Durante este período pandêmico, especialmente em razão do isolamento social, muitos casais, especialmente por terem passado a morar juntos, começaram a questionar e pesquisar sobre as possíveis consequências patrimoniais decorrentes do relacionamento em que estão inseridos. Um dos principais questionamentos é: O (a) namorado (a) pode ser considerado (a) como herdeiro (a)? O que posso fazer para evitar que isso aconteça?
A resposta a essas perguntas envolve certa complexidade, já que há a necessidade de análise das circunstâncias concretas do relacionamento. Isso porque, a depender, o que, até então, era um namoro (ou seja, um relacionamento amoroso sem maiores consequências jurídicas), pode vir a se tornar uma união estável, tendo como principal consequência o ingresso do, antes namorado (a), agora convivente, à posição de herdeiro (a).
Para melhor compreensão e contextualização, utilizaremos, a título de exemplo, a seguinte situação: duas pessoas se conheceram por meio de um app de relacionamentos e começaram a se relacionar. Após 8 meses de relacionamento, no início da pandemia, passaram a morar juntos; faziam declarações públicas de amor em redes sociais; dividiam contas; adotaram, juntos, um cachorro; e manifestavam para terceiros (amigos e parentes) o interesse de, no futuro, adotar uma criança. A e B não formalizaram união estável. No caso, A possuía patrimônio de um milhão de reais construído antes do início da relação com B (ou seja, bens particulares), não tendo constituído nenhum patrimônio durante a relação; tinha um filho; e, após 2 anos de relacionamento, veio a falecer repentinamente.
Diante dessa situação, surgem as seguintes perguntas: A e B eram namorados ou conviventes (ou seja, estavam em união estável)? B terá direito a receber algum bem a título de sucessão de A? Para responder a essas perguntas, há a necessidade de uma breve análise de alguns institutos de direito de família e de direito das sucessões.
Para caracterização da união estável devem ser preenchidos os seguintes requisitos legais: convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família (art. 1.723 do Código Civil). Ou seja, independentemente da manifestação de vontade das partes neste sentido, e inexistindo declaração expressa no sentido de que o relacionamento não é e não virá a ser uma união estável até disposição expressa em sentido diverso, estando presentes os requisitos legais, a união pode ser reconhecida judicialmente, inclusive após a morte de uma das partes.
É importante destacar que não há prazo legal mínimo para a caracterização da união estável. Ou seja, preenchidos os requisitos legais, a união pode ser reconhecida independentemente do tempo de relação entre os conviventes.
Em vista disso, considerando-se a relação entre A e B (acima exposta), pode-se dizer que B, fazendo prova do preenchimento dos requisitos do artigo 1.723 do Código Civil, poderia obter o reconhecimento judicial, pós-morte, da união estável com A, especialmente para efeitos sucessórios.
Pois bem, as regras legais que regem a partilha de bens em caso de divórcio ou dissolução de união estável não se confundem com as regras relativas à partilha decorrente da sucessão.
No caso de reconhecimento e dissolução de união estável entre pessoas vivas, por iniciativa delas (consensual ou litigiosa), tendo por base, por exemplo, o regime da comunhão parcial de bens (regra geral aplicada nos casos em que as partes não tenham optado expressamente por outro regime – art. 1.725 do Código Civil), haverá, entre os ex-companheiros, salvo os bens que não se comunicam (art. 1.659 do Código Civil), a divisão igualitária dos bens adquiridos na constância da união estável. No caso do exemplo citado, B, em caso de dissolução da união estável com A, teria direito à metade dos bens eventualmente adquiridos na constância da união (arts. 1.658 e 1.660 do Código Civil), nada podendo requerer com relação aos bens adquiridos por A antes da união (bens particulares).
Por outro lado, no caso de sucessão, a regra não é a mesma, muito embora muitos acreditem que seja.
O (a) companheiro (a), até a declaração de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal (Recursos Extraordinários 646.721 e 878.694), em 2017, sucedia nos termos do 1.790 do Código Civil. O referido artigo estabelecia que o (a) companheiro (a) participava da sucessão do outro somente quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nada podendo reclamar com relação aos bens particulares.
A partir da declaração de inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil, o (a) companheiro (a) passou a suceder nos mesmos moldes da sucessão do cônjuge (art. 1829 e seguintes do Código Civil). Ou seja, com a declaração de inconstitucionalidade, o (a) companheiro (a) foi equiparado ao cônjuge com relação aos direitos e efeitos sucessórios.
Em vista disso, nos termos do artigo 1.832 do Código Civil, concorrendo com descendente (s) do falecido (ou seja, descendente somente do companheiro falecido), ao companheiro sobrevivente cabe o direito de receber parte igual ao do (s) descendente (s). Por outro lado, se concorrer com filhos em comum com o falecido, o companheiro sobrevivente, independentemente da quantidade de filhos, terá direito a receber, a título de herança, quota não inferior a um quarto da herança.
Considerando o exemplo dado, se reconhecida a união estável, pós-morte, entre A e B, e havendo concorrência somente entre B e o filho de A, cada um terá direito, em linhas gerais, a 50% do total do patrimônio deixado pelo falecido, ou seja, R$ 500 mil para cada um. Isso porque não mais se aplica a regra no sentido de que “a companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável”, mas sim a regra no sentido de que o companheiro, assim como o cônjuge, concorre com os descendentes com relação aos bens particulares deixados pelo falecido (art. 1.829, inciso I, c/c o art. 1.832, ambos do Código Civil) – sem prejuízo de eventual meação relativa aos bens adquiridos na constância da união estável.
Caso não seja de interesse que o (a) namorado (a) venha a ser considerado como convivente e, consequentemente, como herdeiro em caso de falecimento repentino, recomenda-se que as partes celebrem um contrato de namoro - ou um termo de compromisso -, no qual elas estabelecerão que mantém um relacionamento afetivo que não caracteriza, nem caracterizará, até que elas decidam, formalmente, alterar o status do relacionamento por meio da formalização da união (pela união estável ou casamento).