Migalhas de Peso

O enquadramento da covid-19 como doença ocupacional, sob a ótica do empregador

Em suma, o STF, ao declarar a inconstitucionalidade desse dispositivo, não reconheceu automaticamente a covid como doença ocupacional, apenas asseverou que o ônus da comprovação do nexo causal não pode e nem deve ser do empregado, mas sim do empregador.

29/7/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

A avassaladora chegada da pandemia do coronavírus causou uma profunda transformação em todo o mundo. Seja na forma de convivência, nas restrições causadas e, como não poderia deixar de ser, nas relações de trabalho. Por um lado, a instituição compulsória do teletrabalho em todas as atividades em que era possível a sua implementação; por outro lado, a cautela, zelo e maior cuidado dos empregadores acerca das medidas de saúde, higiene e segurança que, se já eram importantes antes da pandemia, passaram a ser questão de ordem após esse histórico evento, a fim de evitar a caracterização de doença ocupacional decorrente da covid.

No plano legislativo, várias normas foram promulgadas para disciplinar procedimentos relacionados ao mundo do trabalho decorrentes da pandemia, mas iremos nos ater a duas delas, que trouxeram importantes mudanças e que servem de norte para que o empregador possa se desincumbir do seu ônus de descaracterizar o nexo causal entre a eventual infecção do empregado pelo coronavírus e o ambiente de trabalho.

A primeira é saber o que, efetivamente, o STF decidiu quando do julgamento das ADI's 6342, 6344, 6346, 6348, 6349, 6352 e 6354 que questionavam a constitucionalidade da Medida Provisória 927/2020, em especial o art. 29, que previa o seguinte:

"Art. 29. Os casos de contaminação pelo coronavírus (covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal".

Em suma, o STF, ao declarar a inconstitucionalidade desse dispositivo, não reconheceu automaticamente a covid como doença ocupacional, apenas asseverou que o ônus da comprovação do nexo causal não pode e nem deve ser do empregado, mas sim do empregador. Ou seja, se a regra explicitada no dispositivo declarado inconstitucional era de que os casos de covid não seriam ocupacionais, presume-se, agora, que tais casos são de natureza ocupacional, especialmente, mas não exclusivamente, quando se desempenhar atividade essencial, salvo se o empregador comprovar que adotou todas as medidas de higiene, saúde e segurança para evitar a contaminação.

Isso está expresso no voto condutor, redigido pelo Min. Alexandre de Moraes, cujo trecho segue abaixo:

"A norma em questão exclui, como regra, a contaminação pelo coronavírus da lista de doenças ocupacionais, transferindo o ônus da comprovação ao empregado, isto é, cabe ao trabalhador demonstrar que contraiu a doença durante o exercício laboral, denotando o caráter subjetivo da responsabilidade patronal.

No entanto, essa previsão vai de encontro ao recente julgamento do STF em relação à responsabilidade objetiva do empregador em alguns casos. No julgamento do RE 828.040 (ata de julgamento publicada no DJe em 19/3/2020), sob o regime de repercussão geral, de minha relatoria, essa CORTE fixou a seguinte tese jurídica:

‘O art. 927, parágrafo único, do Código Civil, é compatível com o art. 7º, XXVIII, da Constituição Federal, sendo constitucional a responsabilização objetiva do empregador por danos decorrentes de acidente de trabalho, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida, por sua natureza, apresentar exposição habitual a risco especial, com potencialidade lesiva e implicar ao trabalhador ônus maior do que aos demais membros da coletividade’.

