Migalhas de Peso

O empresário individual como destinatário da lei do Superendividamento?

A lei 14.181/2021 dispõe sobre o superendividamento dos consumidores, pessoas naturais, prevenindo-o e criando instrumentos para o seu tratamento. Aplica-se essa disciplina ao empresário individual?

2/8/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Superando a desatenção dos Poderes constituídos ao fenômeno social e econômico do superendividamento 1, a lei 14.181/2021 2 (lei do Superendividamento) trouxe prescrições destinadas a “aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento”; para tanto, foram introduzidas modificações no Código de Defesa do Consumidor (CDC) e no Estatuto do Idoso 3.

Segundo a dicção legal, compreende-se por “superendividamento a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial” (art. 54-A, §1º), definição condizente com o entendimento manifestado há muito pela doutrina 4. Para esses fins, compreendem-se as dívidas oriundas de quaisquer compromissos financeiros assumidos nas relações de consumo, inclusive operações de crédito, compras a prazo e serviços de prestação continuada (art. 54-A, § 2º, do CDC).

Reconhecido que o superendividamento impõe restrições à obtenção de crédito e pode levar à exclusão social e econômica do consumidor, a lei 14.181/2021 objetiva preveni-lo e tratá-lo, assegurando o desenvolvimento e a dignidade da pessoa humana.

Do ponto de vista subjetivo, o novo diploma centra-se, imediata e pontualmente, na tutela do consumidor pessoa natural, conforme consignado nos dispositivos legais introduzidos no CDC, verbi gratia: art. 54-A, caput e § 1º, e art. 104-A. Os novos princípios e regras incorporados ao ordenamento jurídico e que visam a prevenir e tratar o superendividamento se impõem em benefício do consumidor pessoa natural. A clareza dos enunciados normativos não autoriza outra interpretação, senão a de que as intervenções estatais - judiciais ou não - decorrentes da aplicação da nova lei não atendem aos interesses dos consumidores pessoas jurídicas 5.

A distinção se faz oportuna, uma vez que o conceito de consumidor estende-se às pessoas jurídicas, por conta da adoção da teoria finalista mitigada (finalismo aprofundado) 6 calcada na definição de vulnerabilidade (técnica, jurídica, fática ou informacional); entendimento sedimentado na doutrina 7 e na jurisprudência 8.

A mitigação da teoria finalista freou a tendência à exclusão do empresário do conceito consumidor, de modo que se aplica o CDC nas relações jurídicas entre fornecedor e consumidor-empresário, mesmo não sendo este tecnicamente destinatário final do produto ou serviço, desde que comprovada a vulnerabilidade no caso concreto. Incidindo a lei consumerista nas relações interempresariais (empresário-fornecedor/empresário-consumidor), é plausível afirmar que a execução dos contratos empresariais de consumo sujeita-se às disposições incorporadas com a lei 14.181/2021 (art. 3º).

Nesse ponto, se mostra necessário ficar atento às espécies de empresários (lato sensu) ou de formas de organização e desenvolvimento da empresa admitidas no ordenamento jurídico: o empresário individual, pessoa natural (inclusive o rural), e as pessoas jurídicas (sociedades pluripessoais, sociedade limitada unipessoal e a empresa individual de responsabilidade limitada - EIRELI).

O Direito de Empresa faculta aos indivíduos a escolha do modo de exercício da atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou serviços, decisão que o empreendedor-investidor toma segundo diferentes critérios e diante de múltiplos fatores (ramo de atividade econômica, o montante do capital exigido para o empreendimento, regime jurídico).

O presente estudo se refere à pessoa natural exercente individual da empresa 9, em relação à qual devem ser observadas as medidas preventivas ao superendividamento e tornados acessíveis os instrumentos destinados ao seu tratamento (arts. 54-B a 54-G e 104-A a 104-C, do CDC, respectivamente).

A contemplação do empresário individual consumidor no trato jurídico-normativo do superendividamento não provém, apenas, da sua caracterização como consumidor e do sentido literal dos dispositivos legais já citados; antes, decorre da necessidade de inclusão socioeconômica desse pequeno agente econômico. Algumas premissas informam esse entendimento: o desenvolvimento social e econômico do empresário, a unicidade da responsabilidade patrimonial do empresário individual e a necessidade de acesso facilitado, com baixo custo, e institucionalizado à repactuação da superdívida.

É induvidoso que o empreendedorismo promove o desenvolvimento humano e econômico, oportuniza a liberdade das pessoas e contribuiu para a inclusão social, sobretudo em contextos de crise, nos quais se identifica a potencialização ou a imposição da dependência dos indivíduos às prestações do Estado. Essa constatação traz à tona a afirmação da função promocional do Direito (especialmente da liberdade individual) contida na obra de Amartya Sen 10.

