre o estado das coisas, com repercussão em interesses maiores, de ordem pública” (STJ, AgRg no REsp 1105509/RN, Rel. Ministro Marco Buzzi, 4ª Turma, j. 04/12/2012) – Destaquei.
Também, não se desconhece a possibilidade de o juiz inverter, por meio de decisão fundamentada, nas hipóteses alinhadas no §1º do artigo 373 do Código de Processo Civil (impossibilidade ou à excessiva dificuldade de o exequente cumprir o encargo ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário), essa regra de distribuição do ônus probatório, de modo a repassar esse encargo para a Fazenda Pública executada. A autoridade judicial, todavia, não poderá assim proceder se a desincumbência do encargo pela parte executada for impossível ou excessivamente difícil (CPC, art. 373, §2º).
Redistribuída a carga probatória, caberá à parte executada, comprovar: (i) que nenhum documento lhe foi requerido; ou, (ii) que a documentação já foi entregue há mais de 05 (cinco) anos; ou, (iii) que o requerimento somente lhe foi endereçado após vencido o prazo prescricional. Caso contrário, ainda que passados mais de 5 anos desde o trânsito em julgado havido sob a égide do Código de Processo Civil de 1973, a prescrição terá que ser afastada, com fundamento da versão modulada do tema 880 do Superior Tribunal de Justiça.
Conclui-se, portanto, que, em regra, é ônus processual atribuído ao exequente, para fins de ver aplicada a tese firmada na versão modulada do tema 880 dos repetitivos do Superior Tribunal de Justiça, a prova de que não deu início ao cumprimento individual de sentença coletiva porque estava dependente do fornecimento de documentos pelo ente público executado.
Prova essa, ademais, que poderá consistir na simples comprovação de ter ela endereçado tempestivo pedido, administrativo ou judicial, para obtenção desses documentos. Podendo, ainda, a autoridade judicial redistribuir fundamentadamente tal encargo processual ou atuar, sem protagonismos, de forma a complementar a atividade probatória atribuída inicialmente ao exequente.
A par dessa conclusão, surge uma dúvida: o pedido para fornecimento de documentos ou fichas financeiras, para aparelhar futura execução coletiva, apresentado pelo substituto processual (e.g. Sindicato), nos autos da ação de conhecimento, é prova suficiente, no cumprimento individual derivado do mesmo título, da dependência exigida na modulação de efeitos acima referida?
A resposta tende a ser negativa.
Ora, se o caso fosse de cumprimento coletivo de sentença, não haveria discussão acerca dessa suficiência probatória. Isso porque, como sabido, milita em favor da entidade de representação coletiva a presunção de que não tem acesso, sem a intervenção do executado ou dos substituídos, aos documentos necessários para dar início a esse cumprimento de sentença.
A situação, todavia, é outra, quando se está diante de um cumprimento individual de sentença. Nessa hipótese, a presunção é inversa, pois, como também sabido, a Fazenda Pública fornece, no momento próprio, a todos os seus servidores, acesso aos seus holerites.
A situação se agrava se esse cumprimento de sentença, proposto após o decurso do quinquênio prescricional, foi instruído com documentos diferentes daqueles fornecidos pela Fazenda Pública nos autos da ação de conhecimento, atendendo aos reclamos do substituto processual. Nessa hipótese, restará evidenciado que a parte exequente não estava dependendo de qualquer documento para o início da fase satisfativa e, portanto, não pode se beneficiar do contido na modulação dos efeitos do tema 880 dos repetitivos do Superior Tribunal de Justiça.