Assim, o texto do art. 29 da MP 927/2020, ao praticamente excluir a contaminação por coronavírus como doença ocupacional, tendo em vista que transfere aos trabalhadores o ônus de comprovação, destoa, em uma primeira análise, de preceitos constitucionais que asseguram direitos contra acidentes de trabalho (art. 7º, XXVIII, da CF). A norma, portanto, não se mostra razoável, de forma que entendo presentes os requisitos necessários à concessão de medida liminar". [grifos aditados]

O Min. Edson Fachin, no mesmo julgamento, assim se pronunciou:

"Exigir-se que o ônus probatório seja do empregado, diante da infecção e adoecimento pelo novo coronavírus, não se revela como medida adequada e necessária à redução dos riscos dos trabalhadores quanto à doença deflagrada pelo novo coronavírus. Se o constituinte de 1988 reconheceu a redução de riscos inerentes ao trabalho como um direito fundamental social do trabalhador brasileiro, obrigando que os empregadores cumpram normas de saúde, higiene e segurança no trabalho (artigo 7º, XXII, CRFB), certamente ele previu que o empregador devera responsabilizar-se por doenças adquiridas no ambiente e/ou em virtude da atividade laboral.

A previsão de responsabilidade subjetiva parece uma via adequada a justificar a responsabilização no caso das enfermidades decorrentes de infecção pelo novo coronavírus, de forma que se o empregador não cumprir as orientações, recomendações e medidas obrigatórias das autoridades brasileiras para enfrentar a pandemia pelo novo coronavírus, deverá ser responsabilizado.

Mas é importante deixar claro que o ônus de comprovar que a doença não foi adquirida no ambiente de trabalho e/ou por causa do trabalho deve ser do empregador, e não, do empregado, como estabelece a norma impugnada". [grifos aditados]

Assim, o que o STF decidiu foi que existem situações que, a priori, estabelecem nexo causal entre a doença e o trabalho, a exemplo do acometimento de profissionais de saúde que estejam na linha de frente no combate ao covid. Decidiu também que em todos os casos caberá ao empregador fazer a prova de que adotou, no ambiente de trabalho, todas as medidas de higiene exigidas pelas autoridades sanitárias, como forma de evitar a transmissão e infecção pelo novo coronavírus.

Trata-se de presunção juris tantum, que pode e deve ser desconstituída mediante prova em contrário. Devemos registrar, entretanto, a possibilidade de que, mesmo na área de saúde, em algumas situações o nexo causal seja desconstituído.

Por exemplo, apesar do técnico de enfermagem ser profissional da área de saúde, não necessariamente estará em contato com pacientes portadores da infecção causada pelo coronavírus. Com base nesse entendimento, a 1ª Turma do TRT da 18ª Região, em sessão realizada no dia 16/06/2021, proferiu decisão na reclamação trabalhista nº 0010736-32.2020.5.18.0008, afastando o nexo causal entre a doença e o trabalho exercido por um técnico de enfermagem que atuava somente prestando serviço em homecare, ressaltando que o empregador fez prova de que o empregado não trabalhava em ambiente hospitalar exposto ao contato com pacientes com coronavírus.

Há, ainda, jurisprudência que vem se firmando no sentido de que se a prova, a cargo do empregador, evidenciar que foram adotadas todas as medidas de proteção à saúde do trabalhador para combate à pandemia, exigidas pelas autoridades sanitárias, restará afastado o nexo de causalidade, ainda que o empregado trabalhe em ambiente cujo risco de contágio seja mais acentuado. É como decidiu, por exemplo, o Juízo da 2ª Vara do Trabalho de Caruaru – PE, em sentença proferida no último dia 20/07/2021, afirmando que "Ainda que se entenda pelo nexo de causalidade presumido em razão das atividades profissionais da reclamante se desenvolverem em hospital, local com grande probabilidade de contágio da doença, no caso concreto, as testemunhas confirmaram o fornecimento adequado dos EPI's, o treinamento sobre a adequada paramentação e desparamentação de modo que a transmissão comunitária da covid e a situação de calamidade pública em que se encontra o Brasil e o mundo, não nos permite concluir com segurança que a doença foi contraída em razão do trabalho." (processo nº 0000875-16.2020.5.06.0312)

