Migalhas de Peso

Salve seus dados!

Estamos em um governo liberal e são mais duas empresas na longa lista de privatizações.

26/7/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Que os dados são o novo petróleo, você já sabe.

Que as grandes empresas privadas de tecnologia do Vale do Silício comandam o capitalismo de vigilância e podem influenciar o resultado das eleições ao mesmo tempo em que vendem uma pizza, você também já sabe.

Que o Estado brasileiro é detentor de um banco de dados poderosíssimo e pretende vender todas essas informações sobre você e o país para uma empresa privada, você NÃO sabe, ainda!

O poder da informação está na escolha de como passá-la adiante. Esse artigo poderia contar que o Governo Federal pretende privatizar, até o final de 2021, as duas maiores empresas de tecnologia estatais: Serpro e Dataprev. Provavelmente seria mais um texto contando aquilo que você já sabe: estamos em um governo liberal e são mais duas empresas na longa lista de privatizações.

A informação que você não sabe – mas deveria – é que elas detêm um banco de dados que é o sonho de consumo de qualquer empresa privada. Juntas tratam diariamente dados de todos os brasileiros, como nome, CPF, renda, atividade laboral, antecedentes criminais, biometria digital e facial, bens, direitos.

O Serpro é o líder do mercado de TI no setor público, possuindo presença nacional, robusta infraestrutura tecnológica e ampla experiência com os grandes sistemas da Administração Pública Federal1. Uma de suas funções mais importantes é o processamento dos dados do Imposto de Renda de toda a população brasileira e, conforme disposto no parágrafo único do artigo 3º de seu estatuto, os serviços prestados pela Serpro "envolvem matérias afetas a imperativos de segurança nacional, essenciais à manutenção da soberania estatal, em especial no tocante à garantia da inviolabilidade dos dados da administração pública federal direta e indireta, bem como aquelas relacionadas a relevante interesse coletivo".2

A Dataprev, por sua vez, processa o pagamento mensal de cerca de 35 milhões de benefícios previdenciários e é a responsável pela aplicação on-line que faz a liberação do seguro-desemprego. Ela também trata as informações previdenciárias da Receita Federal e responde, por exemplo, pela gestão do CNIS – Cadastro Nacional de Informações Sociais3. Recentemente, ganhou visibilidade por gerenciar o pagamento do auxílio-emergencial.

Como seria se uma empresa privada tivesse o controle de um banco de dados capaz de influenciar a vida de todos os cidadãos de um país e manipular a segurança nacional? Como seria se o seu patrão ou plano de saúde pudesse acessar quantas vezes você recebeu auxílio-doença nos últimos anos e com isso fazer sua contratação ou demissão ou aumentar o valor do plano de saúde? Como seria se todo o seu histórico de renda e bens estivesse nas mãos do banco que pretende oferecer um serviço ou conceder um empréstimo?

Essas e outras preocupações precisam ser objeto de discussão dentro de nossa sociedade e não estão sendo pela tentativa estatal de "passar a boiada".

A OCDE – Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, no estudo "A Caminho da Era Digital no Brasil", recomendou cautela no processo de privatização ressaltando que "há, atualmente, um debate importante em torno da possibilidade de os titulares de dados perderem o controle sobre seus dados pessoais em decorrência da privatização, ou até que ponto esses dados poderiam ser acessados e usados para outros propósitos comerciais, uma vez que as empresas terão acesso às informações nos contratos originais que foram feitos com entidades públicas, incluindo dados pessoais".4

A transferência do banco de dados dessas empresas fere a Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD (lei 13.709/18), que veda, expressamente, o tratamento de dados que podem influenciar a segurança pública, a defesa nacional e a segurança do Estado por pessoas jurídicas de direito privado, principalmente quando esse tratamento ocorrer por meio da totalidade dos dados pessoais existentes no banco. Ainda, quando se fala em tratamento de dados fornecidos pelo cidadão ao Poder Público, a lei é bem clara ao estipular que deve atender sempre a finalidade pública, a persecução do interesse público e garantir a transparência5.

A despeito de a Lei de Segurança Nacional possuir vários "senões", ela também veda a privatização do Serpro, conforme parecer do Ministério Público Federal enviado para o Ministério da Economia, ao BNDES e ao TCU em 25 de fevereiro de 20216. O art. 13 da Lei estabelece que configura crime contra a segurança nacional, passível de reclusão de 3 a 15 anos, a entrega ou permissão de entrega de dados e documentos classificados como sigilosos para governo ou grupo estrangeiro, bem como revelar tecnologias ou sistemas automatizados de processamento de dados em uso ou desenvolvimento no Brasil.

Não bastassem as vedações legais, a história de privatizações brasileiras na área de tecnologia traz amargas lembranças. Em 1999, a Unisys – empresa privada multinacional – comprou, em processo de privatização, a Datamec, responsável, por exemplo, pelo Programa Seguro-Desemprego. Como a tecnologia adotada na construção dos sistemas de informação é de natureza totalmente proprietária e exclusiva, os programas passaram a ser executados unicamente nos computadores de fabricação da Unisys, gerando uma total dependência tecnológica e operacional.

