As décadas de 1980 e 1990 foram marcadas pelo processo de globalização, ocasionando a internacionalização econômica, produtiva e financeira, trazendo para o Brasil mudanças bastante significativas no ambiente concorrencial e institucional. Nas últimas décadas do século XX, o país passou por diversas transformações econômicas, como a abertura para o mercado externo, processos de privatização de setor essenciais e específicos para a expansão econômica, estabilização da moeda, etc.; estas transformações foram acompanhadas por investidores, corporações e expansão do mercado interno e externo, originando um profundo aumento das operações de Fusões e Aquisições.
Ao contrário do que ocorreu nos Estados Unidos da América, que teve expressiva onda de fusões e aquisições na virada do século IX para o XX com o nascimento das "megacorporações"1 e contínuo crescimento destas operações, no Brasil as fusões e aquisições iniciaram-se mais tardiamente e em um ambiente jurídico de poucas decisões e soluções práticas, o que levou, inevitavelmente, a importação de modelos estrangeiros de contratos, adaptados à legislação brasileira.
A própria terminologia M&A (Mergers and Acquisitions), expressão do mercado anglo-saxão, já sinalizava a globalização dos negócios, e, a necessidade do direito brasileiro se debruçar mais atentamente às normas que envolviam as novas questões de mercado.
Por serem as operações de fusões e aquisições um verdadeiro processo bastante complexo, formado por várias etapas até a conclusão do negócio jurídico pretendido, há diversas situações e normas legislativas envolvidas tornando inviável a criação de legislação específica para o M&A no Brasil; mesmo porque tendo origem no direito comum (common law) as questões são solucionadas mais pelos princípios contratuais como da livre iniciativa, autonomia privada, função social e boa-fé contratual, dentre outros.
É fato que as operações de fusões e aquisições realizadas atualmente estão bem mais complexas que as ocorridas décadas atrás, seja pela dimensão econômica, expansão do mercado tecnológico, grandes corporações envolvidas, e, mesmo pelas incertezas e instabilidades advindas de guerras, oscilações de moedas, bolsa de valores, epidemias e, hoje, a pandemia da covid-19.
Assim, são notórias as diferenças encontradas em contratos firmados décadas atrás com os contratos atuais; mesmo porque as negociações são dinâmicas, flexíveis e seguem um curso de rápidas transformações sociais, políticas e econômicas no mundo todo.
Um exemplo, era a ausência de cláusulas MAC em contratos anteriores, alguns possuindo previsões, mesmo que remotamente, de uma possibilidade de denunciação do contrato com base na teoria da imprevisão.
As cláusulas encontradas nos contratos anteriores, geralmente denominadas "condições precedentes", apesar de não cuidarem de fato/evento imprevisível e/ou inesperado (nem mesmo fazerem menção a tais hipóteses), tratavam-se do cumprimento das obrigações assumidas contratualmente e da possibilidade da rescisão do contrato se antes da data do fechamento uma das Partes não tivesse cumprido suas obrigações.
Daí ser possível o não cumprimento de tais obrigações fundamentado em fato ou evento superveniente e imprevisto que tornava o negócio excessivamente oneroso para uma das partes, possibilitando a denúncia.
Mas, qual a relevância nesta alteração das negociações e a inclusão de cláusulas, como a MAC?
Importante destacar, primeiramente, que a ausência de previsão contratual possibilita diversas forma de interpretação2, e, notoriamente no Brasil, questões que não estão no contrato geram a judicialização da disputa, pois, esbarram na necessidade probatória, ou seja, a análise da legislação aplicável em detrimento de questões que poderiam ser resolvidas pela aplicação de princípios, como, por exemplo, a pacta sunt servanda ou princípio da liberdade econômica, autonomia da vontade, etc., e, a existência de cláusula contratual facilita e orienta a solução das disputas.
Qual seria o significado e a extensão de uma cláusula MAC? A sigla MAC é uma abreviação de "material adverse change", ou seja, "eventos materiais adversos", é uma verdadeira ferramenta que auxilia as Partes tanto na prevenção quanto na alocação de riscos ao se investir em um negócio de natureza comutativa, como no caso das fusões e aquisições.
Quando se trata de operações como as fusões e aquisições é de grande importância a cautela, pois todos os elementos deste processo complexo são praticamente negociáveis; assim, a inserção de cláusulas que autorizam a denunciação do contrato sem a responsabilidade pelo inadimplemento, como a cláusula MAC, é uma forma de prevenção e faz parte de um momento anterior.