É bem verdade, por outro lado, que já há decisões firmando tese de que no caso de empregados que exercem suas atividades sob risco acentuado de contágio, como é o caso dos trabalhadores em ambiente hospitalar, a responsabilidade do empregador seria objetiva, isto é, independente de culpa, tornando-se desnecessário aferir se foram ou não adotadas as medidas de proteção, ao passo que para os trabalhadores que não estão expostos a risco acentuado no ambiente de trabalho aplica-se a responsabilidade subjetiva do empregador, o qual precisará comprovar a adoção das medidas protetivas para que a doença não se caracterize como ocupacional. É o que decidiu, por exemplo, a 1ª Turma do TRT da 4ª Região, em acórdão publicado no último dia 15/07/2021: "Evidentemente, nos casos em que a atividade realizada é própria a uma maior exposição ao risco de contágio, como por exemplo, a atividade em hospitais, ambulâncias, emergências, a doença se mostra como laboral, sendo a responsabilidade do empregador até mesmo objetiva. No entanto, nos demais casos, é necessário verificar se a atividade a qual, em princípio, não expõe o trabalhador a maior risco do que aconteceria com qualquer outro cidadão, por negligência daquele que tem o dever de cuidado do meio ambiente do trabalho (empregador), ou pelo modo com que foi exigida a prestação de serviço, houve maior exposição. Nessa hipótese, a responsabilidade é subjetiva e impõe a prova de que todos os cuidados foram tomados e que a contaminação não se relacionou com o trabalho desenvolvido." (processo nº 0020390-19.2020.5.04.0821)

Em análise acerca do art. 20 da lei 8.213/91, a Secretaria Especial de Previdência e Trabalho, que integra o Ministério da Economia, elaborou a Nota Técnica SEI nº 56376/2020/ME, fazendo importante registro sobre a caracterização da covid como doença ocupacional nos casos em que houver o risco acentuado, sendo imprescindível a análise das provas de cada caso concreto:

"Inicialmente, é importante esclarecer que a covid-19, como doença comum, não se enquadra no conceito de doença profissional (art. 20, inciso I), mas pode ser caracterizada como doença do trabalho (art. 20, inciso II): "doença adquirida ou desencadeada em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente". A covid-19 não consta da lista prevista no Decreto nº 3.048, de 1999 (anexo II), mas pode ser reconhecida como doença ocupacional, aplicando-se o disposto no §2º do mesmo artigo 20:

§ 2º Em caso excepcional, constatando-se que a doença não incluída na relação prevista nos incisos I e II deste artigo resultou das condições especiais em que o trabalho é executado e com ele se relaciona diretamente, a Previdência Social deve considerá-la acidente do trabalho.

As circunstâncias específicas de cada caso concreto poderão indicar se a forma como o trabalho foi exercido gerou risco relevante para o trabalhador. Além dos casos mais claros de profissionais da saúde que trabalham com pacientes contaminados, outras atividades podem gerar o enquadramento."

Portanto, a teor do § 2º, do art. 20, da lei 8.213/91, a caracterização da covid como doença ocupacional deve ser excepcional, já que se trata de patologia que não integra a relação estabelecida no Decreto 3048/99, que regulamenta a Previdência Social, o que atrai a necessidade de comprovação de que a doença resultou de condições especiais de trabalho, e sem a adoção das medidas de proteção contra o coronavírus.

Acresça-se a essa conclusão o fato de que o art. 20, §1º, "d", da lei 8.213/91 prevê expressamente que:  

"Art. 20. Consideram-se acidente do trabalho, nos termos do artigo anterior, as seguintes entidades mórbidas:

...

§ 1º Não são consideradas como doença do trabalho:

...

d) a doença endêmica adquirida por segurado habitante de região em que ela se desenvolva, salvo comprovação de que é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho".

A expressão "natureza do trabalho", no nosso sentir, quer significar a atividade efetivamente realizada pelo empregado.