A despeito da importância relativa do empresário individual no universo do direito comercial (as atividades empresariais com expressão econômica costumam ser exploradas por sociedades) 11, a empresa individual tem relevância socioeconômica inegável.

Autorizam essa afirmação os dados contidos no Boletim do 1º quadrimestre de 2021 12, divulgado pelo Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (DREI) no Mapa de Empresas 13. Nesse período, foram abertas 1.392.758 empresas (subsistindo 17.173.284 empresas em atividade), 97,2% utilizando-se dos tipos de empresário individual (incluindo o MEI) e de sociedade empresária limitada. O informativo registra ter havido a abertura de 1.173.677 empresários individuais no primeiro quadrimestre de 2021, consolidando-se o total de 11.959.354 empresários individuais ativos (incluídos os MEI). Dos quase 12 milhões de empresários individuais ativos, 9.701.933 revestem-se da forma de Microempreendedor Individual, instituto que, frise-se, constitui política pública de formalização da atividade econômica e inclusão social.

É plenamente justificável a aprovação de lei que não excluiu esse agente econômico dos direitos inerentes à prevenção e ao tratamento do superendividamento, instrumentos que guardam relação direta com o princípio da preservação da empresa.

A habilitação do empresário individual às inovações trazidas com a lei 11.481/2021 também decorre da unicidade patrimonial que rege a sua responsabilidade, regra segundo a qual não há distinção entre os bens pessoais ou particulares do empreendedor e os bens empresariais (afetados ao exercício da empresa), que se confundem 14. A vida pessoal do indivíduo empresário não está dissociada da atividade empresarial 15.

É crível que, vigorando o sistema de unicidade patrimonial e respondendo o empresário com os seus bens particulares 16, poderá ver-se na condição de superendividado e impossibilitado ao cumprimento de suas obrigações contratuais e pecuniárias, senão com comprometimento do mínimo existencial 17 próprio ou de sua família.

Em seguida, põe-se em relevo a preferência do “processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas” à via da recuperação de empresa (lei 11.101/2005), enquanto mecanismo de superação da crise econômica ou financeira dos empresários individuais.

É lógica a compreensão de que a lei 14.181/2021 buscaria atender aos consumidores pessoas naturais não-empresários, porquanto já facultada aos empresários a recuperação de empresa (judicial ou extrajudicial), aos quais dispensados, por exemplo, o plano especial para ME e EPP e a conciliação/mediação (antecedente ou incidental ao processo de recuperação judicial), figuras introduzidas recentemente na reforma implementada pela lei 14.112/2020 (art. 20-A e segs.). Todavia, conquanto adequada à reestruturação financeira e econômica do empresário singular (atuando no superendividamento), o instituto da recuperação de empresa guarda complexidade e custo elevado, incompatibilizando-o como instrumento da superação da crise do empresário individual consumidor pessoa natural, notadamente se microempreendedor individual.

Sem prejuízo da notável vocação da recuperação de empresa aos devedores de médio e grande porte, preferencialmente, outros fatores - como a necessidade de pagamento de custas e taxas judiciárias, de honorários advocatícios (normalmente mais elevados em razão da expertise dos advogados da área recuperacional) e da remuneração ao administrador judicial (chega a 5% do valor do passivo do devedor, 2% se ME ou EPP) - a tornam inviável à finalidade de (meramente) repactuar as dívidas do empresário individual consumidor, na maioria das vezes valores de pequena monta. Sem falar nas diversas condições - materiais e formais – exigidas com a peça de entrada do pedido de recuperação judicial (lei 11.101/2005, art. 51).

Essa opção pelo procedimento inerente aos processos de repactuação de dívidas e de superendividamento (arts. 104-A e 104-B do CDC) se impõe por sua simplificação, se comparado ao rito da recuperação de empresa, bem como diante a competência concorrente de órgãos públicos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (o Procon, por exemplo), a ampliar o acesso à superação do superendividamento.

Diante do exposto, entende-se que as normas da lei do Superendividamento alcançam o empresário-individual-consumidor, destinatário dos processos de repactuação de dívidas e por superendividamento para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas previstos nos artigos 104-A e 104-B do CDC, meios alternativos ao instituto da recuperação da empresa (lei 11.101/2005) para a superação da crise econômica ou financeira do empreendedor individual, porquanto, em tese, mais acessíveis, eficientes e efetivos, à medida que, de um lado, viabilizam a adimplência e a preservação da empresa e, de outro, garantem o mínimo existencial e a dignidade.