A partir de 2003, diversos problemas relativos à condução do contrato e à ameaça velada da Unisys de paralisar os serviços considerados de notória relevância social começaram a ocorrer, culminando em uma disputa judicial para que a empresa disponibilizasse o banco de dados e os códigos-fontes a fim de viabilizar a migração para novos sistemas estatais.

O repasse tecnológico teve início em 2007 e encerrou-se em 2011. Ironicamente, a empresa estatal que recebeu todos esses dados e tecnologias foi a Dataprev.7 De lá para cá, passamos por crises financeiras e a Dataprev passou diversos meses sem receber; enquanto empresa estatal, jamais interrompeu ou ameaçou interromper os serviços. Uma empresa privada não faria isso, na primeira oportunidade chantagearia o Governo e utilizaria esse banco de dados imenso para fins comerciais.

A campanha "Salve Seus Dados"8, criada por empregados e voluntários da Dataprev e do Serpro sob supervisão e gestão da ANED – Associação Nacional dos Empregados da Dataprev, elenca outros riscos da privatização, além da suspensão de serviços críticos devido ao atraso de pagamento. Vejamos: a) perpetuação de uma empresa privada no controle do Estado; b) aumento dos custos para o Estado; c) necessidade de reestatização no futuro como ocorreu com a Datamec; d) a folha de pagamento dos benefícios previdenciários pode sair das mãos do Estado; e) planos de saúde mais caros e ofertas de emprego negadas com base no histórico de afastamentos pelo INSS; f) uso de dados para interesses alheios aos do cidadão; g) fragilidade da LGPD para combater o uso indevido de dados; h) danos à competitividade das empresas; i) diminuição da independência tecnológica do Brasil; j) perda da experiência acumulada pelos empregados das estatais sobre os complexos serviços de tecnologia desenvolvidos pelas empresas9.

Nos últimos tempos, tivemos um "boom" de preocupações com a forma como nossos dados são utilizados pelas Big Techs do Vale do Silício, mas em nenhum momento olhamos para nosso quintal. A tecnologia está em constante disputa; de nada adianta combatermos a coleta de nossos dados pelas empresas privadas enquanto o Governo Federal oferece todo esse banco em uma bandeja de ouro.

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1- A empresa. Serpro.gov.br. Disponível aqui. Acesso em: 30/06/21.

2- Estatuto do Serpro. Portal da Transparência e Governança | Serpro. Disponível aqui. Acesso em: 30/06/21.

3- Soluções digitais para governo e cidadão. Dataprev | Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência. Disponível aqui. Acesso em: 30/06/21.

4- Olhar Digital. OCDE pede cautela com privatização de Dataprev e Serpro; dados preocupam - Olhar Digital. Olhar Digital. Disponível aqui. Acesso em: 30/06/21.

5- Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD:

Art. 4º Esta Lei não se aplica ao tratamento de dados pessoais:

(...)

II - realizado para fins exclusivos de:

a) segurança pública;

b) defesa nacional;

c) segurança do Estado; ou

(...)

§ 2º É vedado o tratamento dos dados a que se refere o inciso III do caput deste artigo por pessoa de direito privado, exceto em procedimentos sob tutela de pessoa jurídica de direito público, que serão objeto de informe específico à autoridade nacional e que deverão observar a limitação imposta no § 4º deste artigo.

(...)

§ 4º Em nenhum caso a totalidade dos dados pessoais de banco de dados de que trata o inciso III do caput deste artigo poderá ser tratada por pessoa de direito privado, salvo por aquela que possua capital integralmente constituído pelo poder público.

Art. 23. O tratamento de dados pessoais pelas pessoas jurídicas de direito público referidas no parágrafo único do art. 1º da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011 (Lei de Acesso à Informação), deverá ser realizado para o atendimento de sua finalidade pública, na persecução do interesse público, com o objetivo de executar as competências legais ou cumprir as atribuições legais do serviço público, [...]

(L13709. Planalto.gov.br. Disponível aqui. Acesso em: 30/06/21)

6- MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA GERAL DA REPÚBLICA 3a CÂMARA DE COORDENAÇÃO E REVISÃO CONSUMIDOR E ORDEM ECONÔMICA. [s.l.]:, [s.d.]. Disponível aqui. Acesso em: 30/06/21.

7- Salve seus dados. Aprendendo com o passado: o caso Datamec. Congresso em Foco. Disponível aqui. Acesso em: 01/07/21.

8- Salve seus dados. Disponível aqui. Acesso em: 01/07/21.

9- HTTPS://SALVESEUSDADOS.COM.BR/AUTHOR/ELVIS. Por que não privatizar. Disponível aqui. Acesso em: 01/07/21.

Ariane Emke
Advogada de Direito Previdenciário, Direito Civil e outras áreas. Advocacia nas Esferas Administrativas e Órgãos Públicos do escritório LBS Advogados - Loguercio, Beiro e Surian Sociedade de Advogados.

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