Portanto, para que a covid seja considerada doença ocupacional, será preciso coexistir as seguintes situações:

  1. A doença é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho (risco mais acentuado que o nomal);
  2. Que haja evidências concretas de que alguns trabalhadores se contaminaram concomitantemente;
  3. Que o empregador não tenha se desincumbido do ônus de demonstrar, de forma concreta, que envidou todos os esforços e implementou todas as medidas no sentido de evitar a contaminação.

Note-se, ainda, que o art. 20, § 1º, "d", da lei 8.213/91 descaracteriza como doença do trabalho a doença endêmica, sendo certo que a covid-19 pode ainda se tornar, a curto ou médio prazo, uma endemia em determinadas regiões do mundo, inclusive no Brasil.

Sobre a possibilidade de enquadramento da covid-19 como doença endêmica, trazemos ao conhecimento do leitor trechos do Informativo divulgado pela FIOCRUZ em 08/02/2021:

"No Brasil, mesmo após o início da vacinação em muitos estados, ainda há muitas dúvidas sobre a eficácia das vacinas e a capacidade de imunizar boa parte da população em um curto prazo. Ou seja, ao que tudo indica, os brasileiros terão que conviver com a covid-19 por algum tempo ainda. E alguns especialistas não descartam a possibilidade de que esse tempo pode se estender para muito além do fim da pandemia, e até mesmo depois que uma vacina eficaz começar a ser distribuída. Esse alerta já havia sido feito lá atrás, em maio, pela própria Organização Mundial da Saúde (OMS), que sinalizou que o fim da pandemia não significaria necessariamente a erradicação da covid-19, que poderia passar a se comportar como mais uma entre as várias enfermidades com as quais os seres humanos tiveram que aprender a conviver em seu cotidiano. Essa nova realidade se enquadra no que a área de epidemiologia chama de uma doença endêmica. Mas o que isso significa? Para responder a essa pergunta, cabe retornar aos conceitos de endemia e epidemia, que, segundo o epidemiologista Guilherme Werneck, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e professor do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IMS/Uerj), remontam à Grécia Antiga, nos escritos daquele que é considerado um dos pais da Medicina, Hipócrates. "Em sua obra, ele já distinguia aquilo que seriam as doenças endêmicas, que estavam sempre presentes na população, das epidêmicas, que poderiam se tornar muito frequentes, mas que depois desapareciam", explica Guilherme. [...] Para estabelecer os limites do que é uma endemia e o que é uma epidemia é preciso analisar a série histórica dos dados relativos à incidência de determinada doença em um dado território. [...] Assim, diz Maria Glória Teixeira, professora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA) e pesquisadora do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs) do Instituto Gonçalo Moniz (Fiocruz Bahia), é possível estabelecer o que ela chama de limite endêmico. [...] Mas e no caso de uma doença nova, como a covid-19, em que não há dados dos anos anteriores que permitam a elaboração de uma série histórica e a definição do que é ou não esperado? Faz sentido falar em endemia? "No caso do novo coronavírus, quando se fala que ela vai ficar endêmica quer dizer que, possivelmente, ela vai continuar circulando entre as pessoas, mas em níveis bem mais baixos do que no início ou quando todo mundo estava suscetível à doença", destaca a pesquisadora do Cidacs." 1

Apesar da possibilidade de exclusão do nexo de causalidade entre o trabalho e a covid-19 nas hipóteses acima destacadas, é imprescindível que o empregador tenha em mente as medidas de prevenção para evitar a disseminação da covid no ambiente de trabalho. Dentre as medidas destacamos, de forma exemplificativa, aquelas previstas no Anexo I da Portaria Conjunta n. 20, de 18/06/2020 da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho e Ministério da Saúde, chamando a atenção para as seguintes2:

MEDIDAS DE PREVENÇÃO PARA EVITAR A COVID NO AMBIENTE DE TRABALHO

Existe, ainda, outra norma importante e que deve servir de norte para o empregador nas relações com seus empregados. Com efeito, a segunda fonte normativa é a Lei 13.979/2020, que prevê expressamente, em seu art. 3º, III, "d", que:

"Art. 3º  Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas: (Redação dada pela lei 14.035/20)

...