Nesse sentido, inclusive, já decidiu o eg. Tribunal de Justiça do Paraná, em decisão que restou assim ementada:
APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS À EXECUÇÃO INDIVIDUAL DE SENTENÇA PROFERIDA EM AÇÃO COLETIVA PROMOVIDA PELO SINDSAÚDE. PRELIMINAR DE NULIDADE DA SENTENÇA POR CERCEAMENTO DE DEFESA. REJEIÇÃO. CORRETO JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE. PRESCRIÇÃO. OCORRÊNCIA. LUSTRO PRESCRICIONAL PARA EXECUÇÃO DA SENTENÇA COLETIVA QUE SE INICIOU COM O TRÂNSITO EM JULGADO. TRATATIVAS REALIZADAS ENTRE AS PARTES, NO INTUITO DE VIABILIZAR OS CÁLCULOS, QUE NÃO INTERFERE NO REFERIDO FLUXO. ENTENDIMENTO FIRMADO PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE 1.336.026/PE. JUSTIÇA NOS RECURSOS REPETITIVOS ºS 1.388.000/PR E UTILIZAÇÃO, COMO TERMO A QUO DA PRESCRIÇÃO, DO DIA CONSTANTE NA CERTIDÃO DE TRÂNSITO EM JULGADO. IMPOSSIBILIDADE. DATA QUE DIZ RESPEITO À CONFECÇÃO DO DOCUMENTO. PROTESTO DE INTERRUPÇÃO DO PRAZO PRESCRICIONAL PROPOSTO POR OUTROS SERVIDORES QUE NÃO ALCANÇA A PRESENTE DEMANDA. INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 204 DO CÓDIGO CIVIL E DO ARTIGO 6º. DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL/73 – VIGENTE À ÉPOCA –, CORRESPONDENTE AO ARTIGO 18 DO DIPLOMA PROCESSUAL/15. RECURSO DESPROVIDO. [destacou-se]. (TJPR - 4ª C.Cível - 0001602-37.2016.8.16.0004 - Curitiba - Rel.: Desembargador Abraham Lincoln Calixto - J. 23.10.2018) (destaques não originais).
No julgamento dos embargos de declaração opostos contra essa decisão, o Tribunal assentou que:
“(...) como bem indicou a embargante, o Superior Tribunal de Justiça, por meio de embargos de declaração, procedeu a modulação dos efeitos do referido Julgado. Ocorre que tal situação, por si só, não é suficiente para alterar a conclusão obtida por esta Corte de Justiça. Note-se que o caso se trata de pretensa execução individual de sentença proferida em ação coletiva (n.º 887/06, ajuizada pelo SINDSAÚDE), que condenou o Estado do Paraná a pagar aos substituídos diferenças remuneratórias pertinentes às progressões e promoções funcionais e à gratificação de atividade de saúde. E nada há nos autos que indique que a exequente, ora embargante, não tinha acesso às informações necessárias para apontar o importe a ser exigido, em ordem a ser indispensável diligenciar junto ao ente estadual (...) No presente caso, contudo, a exequente optou por propor execução individual da sentença coletiva, sem qualquer indício de que, para sua situação específica, não possuía acesso às próprias informações financeiras, tampouco de que o Estado do Paraná demorou em atender pedido nesse sentido. Portanto, também por este argumento, não há como alterar a conclusão adotada no v. Acórdão, de que a pretensão executória, que se conta a partir do trânsito em julgado da sentença coletiva, está fulminada pela prescrição” (destacou-se).
Assim, para que a parte exequente, nos cumprimentos individuais de sentenças coletivas, possa se beneficiar do decidido na versão modulada do tema 880 dos repetitivos do Superior Tribunal de Justiça, se mostra necessário, para além do fato de a decisão ter transitado em julgado até 17/3/2016 (quando ainda em vigor o CPC/1973), que ela comprove, salvo na hipótese de redistribuição do ônus probatório, ter, ao menos, endereçado, ela própria, pedido à Fazenda Pública, buscando a reobtenção desses documentos (contracheques), para que assim (e só assim) pudesse ingressar em juízo.
Não lhe sendo permitido, noutro lado, se aproveitar, para esse fim, de pedido apresentado pelo substituto processual nos autos da ação de conhecimento. Caso em que a única alternativa será a de reconhecer que a pretensão executória está prescrita.
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1 STJ, tema 877: “O prazo prescricional para a execução individual é contado do trânsito em julgado da sentença coletiva, sendo desnecessária a providência de que trata o art. 94 da lei 8.078/90Câmara, A. F. (2017). O novo processo civil brasileiro. São Paulo: Atlas.
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Didier Jr, F., Braga, P. S., & Oliveira, R. A. (2019). Curso de Direito Processual Civil, vol. 02: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada e tutela provisória. Salvador: Juspodivm.