Diante das dificuldades impostas pelo SARS-CoV-2 a toda a humanidade, tem-se buscado incessantemente o desenvolvimento de vacinas seguras e eficazes em tempo recorde, na tentativa de imunizar o maior número possível de pessoas no menor intervalo de tempo com o propósito de que a circulação das cepas desse vírus seja interrompida e, consequentemente, menos mortes sejam causadas. É o que se costuma chamar de imunização coletiva ou “de rebanho”. Até que essa imunização ocorra, várias vem sendo as medidas de enfrentamento adotadas por governos minimamente responsáveis, como as recomendações para o uso de máscaras, sanitização ou lavagem constante das mãos e distanciamento social. Claro que não se pode olvidar, ao menos no peculiar caso brasileiro, de iniciativas legislativas que tentaram trazer algum alento em meio ao caos, a exemplo da permissão do uso da telemedicina 1 (mesmo diante da incompreensível resistência do CFM) e de medidas excepcionais relativas à aquisição de vacinas e de insumos utilizados no combate à Covid-19 2.
No último dia 16 foi publicada a lei 14.187, que dispõe sobre a autorização para que estruturas industriais destinadas à fabricação de vacinas de uso veterinário sejam utilizadas na produção de insumos farmacêuticos ativos (IFA) e vacinas contra a covid-19 no Brasil 3. Embora essa lei tenha sido resultado do Projeto de lei (PLS) 1343/2021, apresentado em 29 de abril deste ano no Senado Federal, a discussão sobre essa autorização já vinha sendo discutida por representantes de órgãos governamentais e das indústrias veterinárias ao menos um mês antes da apresentação desse PLS 4,5.
No que diz respeito à lei 14.187/2021, a autorização para a produção de IFA e vacinas contra a covid-19 está condicionada ao cumprimento de normas sanitárias e de biossegurança próprias dos estabelecimentos destinados à produção para uso humano (art. 1º, caput). Embora exista quem afirme que essa autorização é temporária 6, assim como previa o texto original do PLS 1343/2021 7, a questão da temporariedade foi suprimida pelo Congresso Nacional durante as deliberações. Se a limitação temporal para a produção de vacinas contra a covid-19 por indústrias veterinárias for a intenção do legislador, é nosso entendimento que seu texto deve ser alterado ou, ao fim da pandemia, a indigitada lei deve ser revogada.
Importante dizer que o fato de uma indústria veterinária fabricar IFA ou medicamento humano não descaracteriza sua atividade principal, é dizer, a de fabricar medicamentos destinados à saúde animal, visto que ela se submeterá, ao mesmo tempo, às normatizações, controles e fiscalizações da autoridade sanitária 8 e do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), nos assuntos concernentes às suas respectivas competências. No caso específico das normas sanitárias para autorização de funcionamento (AFE), as indústrias veterinárias deverão, após adequar suas instalações e procedimentos, solicitar a autorização de funcionamento (AFE) à Anvisa, obedecendo os critérios de peticionamento estabelecidos pela RDC 16/2014 9, que dão concretude aos artigos 1º e 2º da lei 6.360/1976 10. Além disso, é preciso que tais empresas sejam licenciadas pelo Órgão de vigilância sanitária estadual, distrital ou municipal, a depender da descentralização das atividades 11, razão pela qual entendemos ser incompleta a redação do artigo 3º da lei 14.187/2021, pois impôs apenas à Anvisa a priorização relacionada à fabricação de IFA e vacinas contra a covid-19, esquecendo-se dos demais (e igualmente relevantes) órgãos sanitários envolvidos no processo.
A lei 14.187/2021 estabeleceu que todas as fases da fabricação das vacinas contra a covid-19 devem ser realizadas em dependências físicas separadas daquelas utilizadas na fabricação 12 de produtos destinados aos medicamentos de uso veterinário 13. A única exceção de compartilhamento diz respeito ao almoxarifado da indústria veterinária, que em razão do limitado espaço e do volume de produtos por ela fabricados, pode manter os medicamentos de usos humano e veterinário no mesmo espaço físico, desde que haja avaliação e anuência prévias da Anvisa e metodologia de identificação e segregação de cada tipo de vacina 14.
Embora possa ser compreendido o receio do legislador sobre a possibilidade de ocorrência de contaminação cruzada 15 entre as vacinas contra a covid-19 e os medicamentos veterinários, entendemos que a questão quanto à separação física das áreas poderia ter sido flexibilizada, principalmente considerando o atual cenário de pandemia. Isso permitiria igual segurança jurídica para a autorização pretendida pela lei e estaria em consonância com os princípios da razoabilidade e proporcionalidade impostos ao administrador público. A defesa que aqui se faz não significa aceitar que a fabricação dos IFA ou vacinas contra a covid-19 seja realizada sem as cautelas necessárias, mas, ao contrário, busca sustentar que fosse dada a oportunidade de as indústrias veterinárias poderem gerenciar os riscos inerentes aos processos como fazem as indústrias farmacêuticas, identificando os pontos frágeis quanto à segurança, estabilidade ou eficácia das vacinas e neles atuando para mitigar os seus riscos de maneira a eles proporcional.