Considerando que entre a assinatura e a data de fechamento poderá transcorrer um período razoável de tempo, a cláusula MAC se torna uma previsão contratual relevante; pois, como descreve o jurista Sérgio Botrel:
"Trata da possibilidade de o negócio ser desfeito caso durante o período de verificação das condições suspensivas ocorra algum evento material adverso. Juntamente com a previsão expressa dessa cláusula, uma definição do que seja evento material adverso auxilia a interpretação da disposição contratual. Naturalmente, a inserção de critérios objetivos contribui sobremaneira, muito embora o mais usual seja a previsão de que a materialidade do evento se verifica quando as bases da operação são substancialmente alteradas".3
Arnoldo Wald, nesse sentido também preconiza:
"Essa disposição contratual pode ser traduzida, de acordo com a nossa sistemática legal, como hipótese de resilição convencional, uma vez que a Parte que se sentir prejudicada pela ocorrência de fato ou ato, previsível ou não, que altere substancialmente os resultados ou premissas da transação negociada, passa a ter o direito, mediante simples manifestação de vontade, de efetuar a denúncia do pacto. Essa hipótese de resilição não inclui obrigatoriedade de pagamento de multa rescisória, a não ser que de outra forma estipulado entre as Partes".4
Efeito material adverso significa qualquer ato, fato, mudanças e/ou eventos capaz de atingir os negócios, resultados das operações, passivos, ativos, condições financeiras da Sociedade Alvo, afetando sua capacidade de receita e/ou causar perdas substanciais aos investidores ou a uma das Partes que esteja negociando a fusão e aquisição da sociedade.
Assim, caso ocorra algum dos eventos ou circunstâncias descritas na cláusula negociada entre as Partes, a Parte prejudicada terá o direito de denunciar o contrato, sem a necessidade de pagamento de multas ou indenizações. Tudo porque o período que permeia a assinatura e o fechamento da operação pode afetar as condições contratuais negociadas entre as Partes.
Desta forma, "a finalidade da cláusula MAC é atribuir proteção para as Partes contra eventos que podem ocorrer entre a data de assinatura dos contratos e a data de fechamento".5
A necessidade de proteção contra eventos e circunstâncias imprevistas durante o período intermediário é ainda mais relevante em cenários mundiais e/ou nacionais de grande insegurança econômica, política, social, sanitária, como a vivenciada atualmente.
A cláusula MAC pode ser prevista em qualquer fase do processo operacional de M&A, ou seja, pode ser estabelecida como condições precedentes, nas declarações e garantias, alocando o risco do negócio e protegendo a Parte prejudicada, pode ser ainda cumulativa ou alternativa. A cláusula também permite que as Partes realoquem direitos e obrigações contratuais, com a finalidade de regular as consequências de eventos adversos imprevistos, o que, não necessariamente acarrete na denunciação do contrato e encerramento da operação, mas o ajuste do preço ou outra questão que busque um equilíbrio contratual afetado pela circunstância adversa.
Em contrapartida, a cláusula MAC deve ser muito bem redigida e vai depender do poder de negociação das Partes; pois, não pode servir simplesmente de "rota de fuga" da transação, nem de desculpas para saídas oportunistas de quem não fez um bom negócio, sob o risco de esvaziar a real finalidade da cláusula e gerar conflitos futuros.
A importância da inclusão da cláusula MAC atualmente, além de ser um período de grandes incertezas vivenciados no Brasil, é pela ausência de previsão legal no sistema jurídico brasileiro capaz de solucionar a contento as questões complexas das transações de fusões e aquisições. O instituto que mais se aproxima no ordenamento jurídico brasileiro é o da "onerosidade excessiva" disciplinado pelos artigos 478 e seguintes do Código Civil.
Assim, a ausência da cláusula MAC conduziria a judicialização da disputa quase que obrigatoriamente, competindo a parte lesada a comprovação de todos os elementos previstos no art. 478 do Código Civil, segundo o qual: "nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que o decretar retroagirão à data da citação".
As regras do artigo supracitado refletem a teoria da imprevisão, rebus sic stantibus; e, as disputas nas Cortes, que não possuem um posicionamento uniforme, além de exigir a análise probatória podem demandar longos anos, o que representa ainda mais perdas para as Partes.
Um contrato com ausência de cláusulas específicas como a MAC, se houver necessidade de as Partes enfrentarem uma situação adversa e imprevisível, a saída será invocar a teoria da imprevisão. Porém, com relação as transações complexas de fusões e aquisições, da falta de decisões uniformes e a necessidade de se preencher os requisitos legais, comprovando os prejuízos advindos do evento adverso, ocorreria a mitigação da aplicação da teoria da imprevisão.
