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Falhas de tradução ameaçam vacinas e contratos internacionais

A veracidade de informações de documentos internacionais foi comprometida e esses erros prejudicaram a vacinação no Brasil.

2/8/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Documentos enviados para a CPI da covid revelaram que, em setembro de 2020, a consultoria jurídica do ministério da Saúde foi incumbida de se manifestar sobre o consórcio Covax Facility, que permitiria a distribuição de vacinas para diversos países. Essa consultoria alegou que, como a documentação estava em inglês, não "tinham conhecimento suficiente de tal língua estrangeira a ponto de emitir manifestação conclusiva". Em outro episódio, também na CPI, a senadora Simone Tebet (MDB-MS) apontou irregularidades nos documentos apresentados, que incluem erros de português e inglês e a mistura dos dois idiomas na mesma página, nas negociações para a compra da vacina Covaxin.

A veracidade de informações de documentos internacionais foi comprometida e esses erros prejudicaram a vacinação no Brasil. Mais do que isso, falhas em tradução de documentos podem colocar o País em risco e prejudicar também o setor privado que tanto se esforça para dar rumo ao nosso desenvolvimento. Trata-se, portanto, da urgência em abrirmos os olhos para o perigo da falta de atenção ao tema das traduções legais, prestes a serem desmoralizadas a partir do pretexto de desburocratização empregado com equívoco nesse caso.

Falhas de traduções não são novidades, mas quando se trata de documentação que pode gerar consequências para toda uma nação, elas poderiam ter sido evitadas se o governo tivesse recorrido às traduções públicas, conhecidas como juramentadas. São elas que estão sob regulação histórica e possuem, além de qualificação técnica, a fé pública para verter contratos e documentos de outros idiomas para a Língua Portuguesa.

Em 2021, no entanto, todo o sistema está ameaçado. A validação de contratos internacionais, por exemplo, passará por uma mudança falsamente facilitadora e a insegurança jurídica será enorme. Estamos falando da Medida Provisória 1.040 de 2021, de autoria do deputado Marco Bertaiolli (PSD-SP). O texto foi aprovado pela Câmara dos Deputados e aguarda a votação no Senado. Entre os absurdos do que está por vir está a liberação para que a função seja exercida por qualquer pessoa, inclusive estrangeiros, por meio de um simples certificado de proficiência, prenunciando o fim dos concursos públicos que selecionam os profissionais para a função.

Para reverter a decisão, o Senador Paulo Rocha (PT-PA) apresentou emenda que suprime o capítulo da MP que afrouxa o controle rígido das traduções públicas, determinando que esse serviço continue sendo prestado por brasileiro concursado, com fé pública e que possa ser responsabilizado pelos documentos traduzidos.

A atividade de tradução juramentada significa responsabilidade civil e penal do profissional tradutor. Para exercer a função, o tradutor juramentado precisa ser aprovado em concurso realizado pelas Juntas Comerciais do País e é responsável legal pela tradução e pela guarda dos documentos traduzidos. A MP, com a redação aprovada pela Câmara, retira a natureza documental pública da tradução juramentada, esvaziando a chamada fé pública de segundo grau dos tradutores juramentados. E tem mais: pela proposta da MP, não concursados poderão atuar como tradutores juramentados com um simples certificado de proficiência e após a tradução de documentos (como contratos entre empresas, certidões, testamentos, diplomas, processos de cidadania estrangeira, entre outros) será necessário que haja algum um controle de validação dos trabalhos. O resultado será um custo a mais e a burocracia renovada.

Outro aspecto relevante são os riscos à exatidão da própria tradução. Como vimos nos episódios protagonizados pelo governo federal no caso das vacinas, estaremos entrando em uma enorme complicação geral. Imaginem o prejuízo que isso pode gerar para um país que necessita de negociações internacionais para garantir seu desenvolvimento. Documentos mal traduzidos ou interpretados com expressões diferentes podem causar processos traumáticos, incluindo falsificações, enganações, fraudes financeiras e criminosas.

E quanto à aceitação em outros países? Atualmente, as traduções públicas permitem que os empresários e cidadãos possam usá-las no exterior, se munidas da Apostila de Haia (uma chancela internacional com 116 países signatários, entre eles o Brasil, o que facilita o trânsito dos documentos internacionalmente). Essa possibilidade fica comprometida com as novas regras, já que essa é uma das funções exclusivas do tradutor juramentado, o que pode prejudicar todos os tipos de negociações, desde contratos de comércio, até a validação de diplomas e processos de cidadania e adoção internacional. 

A lista de prejuízos não termina aqui. A MP não prevê um valor mínimo de emolumentos para os serviços de tradução. Atualmente, essa prestação de serviços é regulamentada em todo Brasil pelas Juntas Comerciais. Em São Paulo, por exemplo, o valor da lauda de tradução para textos comuns, como diplomas e documentos civis é de R$ 58,18. Sem uma regulação e com preços livres de mercado, poderá haver cobranças abusivas.

O tradutor juramentado (concursado, com fé pública) não é uma das partes envolvidas nas negociações e, por isso, é capaz de produzir um resultado isento e confiável. Só com a manutenção dessa condição é que a validade e a precisão dos documentos traduzidos continuariam asseguradas. Se é preciso renovar o mercado, então, que se abram novos concursos e que se aumente a presença dos tradutores públicos no País. Melhorar não é eliminar a função.

Ana Claudia Ferreira Pastore
Advogada, especialista em direito administrativo pelo COGEAE-SP / PUC-SP, e presidente da Associação dos Tradutores Públicos e Intérpretes Comerciais do Estado de São Paulo - ATPIESP.

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