Há muito tempo a interpretação dada para o artigo 52, inciso I da lei 6.360/1976 era de que a fabricação de medicamentos para uso humano e animal deveria ser feita em instalações separadas. Porém, há formulações farmacêuticas que são comuns a tais finalidades, alterando apenas a bula, rótulo e embalagem. Pautando-se pelo bom senso, representantes das áreas técnicas do MAPA e Anvisa elaboraram uma Nota Técnica conjunta 16 e decidiram que medicamentos veterinários poderiam ser fabricados nas mesmas instalações licenciadas para medicamentos de uso humano, contanto que insumos farmacêuticos utilizados em sua composição fossem aprovados para ambas as finalidades, é dizer, uso humano e animal, sendo requerida a segregação das áreas somente nos casos de comprovação de segurança e eficácia ou para uso humano ou para uso veterinário.
Esse entendimento reforça nossa tese de que teria sido mais prudente o legislador se tivesse previsto o gerenciamento de risco da qualidade 17 pela indústria veterinária para a fabricação de IFA e vacinas contra a covid-19, visto que elas estarão sujeitas às normativas da Anvisa enquanto produzirem esses produtos. Evidentemente, nada impediria a indústria veterinária de decidir pela separação das instalações como medida de segurança para a fabricação dos aludidos produtos depois de feita sua avaliação de riscos. Outra opção seria utilizar as instalações e equipamentos já existentes para permitir a produção em campanha 18 da vacina contra a covid-19, com aplicação de procedimentos validados de limpeza e esterilização de equipamentos ao seu término, sem prejuízo da execução de limpezas parciais entre os lotes intermediários da campanha. Embora as alternativas aqui levantadas não têm o condão de serem exaustivas, elas apontam para opções igualmente seguras e ágeis para a produção dessa vacina, principalmente em um contexto de pandemia. Por isso, reiteramos que a imposição de plano para a separação física de área produtiva da indústria veterinária não nos parece ser razoável e proporcional, além de ferir a aplicação isonômica dos atos normativos a que elas estariam sujeitas.
As indústrias veterinárias que pretendem fabricar o IFA da vacina contra a covid-19 deverão observar o que estabelece a RDC 69/2014 até a etapa imediatamente anterior àquela responsável pela sua esterilidade, e a partir desta devem respeitar o que estabelece a RDC 301/2019 19. No que diz respeito à vacina propriamente dita, independentemente de ser fabricada com o vírus inativado ou atenuado, devem ser consideradas a RDC 301/2019 e a Instrução Normativa - IN 36/2019. Somado a isso, não se pode olvidar que para que a fabricação de IFA e vacinas contra a covid-19 sejam permitidas nas indústrias veterinárias, é necessário que a Anvisa autorize não apenas o funcionamento das empresas mediante a concessão da AFE, mas também o processo produtivo propriamente dito e os controles aplicáveis, seja por meio do registro 20, seja mediante a autorização para uso emergencial 21.
Em que pese algumas impropriedades técnicas do legislador ao elaborar a lei 14.187/2021, não restam dúvidas de que esta abriu o caminho para possibilidade de fabricação de IFA e vacinas contra a covid-19 pela indústria veterinária como forma de que rapidamente possamos atingir a imunidade de rebanho. Porém, ao contrário do que se possa pensar, acreditamos que esse caminho não será curto e desprovido de obstáculos. Por isso, é dever tanto das indústrias veterinárias como dos órgãos públicos envolvidos atuarem conjuntamente para que esse caminho seja alargado, permitindo que por ele possa soberanamente trafegar apenas o interesse público.
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1 Portaria 467/2020 do Ministério da Saúde e lei 13.989/2020.
2 Definidas pela lei 14.124/2021.
3 Disponível aqui. Acesso em: 16 jul. 2021.
4 Informação da reunião ocorrida em 29/03/2021 entre representantes do MAPA, Anvisa e Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Saúde Animal (Sindan). Disponível aqui. Acesso em: 18 jul. 2021.
5 Embora esta informação esteja disponível no site da própria Anvisa, destaca-se a impropriedade do uso do termo “manipulação” em substituição à “fabricação”, visto que o primeiro é utilizado para caracterizar a atividade exercida por farmácias com manipulação, é dizer, “conjunto de operações farmacotécnicas, com a finalidade de elaborar preparações magistrais e oficinais e fracionar especialidades farmacêuticas para uso humano” (item 4, Anexo, RDC 67/2007 c/c art. 3º. I, da lei 13.021/2014), ao passo o segundo consiste nas “operações envolvidas no preparo de determinado medicamento, incluindo a aquisição de materiais, produção, controle de qualidade, liberação, armazenamento, expedição de produtos acabados e os controles relacionados” (art. 3º, XXI, RDC 301/2019 c/c art. 3º, XI da lei 6.360/1976).