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1 MELLO, Flávio Citro Vieira de. A proteção do sobre-endividado no Brasil à luz do direito comparado. In: Revista Luso-brasileira de Direito do Consumo, Curitiba, v. 1, n. 2, p. 11-38, jun-2011.

2 Tomou forma a partir do projeto de lei do Senado 283, de 2012, e tem origem primária na “sugestão de um anteprojeto elaborado por Claudia Lima Marques, Clarissa Costa de Lima e Karen Danilevicz Bertoncello, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.” (MIRAGEM, Bruno. A lei do crédito responsável altera o Código de Defesa do Consumidor: novas disposições para a prevenção e o tratamento do superendividamento). Disponível aqui. Acesso em: 09 jul 2021.

3 Introduziu o §3º ao artigo 96, do Estatuto, estabelecendo que “Não constitui crime a negativa de crédito motivada por superendividamento do idoso.”

MIRAGEN, Bruno. Curso de direito do consumidor. 8. ed., São Paulo: RT, 2019, p. 538-539.

5 Afora o fato de consumidores pessoas jurídicas não se sujeitarem à afetação da dignidade humana, a personificação das pessoas jurídicas, da qual decorre a autonomia patrimonial, preserva o mínimo existencial dos titulares destes entes; logo, é razoável supor que a lei parte do pressuposto de que as pessoas jurídicas cercam-se de medidas preventivas da ocorrência do superendividamento e têm condições de tratá-lo sem recorrer aos instrumentos instituídos pela lei 14.181/2021.

6 Não sendo pressuposto do desenvolvimento do presente artigo, o tema não será objeto de análise.

7 BENJAMIN, Antonio Herman; MARQUES, Cláudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. 6ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 103-114. 

8 STJ, REsp 1.798.967/SP, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 06.10.2020, DJe 10.12.2020; STJ, AgInt no AREsp 1.480.596/PR, 3ª T., Rel. Min. Moura Ribeiro, j. 17.02.2020, DJe 19.02.2020; STJ, AgInt no AREsp 1.545.508/RJ, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 11.02.2020, DJe 18.02.2020.

9 A “pessoa física que exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou para a circulação de bens ou de serviços, ainda que com o auxílio de empregados” (SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Manual de direito empresarial. 2ª ed. São Paulo, Saraiva Educação, 2021). Para efeito deste estudo, é indiferente se o empresário se vale do tratamento diferenciado destinadas às microempresas (ME) e empresas de pequeno porte (EPP) ou mesmo se está organizado como microempreendedor individual (MEI), institutos disciplinados na lei Complementar 123/2006.

10 SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

11 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. Vol. 1. 21ª ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 130.

12 Disponível aqui. Acesso em: 10 jul 2021.

13 Ferramenta disponibilizada pelo governo federal contendo informações mensais sobre o procedimento de registro de empresas, como o número de empreendimentos abertos e fechados. Disponível aqui14 STJ, RESP 1.682.989, 2ª T., Rel. Min. Herman Benjamin, j. 19/09/2017, DJe 09/10/2017.

15 Como se trata de um só patrimônio, sem a distinção, de um lado, de ativos e passivos relacionados à empresa, e, de outro, dos não relacionados, o credor pode pleitear a satisfação de seu crédito mediante a expropriação de quaisquer bens do empresário individual, sendo indiferente se estão ativo e passivo ligados – ou não – à exploração da atividade empresarial. (COELHO, Fábio Ulhoa. Op. cit., p. 130-131)

16 Conquanto não seja desarrazoado afirmar que o empresário individual, quanto às obrigações empresariais, responderá primeiro com os bens vinculados à exploração de sua atividade econômica, nos termos do art. 1.024 do Código Civil (Enunciado 5 da I Jornada de Direito Comercial – março/2013), a subsidiariedade da penhora do estabelecimento empresarial (CPC/2015, art. 865) prioriza a constrição dos bens particulares.

17 O conceito legal de superendividamento se assenta na “impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial”. (Art. 54-A, §1º).

João Paulo A. Vasconcelos
Mestre em Direito pela UENP, Professor no Curso de Direito da UNOESTE, Advogado da União

Sandro Marcos Godoy
Pós-doutor em Direito pela Università degli Studi di Messina na Itália, Doutor em Direito - Função Social do Direito pela FADISP - Faculdade Autônoma de Direito, Mestre em Direito - UNIVEM

Lícia Pimentel Marconi
Mestre em Educação pela UNOESTE; Especialista em Processo Civil pela ESA/SP; Professora no Curso de Graduação em Direito da Universidade do Oeste Paulista (UNOESTE); Integrante do Grupo de Estudos "Acesso à justiça, inovação e sustentabilidade" da UNOESTE; Advogada Empresarial.

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