III - determinação de realização compulsória de:

...

d) vacinação e outras medidas profiláticas"

Acrescente-se, ainda, a previsão expressa no inciso III-A do mesmo artigo, que impõe ao empregado o "uso obrigatório de máscaras de proteção individual".

Assim, da mesma forma que o empregador deve adotar todas as medidas de saúde, higiene e segurança do trabalho visando neutralizar ou mesmo impedir a contaminação dos seus empregados, o empregado também deve fazer a sua parte, sendo desaconselhável recusar a vacinação, salvo motivação justificada, sendo, entretanto, garantido ao empregado o direito à informação, à assistência familiar, ao tratamento gratuito e o respeito à dignidade, aos direitos humanos e às liberdades fundamentais das pessoas, na forma dos incisos I a III do parágrafo 2º do art. 3º da mesma lei 13.979/203.

Diz-se desaconselhável a recusa do empregado à vacina, pois, apesar de a vacinação não ser obrigatória à população, é medida compulsória, havendo a possibilidade de aplicação de sanções ao empregado diante da sua recusa, principalmente em razão desse comportamento importar em risco para toda a sociedade. Nesse cenário, importante alertar o leitor para a possibilidade de aplicação até mesmo da penalidade máxima prevista na legislação trabalhista, qual seja, a dispensa do empregado por justa causa, desde que o direito à informação, citado no parágrafo acima, lhe tenha sido garantido. Nesse sentido, podemos citar recente acórdão do TRT da 2ª Região (SP), no processo nº 1000122-24.2021.5.02.0472.

A obrigação do empregado de cumprir as normas de segurança e saúde do trabalho está expressa no art. 158 da CLT, a seguir transcrito:

"Art. 158 - Cabe aos empregados:  

I - observar as normas de segurança e medicina do trabalho, inclusive as instruções de que trata o item II do artigo anterior;

Il - colaborar com a empresa na aplicação dos dispositivos deste Capítulo.

Parágrafo único - Constitui ato faltoso do empregado a recusa injustificada:      

a) à observância das instruções expedidas pelo empregador na forma do item II do artigo anterior;                  

b) ao uso dos equipamentos de proteção individual fornecidos pela empresa".   

O STF, ao julgar o ARE 1.267.879, fixou a natureza compulsória da vacinação. Confira-se a ementa:

"Ementa: Direito constitucional. Recurso extraordinário. Repercussão geral. Vacinação obrigatória de crianças e adolescentes. Ilegitimidade da recusa dos pais em vacinarem os filhos por motivo de convicção filosófica. 1. Recurso contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) que determinou que pais veganos submetessem o filho menor às vacinações definidas como obrigatórias pelo Ministério da Saúde, a despeito de suas convicções filosóficas. 2. A luta contra epidemias é um capítulo antigo da história. Não obstante o Brasil e o mundo estejam vivendo neste momento a maior pandemia dos últimos cem anos, a da covid-19, outras doenças altamente contagiosas já haviam desafiado a ciência e as autoridades públicas. Em inúmeros cenários, a vacinação revelou-se um método preventivo eficaz. E, em determinados casos, foi a responsável pela erradicação da moléstia (como a varíola e a poliomielite). As vacinas comprovaram ser uma grande invenção da medicina em prol da humanidade. 3. A liberdade de consciência é protegida constitucionalmente (art. 5º, VI e VIII) e se expressa no direito que toda pessoa tem de fazer suas escolhas existenciais e de viver o seu próprio ideal de vida boa. É senso comum, porém, que nenhum direito é absoluto, encontrando seus limites em outros direitos e valores constitucionais. No caso em exame, a liberdade de consciência precisa ser ponderada com a defesa da vida e da saúde de todos (arts. 5º e 196), bem como com a proteção prioritária da criança e do adolescente (art. 227). 4. De longa data, o Direito brasileiro prevê a obrigatoriedade da vacinação. Atualmente, ela está prevista em diversas leis vigentes, como, por exemplo, a lei 6.259/75 (Programa Nacional de Imunizações) e a lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Tal previsão jamais foi reputada inconstitucional. Mais recentemente, a lei 13.979/20 (referente às medidas de enfrentamento da pandemia da covid-19), de iniciativa do Poder Executivo, instituiu comando na mesma linha. 5. É legítimo impor o caráter compulsório de vacinas que tenha registro em órgão de vigilância sanitária e em relação à qual exista consenso médico-científico. Diversos fundamentos justificam a medida, entre os quais: a) o Estado pode, em situações excepcionais, proteger as pessoas mesmo contra a sua vontade (dignidade como valor comunitário); b) a vacinação é importante para a proteção de toda a sociedade, não sendo legítimas escolhas individuais que afetem gravemente direitos de terceiros (necessidade de imunização coletiva); e c) o poder familiar não autoriza que os pais, invocando convicção filosófica, coloquem em risco a saúde dos filhos (CF/1988, arts. 196, 227 e 229) (melhor interesse da criança). 6. Desprovimento do recurso extraordinário, com a fixação da seguinte tese: "É constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, (i) tenha sido incluída no Programa Nacional de Imunizações, ou (ii) tenha sua aplicação obrigatória determinada em lei ou (iii) seja objeto de determinação da União, Estado, Distrito Federal ou Município, com base em consenso médico-científico. Em tais casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar". (STF, Tribunal Pleno, ARE 1267879, Relator: Min. Roberto Barroso, publicado em 08/04/2021)

Assim, caso fique demonstrado que o empregado teve ciência da necessidade de se vacinar e não o fez, nem apresentou qualquer justificativa, ao empregador é possível adotar medidas disciplinares, inclusive, a justa causa.

Diante da análise realizada no presente estudo, podemos concluir que, mesmo após o STF ter declarado inconstitucional o art. 29 da MP 927/2020, - norma que, inclusive, já caducou sem a respectiva conversão em lei -, a covid-19 não é doença caracterizada automaticamente como de natureza ocupacional. Muito pelo contrário, seguindo a ordem da legislação trabalhista e previdenciária vigente, a caracterização da doença ocupacional é excepcional, derivando de risco acentuado no ambiente de trabalho que advém da natureza da atividade (podendo, nesse caso, atrair a responsabilidade objetiva do empregador pela teoria do risco), ou da ausência de adoção das medidas de prevenção à transmissão do coronavírus, notadamente aquelas exigidas pelas autoridades sanitárias, o que enseja relação entre o trabalho e a doença (nexo causal), bem como caracteriza a negligência do empregador (culpa), fazendo incidir a sua responsabilidade subjetiva. Nesse contexto, é de suma importância que o empregador cumpra todas as medidas sanitárias de proteção e fiscalize-as (à exemplo da fiscalização do uso de máscaras e da ampla divulgação e orientação sobre vacinação, devendo aplicar penalidade ao empregado que descumpra a regra), mantendo sempre em seu poder as evidências das condutas adotadas, de modo a se desincumbir do seu encargo probatório em eventual reclamação trabalhista.

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1- Disponível aqui. Acesso 23/07/2021

2- Muitas dessas ações foram adotadas pela empresa JBS Aves, conforme petição inicial nos autos do processo 1000876-78.2021.5.00.0000

3- Nesse sentido, vide julgado do STF nas ADI's 6586 e 6587, de relatoria do Min. Ricardo Lewandowski, publicado em 07/04/2021.

Luis Henrique Maia Mendonça
Sócio do escritório Menezes, Magalhães, Coelho e Zarif Sociedade de Advogados.

Mariana Larocca S. Rodrigues Mathias
Advogada especialista em Direito do Trabalho, sócia do escritório Menezes, Magalhães, Coelho e Zarif Sociedade de Advogados.

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