Ainda, a subjetividade de se caracterizar a "onerosidade excessiva" também seria um entrave.
O jurista Orlando Gomes já ensinava:
"A onerosidade excessiva da prestação é apenas obstáculo ao cumprimento da obrigação. Não se tratar, portanto, de inexecução por impossibilidade, mas de extrema dificuldade. Contudo, não se pode dizer que é voluntária a inexecução por motivo de excessiva onerosidade. Mas, precisamente porque não há impossibilidade, a resolução se realiza por motivo diverso. Para a resolução de contrato é preciso, em primeiro lugar, que seja excessiva a diferença de valor do objeto da prestação entre o momento de sua perfeição e o da execução. A onerosidade há de ser objetivamente excessiva, isto é, a prestação não deve ser excessivamente onerosa apenas em relação ao devedor, mas a toda a qualquer pessoa que se encontrasse em sua posição. Não basta, porém, que a prestação se tenha agravado exageradamente. Preciso é que a onerosidade tenha sido determinada por acontecimentos extraordinários e imprevisíveis. Se o contratante concorrer por negligência para que se agrave excessivamente a prestação, o contrato não pode ser resolvido por essa causa. O acontecimento, por sua vez, deve ser anormal. Há de ser imprevisível. Tão importante é esse requisito que a solução do problema se encontra na teoria da imprevisão. Necessário que as partes, no momento em que se celebram o contrato, não possam prever alteração decorrente do evento extraordinário. Requer-se o concurso de extraordinariedade e da imprevisibilidade. Não basta que o acontecimento seja extraordinário, porque, se suscetível de previsão, descabe a rescisão. Não basta que seja imprevisível, porque, sendo normal, pouco importa que as partes não o tenham previsto. Enfim, se a onerosidade excessiva decorre de acontecimentos extraordinário e imprevisível, que dificulte extremamente o cumprimento da obrigação, o devedor, que se sacrificaria com a execução, tem a faculdade de promover a rescisão do contrato."6
Desta forma, a ausência de cláusulas específicas como a MAC nas operações de M&A, podem conduzir a judicialização das disputas, atribuindo-se ao juiz poder de intervir na economia do contrato; quando tais disputas poderiam ser solucionadas de forma menos onerosa.
Uma boa redação da cláusula é capaz de prever determinadas saídas e situações mais vantajosas às Partes, além de evitar conflitos e litígios, e de serem extremamente úteis para regularem incertezas inerentes às operações complexas como nas fusões e aquisições empresariais.
Nos contratos mais antigos praticados no Brasil não se verificava tanto cláusulas mais específicas e determinadas para cada situação; mas, as relações sociais mudaram muito, a economia, proteção de mercados, tecnologia, enfrentamento de questões ambientais e sustentáveis, tudo se transformou rapidamente, e, com as operações de fusões e aquisições não poderia ser diferente. Também se vê uma mudança no cenário jurídico-brasileiro com maior busca pelas formas conciliatórias das disputas. Como já dizia Paul Denman Cravath, brilhante advogado de Manhattan: "o litígio é um sinal de fracasso nos negócios, onde todos perdem".
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1- COHEN. David. O jogo sangrento das fusões e aquisições. Exame. Economia. 24/06/2016. Disponível aqui.
2- Basta analisar que no Direito, desenvolveu-se um conjunto de regras e métodos de interpretação denominada hermenêutica. Como já ensinava Carlos Maximiliano, a hermenêutica "é parte da ciência jurídica que tem por objeto o estudo da sistematização dos processos, que devem ser utilizados para que a interpretação se realize" (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 19ª ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2002, pg.1). De todo o modo, há diversas formas de interpretação legislativa que podem conduzir a efeitos adversos, às vezes até contrário à vontade das Partes.
3- BOTREL, Sérgio. Fusões e Aquisições. 5 ed. – São Paulo: Saraiva, 2017, p. 302.
4- WALD, Arnoldo; MORAES, Luiza Rangel; WAISBERG, Ivo. Fusões, incorporações e aquisições – aspectos societários, contratuais e regulatórios. In: WARDE JR., Walfrido Jorge (coord.) Fusão, cisão, incorporação e temas correlatos. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p.56.
5- MORAES, Lívia. Inclusão de cláusulas MAC em contratos de M&A no Brasil. JOTA. São Paulo, 29.10.2018. Disponível aqui.
6- GOMES. Orlando. Contratos. Atualização e notas de Humberto Theodoro Júnior. 18 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1999, p. 178/179.