As fragilidades dos trabalhadores da cultura ficaram ainda mais expostas durante a pandemia. Os períodos de confinamento fizeram com que em muitos países fossem aprovadas legislações emergenciais de apoio e fomento às atividades artístico-culturais suspensas e interrompidas pelas regras de segurança sanitárias. Assim também, devido à covid-19, antigas questões sobre os regimes laborais e previdenciários dos profissionais da cultura ressurgiram, principalmente com a organização e o surgimento de debates sobre a precariedade e a pauperização dos trabalhadores com a impossibilidade da aferição de rendimentos a partir de atividades com contato direto com o público. Independentemente da reinvenção da forma a partir do digital, em alguns países foi retomada a discussão sobre a proteção trabalhista dos profissionais da cultura.
Ainda em 2020, o governo português instituiu um grupo de trabalho interministerial para a elaboração do Estatuto dos Profissionais da Cultura. Ao final de abril deste ano, o Conselho de Ministros aprovou o referido Estatuto. No entanto, após pressão de várias associações e sindicatos ligados aos setores culturais sobre a ausência de debates com a sociedade civil e representantes de uma multiplicidade de segmentos culturais na sua elaboração, a ministra da Cultura portuguesa anunciou, ainda no início do mês de maio, durante audiência na Assembleia da República, a abertura de consulta pública para promover alterações no decreto-lei¹ que cria essa nova norma laboral, cujo prazo findou esta semana (17 de junho). Segundo o ministério da Cultura português, a previsão é a de que entre em vigor já em 2022.
O Estatuto é aparentemente abrangente, abraçando diversas atividades culturais e relações trabalhistas que não se circunscrevem aos vínculos de subordinação laboral. Contudo, sofreu diversas críticas de sua inclinação para os setores de espetáculos, principalmente advindas dos trabalhadores de equipamentos e instituições ligadas à museologia, arquivos e ao patrimônio cultural. Este ponto de inflexão revela um grande entrave na elaboração de políticas de proteção social para os trabalhadores da cultura: ausência e/ou desconhecimento dos dados sobre os perfis, atuação, remunerações e heterogeneidade das atividades, além da falta de mapeamento de sua distribuição territorial.
A nova proposta de legislação trabalhista e de segurança social aos profissionais da cultura assenta-se sobre três eixos: o registro profissional, a natureza das contratações e a seguridade social dos trabalhadores da cultura.
A lei 04/08 previa o registro facultativo dos profissionais do setor das atividades artísticas, culturais e do espetáculo. No novo Estatuto, a inscrição assim permanece, no entanto, para além da identificação dos trabalhadores, o governo português pretende elaborar suas políticas de capacitação profissional e apoio social com fundamento nas estatísticas oriundas desse banco de dados. Por outro lado, os benefícios da segurança social só poderão ser acessados pelos inscritos.
O Estatuto revoga a lei portuguesa 04/08. O diploma trabalhista anterior era criticado por não proteger de fato os trabalhadores da cultura. Criou um regime de intermitência que, em verdade, apenas fortaleceu a instabilidade e a precariedade. Isso porque empregadores transformaram suas necessidades de contratação permanentes em fictícias relações temporárias, sem a devida justificativa. Na prática, os profissionais viam-se com a remuneração reduzida nos períodos descontínuos de contratação. Apesar de retoricamente ter se apoiado no regime de trabalho de intermitência francês, em nada guardava semelhança, já que, no caso português, os rendimentos não eram mantidos, e sim reduzidos. Além disso, as situações de instabilidade permaneceram. Equipamentos que mantém relações empregatícias duradouras naturalizaram os contratos de trabalho a termo em situações nas quais o trabalho nada tem de temporário.
Apesar da proposta de mudança, os impasses e disputas existentes no tratamento jurídico anterior permanecem. Enquanto o atual governo português defende que o Estatuto está alinhado com o predomínio das relações autônomas de trabalho no campo cultural, as associações representativas dos segmentos culturais portugueses denunciam a ilegalidade dos chamados falsos recibos-verdes, trabalhadores que deveriam estar sob a proteção de um contrato de trabalho e são tratados como prestadores de serviços independentes.
Não apenas a ausência de mecanismo de fiscalização sobre a natureza dos contratos e a informalidade reinante persistem, as divergências sobre trabalho intermitente e o regime contributivo dos profissionais permanecem.
O período mínimo de trabalho com contribuições à segurança social para se ter direito ao subsídio por conta da suspensão involuntária da atividade cultural é de 180 dias. A concessão, no entanto, depende que trabalhadores da cultura com contratos de trabalho de curta duração e independentes, incluindo aí os empresários em nome individual, estejam parados três meses antes do pedido. As organizações representantes dos profissionais da cultura enxergam que a exigência deste prazo de intermitência só reforça a precariedade já existente.
A concessão do subsídio de suspensão das atividades pode ocorrer de três a seis meses. No caso dos trabalhadores com idade igual ou maior a 55 anos, o apoio pode ser gozado por um ano. Pelo Estatuto, o subsídio em razão da suspensão da atividade do trabalhador cultural é gerenciado pelo Fundo Especial de Segurança Social dos Profissionais da Área da Cultura.
O período de concessão do subsídio depende do número de dias acumulados de conversão dos rendimentos mensais transformados em contribuições efetivas para a seguridade social. Há diferentes prazos de garantias para concessão dos subsídios, de acordo com o número acumulado de dias por valor das contribuições realizadas. Porém, as organizações dos profissionais da cultura queixam-se que esse regime contributivo se baseia em rendimentos mensais de referência muito superiores aos de grande parte dos trabalhadores dos segmentos culturais, ou seja, quase o dobro de remunerações líquidas que não chegam a 600 euros. Outra reclamação recorrente está no valor pago à segurança social durante os meses de recebimento do subsídio deduzido mensalmente do montante.
O quadro mais drástico foi apresentado por estudo do Observatório Português das Atividades Culturais, solicitado pelo próprio governo. Conforme relatório elaborado pelo Observatório pertencente ao Instituto Superior de Ciências do Trabalho, a segurança social portuguesa não possui subsídios adequados às circunstâncias laborais dessas atividades marcadas pela descontinuidade contributiva durante períodos muito pequenos.²
Os profissionais da cultura portuguesa veem a oportunidade de modificar, com o Estatuto, o paradigma da flexibilização excessiva das relações laborais. O cumprimento de regras que se reflitam na mudança de comportamento nas relações de trabalho envolve até as instituições e equipamentos culturais administrados pelo próprio Estado. Entretanto, o maior desafio reside em garantir direitos trabalhistas e previdenciários em uma conjuntura transnacional que aposta na sua desregulamentação.
Mesmo com o fim da consulta pública, o debate sobre o Estatuto promete ainda acalorar mais ainda o verão europeu. Aguardemos as próximas cenas.
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1- Disponível aqui.
2- Disponível aqui.