Em artigo publicado em Migalhas, no dia 8 de julho p.p., o professor Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França, meu querido mestre e orientador, chamou atenção para o disparate da proposta que visa à extinção das sociedades simples. A inapropriada previsão consta do PLC 15/2021 da MP 1.040/2021, que passou a contemplar numerosas alterações na legislação societária -- não previstas no texto originário da MP. As inserções aprovadas pela Câmara exigem séria reflexão sobre o seu conteúdo e não podem passar despercebidas. O objetivo desse breve artigo é chamar a atenção para mais um ponto fundamental da proposta e suas desastrosas consequências para as sociedades limitadas.
Como se sabe, as sociedades limitadas estão disciplinadas no Código Civil (artigos 1.052 a 1.087, que é complementado por algumas disposições aplicáveis às sociedades simples). O artigo 1.053, parágrafo único, na redação atualmente em vigor, prevê ainda a possibilidade de que os sócios estabeleçam, no contrato social, regra de regência supletiva pelas normas da sociedade anônima (lei 6.404/1976). Existem, não se pode negar, numerosas divergências sobre o alcance e a adequada interpretação desse dispositivo, que estabelece o regime jurídico das sociedades limitadas. Não seria absurdo, dada a relevância do tipo societário em questão, que a comunidade jurídica passasse a discutir propostas aptas a estruturar novo regime de regência para as sociedades limitadas. O que não se poderia imaginar (e não se pode admitir) é a tentativa de solucionar eventuais problemas de intepretação e aplicação da disciplina atual mediante alteração legislativa que, além de não ter sido objeto de ampla discussão, causará mais problemas do que soluções.
Vejamos, pois, como está a nova redação proposta para o artigo 1.053 do Código Civil:
"Art. 1.053. A sociedade limitada rege-se, nas omissões deste Capítulo, pelo Capítulo 'Das Normas Gerais das Sociedades'.
Parágrafo único. O contrato social poderá prever a regência supletiva da sociedade limitada pelas normas da sociedade anônima, hipótese em que não se aplicarão os arts. 1.028 a 1.030 deste Código".
Há, aqui, uma sutileza que precisa ser observada. A redação do caput, no contexto da reforma proposta, mereceria alteração. Fazia-se necessário subtrair a menção às regras das sociedades simples (que deixam de existir) substituindo-a pela menção às "normas gerais das sociedades". O problema está na parte final da nova redação do parágrafo único, que passa a afastar, em caso de regência supletiva pelas normas da sociedade anônima, três importantes dispositivos legais atualmente aplicáveis às sociedades limitadas (artigos 1.028 a 1.030 do CC).
O art. 1.028 do Código Civil estabelece disciplina aplicável em caso de morte de sócio. Determina, como regra geral, que os herdeiros do sócio falecido não devem ingressar automaticamente na sociedade, exceto se o contrato contiver previsão diversa ou se, por acordo com os herdeiros, regular-se a admissão destes no quadro social. Há, ainda, a possibilidade de que os sócios remanescentes optem pela dissolução total da sociedade. Trata-se de disciplina adequada às características do tipo societário e que, ademais, contempla sempre a possibilidade de regulação no contrato social, a permitir que os sócios estabeleçam regras diversas em observância a autonomia de vontade. O que faz o PLC ao determinar a não incidência dessa regra às sociedades limitadas é criar vácuo legislativo em substituição à uma sistemática que não suscita maiores controvérsias. Dissemina-se, portanto, insegurança jurídica e imprevisibilidade em caso de falecimento de sócio. Ao invés de disciplinar a questão, opta-se pela criação de uma lacuna que poderia levar a interpretações desastrosas e incompatíveis com as características das sociedades limitadas. Por exemplo: com a não incidência do 1.028 dever-se-ia admitir automaticamente os herdeiros nos quadros sociais, como ocorre nas sociedades anônimas?
O art. 1.029 assegura ao sócio o exercício do direito de retirada ad nutum. Ou seja, qualquer sócio pode retirar-se da sociedade contratada a prazo indeterminado mediante notificação à sociedade e aos demais sócios, observando o prazo de sessenta dias. Para as sociedades de prazo determinado, somente poderá fazê-lo provando justa causa. A aplicação desse dispositivo às sociedades limitadas não é pacífica, pois há regra específica para disciplinar a retirada do sócio (art. 1077 do CC). Não vem ao caso aqui detalhar os argumentos a favor de cada uma das teses, ambas com relevantes argumentos. Ocorre que, ainda que exista divergência na doutrina, o Superior Tribunal de Justiça tem admitido o exercício do direito de retirada, tal como prevê o art. 1.029, mesmo para as sociedades limitadas que adotam regência supletiva pela Lei de sociedades anônimas (REsp 1.839.078-SP). Os Tribunais têm ponderado, nesses casos, que nas sociedades limitadas as quotas detidas não podem ser livremente negociadas e a supressão do direito de retirada imotivada representaria um aprisionamento do sócio. Resumidamente, o direito potestativo assegurado pelo art. 1.029 é necessário para permitir que o sócio se autodesvincule do contrato de sociedade, sem ter que propor uma ação judicial para obter o mesmo efeito. A não aplicação do art. 1.029 do CC representará, em termos práticos, enorme retrocesso, pois o sócio que desejar sair da sociedade não poderá mais fazê-lo extrajudicialmente (mediante simples notificação) e precisará ingressar com uma ação judicial específica, de modo a obter sentença com eficácia constitutivo-negativa (desconstitutiva).
Mas o quadro será ainda pior caso a regra do art. 1.030 do CC não seja aplicada às sociedades limitadas regidas supletivamente pelas normas das sociedades anônimas, como prevê o PLC. O caput do dispositivo trata da possibilidade de exclusão judicial do sócio, mediante iniciativa da maioria dos demais sócios, por falta grave (exclusão judicial por justa causa). Quer dizer, assegura aos demais sócios (inclusive os minoritários) o poder de excluir o sócio faltoso, que está colocando em risco a continuidade da empresa por atos de inegável gravidade. Ao afastar a aplicação deste dispositivo, cria-se um problema que hoje não existe, pois faltará fundamento legal específico para a propositura de ação judicial com pedido de exclusão de sócio por falta grave. A ausência de fundamento para a exclusão, conjugada a impossibilidade de exercício do direito de retirada imotivada, poderá criar ainda mais insegurança jurídica. Afinal, como poderão os sócios de uma sociedade limitada resolverem situações de impasse societário ou mesmo de violação a deveres societários que estejam colocando em risco a sociedade? E, perceba-se o contrassenso: caso não seja possível a exclusão extrajudicial do sócio, que está sujeita a quórum e condições específicas (art. 1.085 do CC), não restará remédio apto a tutelar a posição jurídica do sócio minoritário oprimido por abusos da maioria. A falta de inteligência da nova regra proposta é manifesta.
Esses são alguns dos problemas que decorrem da aprovação do PLC da MP 1040, de 2021, mas não são os únicos. Sob o pretexto de "desburocratização societária" (termo que parece estar na moda) instaurar-se-á, com a nova redação de apenas um parágrafo do Código Civil, uma avalanche de ações judiciais para ressuscitar questões e discussões em grande parte superadas. É a burocratização societária.