O novo modelo de processo civil, decorrente da evolução dos estudos acadêmicos e positivado pelo Código de Processo Civil atual estimula a celeridade, economia processual, a autocomposição, os meios adequados de solução de conflito, assim como a justiça multiportas. Nessa esteira, o fomento de meios alternativos ao Poder Judiciário vem ganhando força ao longo do tempo e da consolidação das normas processuais.
A mudança de paradigma de que o Poder Judiciário deve ser a "ultima ratio" é salutar e importante para o avanço do sistema de justiça e equiparação do Brasil a elevado patamar jurídico com diversos países do continente europeu¹.
O princípio da inafastabilidade da jurisdição vem ao longo do tempo sofrendo crítica de grandes juristas no tocante ao mandamento de que o Poder Judiciário é o único meio de solucionar controvérsias. O referido princípio constantemente vem sofrendo mitigações quanto à sua aplicação, a fim de adequar às necessidades do homem contemporâneo.
Para atender os anseios da sociedade para resolução rápida e eficaz dos conflitos no judiciário no tocante as execuções civis, compreendida pela execução de obrigações pecuniárias líquidas, certas e exigíveis com sujeitos capazes e solventes, foi apresentada PL 6.204/19, de autoria da senadora da República Soraya Thronicke (PSL-MS).
O referido projeto visa desjudicializar a execução civil, delegando atribuições do judiciário aos cartórios extrajudiciais, a ser conduzida pelos denominados "agentes de execução". O intuito do projeto é minimizar a crise da jurisdição, baseado nos dados fornecidos pelo CNJ no "justiça em números" assim como elevar o país ao nível processual de países mais desenvolvidos.
De acordo com o Conselho Nacional de Justiça, a duração da execução tem uma média de 7 anos e oito meses na Justiça Federal e 6 anos e 9 meses na Justiça Estadual². Essa informação revela a necessidade de desafogamento do Poder Judiciário.
A proposta de alteração é necessária para um bom funcionamento da prestação jurisdicional referente a execução civil, que será exercida por profissional habilitado e imparcial, cumprindo fielmente os princípios processuais.
Indubitável o controle realizado diretamente pelos Tribunais no âmbito estadual e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em âmbito nacional do regular funcionamento das serventias Extrajudiciais, que traz segurança a prestação do serviço público e da lisura dos atos praticados.
De se ressaltar que o Brasil vem em constantes passos para a extrajudicialização de diversos procedimentos que antes dependiam da chancela de um juiz togado aos cartórios extrajudiciais, como por exemplo com a lei 10.931/04 que instituiu a retificação do registro imobiliário sem a atuação do Estado-juiz.
Em que pese o PL 6.204/19 traga importantes, e frise-se com necessárias mudanças, há de ser analisado com parcimônia. A delegação abrange títulos executivos extrajudiciais - e quanto a esses não serão objeto de crítica nesse trabalho, eis que o procedimento não será diferente do previsto no CPC, e não trará demora a obtenção da tutela-, e o cumprimento de sentença, este que será abordado a seguir.
É de conhecimento geral que o cumprimento de sentença é a fase processual que se busca a efetivação da sentença proferida na fase de conhecimento do processo civil. Também é de conhecimento geral que a prestação jurisdicional para efetivação da citação do réu é um dos maiores óbices que o judiciário vem há algum tempo tentando amenizar, inclusive a lei do processo eletrônico trouxe a modalidade de citação eletrônica, que é ratificada pelo CPC, a fim de dar celeridade ao processo.
O próprio Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em atendimento a lei 11.419/06 e artigo 246, V do CPC, expediu um aviso conjunto nº 05/2020 obrigando as empresas privadas o cadastro no portal do Tribunal para recebimento de citação e intimação por meio eletrônico para otimizar o andamento processual.
Nesse cenário, o tempo de duração de um processo entre a data da distribuição e o trânsito em julgado leva tempo que não se coaduna com a ótica da celeridade e da duração razoável do processo previstas pelo CPC de 2015.
Com a sanção presidencial, o projeto que será lei federal com normas processuais, determinará que os títulos judiciais, ou seja, as sentenças transitadas em julgado, terão de ser executadas pelos agentes de execução.
