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O voto secreto e o voto auditado

A Emenda Constitucional, apresentada pela deputada Bia Kicis, sofre forte rejeição da opinião pública. Na hipótese, contudo, aprovação, exigirá lei regulamentadora que respeite o sigilo do voto secreto.

27/7/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Deixemos de lado a legislação eleitoral do Brasil Império.

Foi examinada por Oliveira Vianna em Instituições Políticas Brasileiras, obra de leitura obrigatória para quem pretende conhecer as raízes do Brasil moderno. Destaco o parágrafo encontrado no volume I, onde se lê: "No período colonial, em matéria de eleições, tudo se passava normalmente sem violência, sem tumultos". Proclamada a Independência, diz o ilustre autor, "esta fisionomia grave e pacífica das reuniões eleitorais desapareceu subitamente". "Daí em diante é que se começa a formar a tradição dos tumultos e tropelias em torno das urnas, que durou todo o Império e penetrou na República" (Ed. Distribuidora Record, RJ, 1974, 3ª ed., págs. 258/260).

Na Velha República (1889-1930), o fato de ser secreto não significava que o eleitor gozasse de liberdade de escolha do candidato. Em regiões atrasadas predominavam o "voto de cabresto", o "curral eleitoral", a pistolagem, o poder dos senhores de engenho, listas e atas falsas, apurações trapaceadas.

O jurista Victor Nunes Leal (1914-1985), aposentado arbitrariamente do STF pelo presidente Costa e Silva durante o regime militar, analisou a falta de liberdade eleitoral no clássico "Coronelismo, enxada e voto", cuja primeira edição é de 1949. A obra, várias vezes reeditada, permanece atual porque o mandonismo e a corrupção não foram extintos sob a Constituição de 1988. Graças, porém, à evolução legislativa e à presença vigilante da Justiça Eleitoral, perdeu parcial validade a afirmação deixada pelo ilustre jurista e escritor de que "a corrupção eleitoral tem sido um dos mais notórios e enraizados flagelos do regime representativo no Brasil".

A observação talvez caiba às eleições estaduais e municipais, em regiões sob o domínio de coronéis e de famílias poderosas. Vamos encontrá-la, sobretudo, nas áreas rurais onde a ausência do Estado é suprida pela presença do latifundiário explorador do trabalho mal remunerado. Não é o caso, todavia, do Brasil urbanizado, industrializado, desenvolvido e de pluralidade partidária, onde é possível exercitar a liberdade de opinião nos comícios, palestras e conferências, ou por intermédio da imprensa livre e, mais recentemente, das modernas redes sociais.

Advertiu o professor Sampaio Dória (1883-1964), nos Comentários à Constituição de 1946, que "votar bem pressupõe, no votante, o conhecimento da missão que se atribui ao votado com o voto, o conhecimento do candidato para o exercício do cargo, e, por cima, no remate, não votar senão no que parecer ao votante o mais capaz." (Ed. Max Limonad, SP, 1960, vol. 3º, pág. 562).

Com efeito, é fundamental que o eleitor entenda o significado e o poder inerentes ao voto direto e secreto.  Quando não acontece, fica fácil convencê-lo a optar pelo menos capaz ou mais corrupto. A fraude eleitoral, todavia, não se faz sentir na seção eleitoral, dentro da cabine indevassável. Percorre antes tortuoso caminho, que se inicia na composição da chapa de candidatos, quando a condição econômica, ou a popularidade de auditório prevalecem sobre os requisitos mínimos para o exercício do mandato disputado. Examinem-se os currículos dos integrantes das casas legislativas municipais, estaduais e federais e dos ocupantes de cargos executivos. É sabido que o voto, em determinadas circunstâncias, pode ser permutado por cesta básica, promessa de emprego, par de calçados, camisas de futebol, ou conquistado pela ameaça de perder o emprego, de perseguição no serviço público, do corte do crédito no armazém.

Quem reúne coragem para enfrentar ameaças, ao chegar à seção eleitoral não tem motivo para temer o patrão, a polícia local ou federal, o delegado do partido, o cabo eleitoral. Registrará o voto na urna eletrônica, receberá o comprovante de votação e estará certo de se encontrar sob a proteção do sigilo.

Críticos do sistema informatizado de urnas eletrônicas jamais consultaram o Código Eleitoral, aprovado pela lei 4.737/65. Trata-se de legislação de alta qualidade. Disciplina com detalhes a disputa eleitoral. Dispõe, especialmente, sobre a fiscalização do local e do momento da votação, com o objetivo de garantir o anonimato do voto.

Conforme informações divulgadas pelo TSE, às eleições municipais de 2020 compareceram 147 milhões de eleitores. Foram utilizadas 400 mil urnas eletrônicas, distribuídas em 5.563 municípios, "consolidando o Brasil como o país com a maior eleição informatizada do mundo".

A Emenda Constitucional, apresentada pela deputada Bia Kicis, sofre forte rejeição da opinião pública. Na hipótese, contudo, aprovação, exigirá lei regulamentadora que respeite o sigilo do voto secreto. Não haverá tempo para aplicação às eleições de 2022. Basta consultar o calendário.

Almir Pazzianotto Pinto
Advogado. Foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho. Autor de A Falsa República e 30 Anos de Crise - 1988 - 2018.

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