6 Disponível aqui. Acesso em 18 jul 2021.
7 A leitura do texto inicial deste PLS. Disponível aqui. Acesso em 18 jul. 2021.
8 Aqui devendo ser entendida não apenas a Anvisa, mas também os Órgãos de Vigilância Sanitária Estaduais, Distrital e Municipais, a depender de suas competências.
9 Assim dispõe o artigo 1º desta RDC: “Esta Resolução tem o objetivo de estabelecer os critérios relativos à concessão, renovação, alteração, retificação de publicação, cancelamento, bem como para a interposição de recurso administrativo contra o indeferimento de pedidos relativos aos peticionamentos de Autorização de Funcionamento (AFE) e Autorização Especial (AE) de empresas e estabelecimentos que realizam as atividades elencadas na Seção III do Capítulo I com medicamentos e insumos farmacêuticos destinados a uso humano, substâncias sujeitas a controle especial, produtos para saúde, cosméticos, produtos de higiene pessoal, perfumes, saneantes e cultivo de plantas que possam originar substâncias sujeitas a controle especial”.
10 Art. 1º - Ficam sujeitos às normas de vigilância sanitária instituídas por esta lei os medicamentos, as drogas, os insumos farmacêuticos e correlatos, definidos na lei 5.991, de 17 de dezembro de 1973, bem como os produtos de higiene, os cosméticos, perfumes, saneantes domissanitários, produtos destinados à correção estética e outros adiante definidos. Art. 2º - Somente poderão extrair, produzir, fabricar, transformar, sintetizar, purificar, fracionar, embalar, reembalar, importar, exportar, armazenar ou expedir os produtos de que trata o art. 1º as empresas para tal fim autorizadas pelo Ministério da Saúde e cujos estabelecimentos hajam sido licenciados pelo órgão sanitário das Unidades Federativas em que se localizem (g.n.).
11 Conforme arts. 6º, I, “a”; 7º, IX, “a”; art. 16, XV; e 17, I da lei 8.080/1990 c/c art. 7º, § 5o da lei 9.782/1999.
12 Entendemos ter havido desatenção do legislador ao utilizar alguns termos que possuem definições técnicas já estabelecidas e que, portanto, deveriam ser observadas. Por isso, “fabricação” foi o termo aqui utilizado em substituição às etapas de produção, ao envasamento, à etiquetagem e embalagem (descritas no art. 1º, §1o da lei 14.187/2021) por possuir significado mais abrangente, conforme descrito alhures (art. 3º, XXI, RDC 301/2019), ao passo que o termo produção abrange “todas as operações envolvidas na preparação de um medicamento, desde o recebimento dos materiais, passando pelo processamento e embalagem, até a sua conclusão como um produto acabado” (art. 3º, XXXVI, RDC 301/2019). Em outras palavras e em termos técnicos, a operação de produção envolve, no caso das vacinas, a amostragem e pesagem de matérias-primas, a formulação, o envase, a esterilização, a rotulagem (etiquetagem) e a embalagem (que inclui a impressão de dados variáveis – como número de lote e data de validade - e inserção de bula).
13 Art. 1º (...) §1º Todas as fases relacionadas à produção, ao envasamento, à etiquetagem, à embalagem e ao armazenamento de vacinas para uso humano deverão ser realizadas em dependências fisicamente separadas daquelas que, em uma mesma estrutura industrial, sejam utilizadas para a fabricação de produtos destinados a uso veterinário.
14 Art. 1º (...) §2º Quando não houver ambientes separados para que o armazenamento seja feito conforme o disposto no § 1º deste artigo, as vacinas contra a covid-19 poderão ser armazenadas na mesma área de armazenagem das vacinas de uso veterinário, mediante avaliação e anuência prévias da autoridade sanitária federal e desde que haja metodologia de identificação e segregação de cada tipo de vacina.
15 A definição pode ser encontrada no artigo 3º, X, da RDC 391/2019.
16 Disponível aqui. Acesso em 18 jul. 2021.
17 Para mais informações, sugerimos a leitura dos artigos 21 e 22 da RDC 301/2019.
18 De acordo com o art. 5º, XX da IN 36/2019, a fabricação em campanha nada mais é do que a “fabricação de uma série de lotes do mesmo produto, em sequência e num determinado período, seguidos da execução completa de medidas de controle definidas antes da fabricação de outro produto. Os produtos não são fabricados ao mesmo tempo, mas podem ser fabricados no mesmo equipamento”.
19 Conforme prevê o artigo 3º da IN 36/2019.
20 Art. 12, caput, da lei 6.360/1976 c/c art. 7º, IX, da lei 9.782/1999.
21 Conforme disposições da lei nº 14.124/2021 e da RDC 475/2021.