Pois bem. A execução não se dará nos mesmos autos através de requerimento do exequente ao juiz que intimará o executado para pagamento, mas em serventia extrajudicial por meio de preenchimento de formulário de execução, e após preenchido os requisitos do artigo 8º do projeto, o agente determinará a citação do executado para cumprimento da obrigação no prazo de cinco dias.
O artigo 10 do projeto diz que o agente de execução citará o devedor para pagamento do valor do título. A citação impõe expedição de mandado de citação para o endereço do executado, que terá prazo para o cumprimento da obrigação, sob pena de penalidades. Ocorre que se o citando não for encontrado, será determinada a citação por edital que deve seguir expressamente o que dispõe o artigo 11 caput com a publicação na sede do tabelionato e no diário da justiça.
Ou seja, tal procedimento alarga o decurso entre o tempo do trânsito em julgado e a citação do executado para o pagamento da obrigação. Além disso, em caso de apresentação de impugnação ao cumprimento de sentença, o agente de execução não poderá resolve-lo, terá de encaminhar ao juízo competente para dirimi-lo. Em vez de ter um único personagem para solucionar as controvérsias de direito material e processual e enxugar o lapso temporal da execução, contará com a presença do juiz togado.
Grande parte da frustração na execução, assim conhecida pela linguagem popular de "ganha, mas não leva" decorre em alguns casos na ocultação de bens por parte do devedor através de meios ardis para dificultar o acesso ao seu patrimônio.
A delegação da execução de sentença transitada em julgado traz um aumento de chances desses casos de frustração da execução, pois no novo modelo, o executado será citado para pagar, diferentemente do atual modelo que o cumprimento de sentença definitivo decorre de requerimento feito nos moldes do artigo 523 do CPC, com a intimação do advogado do executado, sob pena de não o fazendo no prazo legal, a expropriação de seus bens.
Tal proposta para o cumprimento de sentença, a nosso ver, não se mostra mais eficiente ao modelo atual, pois em alguns casos poderá trazer uma demora maior para entrega final da tutela jurisdicional, já que, o exequente terá de contar com a apresentação de requerimento a outro agente.
Outra dúvida que o PL deixa é quanto às partes que são assistidas pelas Defensorias Públicas, por gozarem dos benefícios da gratuidade de justiça. O artigo 2º do projeto diz que o exequente será assistido por advogado, mas não diz sobre a parte que é patrocinada pela Defensoria Pública.
No Estado do Rio de Janeiro, a defensoria pública possui estrutura razoável e presta importante serviço àqueles que dele necessitam, dispondo de instalações em diversas áreas do Estado. Contudo, o acesso à justiça, e nesse caso, reportamo-nos aos hipossuficientes ainda é deficiente e precisa de melhor aparelhamento estatal. Eis que surge o questionamento de como se dará a representação dos hipossuficientes nesses casos, pois parte da doutrina critica a necessidade de advogado.
Em que pese esse entendimento doutrinário, entendemos que a atuação do advogado e defensor público é de fundamental relevância na fase executiva, pois a efetiva entrega jurisdicional abrange também essa fase, e a presença de advogado é primordial, já que a própria constituição federal em seu artigo 133 prevê a indispensabilidade do profissional à administração da justiça.
Importante também destacar que em eventual apresentação de impugnação para o juiz togado, a parte dependerá de profissional habilitado para representa-la sob pena de afrontar a sua representação e sepultar a capacidade postulatória.
A tramitação do projeto deve passar por crivo não somente técnico do ponto de vista processual, mas pelo bom senso no tocante à praticidade do procedimento. A tentativa de se esvaziar o judiciário das execuções não resolve o problema, pois a grande massa contenciosa permanecerá se não houver um maior esforço para a adesão dos meios adequados de solução de controvérsia, como por exemplo a mediação; arbitragem; constelação e familiar e tantas outras técnicas.
A proposta de alteração é bem-vinda e necessária para conter a crise da jurisdição que afeta diretamente a execução civil, mas a mesma deve ser revisada em alguns pontos para que o remédio processual não se torne em agravante do próprio mal que se pretende combater.
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1- JÚNIOR, joel dias figueira. O alvissareiro projeto de lei 6.204/19 - Desjudicialização de títulos executivos civis e a crise da jurisdição estatal. Migalhas, 2019. Disponível aqui. Acesso em: 29.03.2021
2- CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Relatório Justiça em Números 2020. P. 178.