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Transferências especiais: na contramão da transparência, fiscalização e controle do dinheiro público

Da forma como estão estabelecidas, são portas abertas para a malversação e desvio de verbas públicas.

20/7/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

As emendas parlamentares, define a Constituição, são instrumentos pelos quais os parlamentares participam da elaboração da Lei Orçamentária Anual, a LOA, encaminhada ao Congresso Nacional pelo Executivo. Elas possibilitam o acréscimo de recursos para atender as demandas das populações dos municípios nos estados que representam.

Esta participação demonstra o caráter democrático da LOA.

Foi fortalecida em 2015, com a promulgação da EC 86/15, que alterou os artigos 165 e 166 para tornar impositiva a execução orçamentária das emendas individuais, que atendem diretamente as necessidades do cidadão.

A impositividade das emendas individuais fortaleceu, sem dúvida, a atuação do Legislativo.

Antes da obrigatoriedade imposta pela EC 86/15, o Executivo não era obrigado a cumprir as emendas individuais. Até então, elas eram utilizadas, usualmente, como moeda de troca pelo governo em votações de leis que considerava importantes, tornando-se um injusto e indesejável instrumento de pressão e de discriminação partidária sobre os parlamentares. Hoje, o Executivo é obrigado a cumpri-las independentemente da opção política do parlamentar.

A EC 105/19, que entrou em vigor em 1º de janeiro de 2020, instituiu duas novas modalidades de transferências das emendas individuais: a) transferência especial, e, b) transferência com finalidade definida, nas quais os valores são repassados diretamente ao ente federado beneficiado, independentemente de celebração de convênio, acordo, termo de repasse ou instrumento semelhante.

No caso das transferências especiais, os valores das emendas parlamentares individuais são transferidos da União diretamente para as contas dos Fundos de Participação dos Estados (FPE) e dos Fundos de Participação dos Municípios (FPM) indicados pelos parlamentares como beneficiários, sem passar por qualquer tipo de análise técnica.

Nesta nova modalidade de transferência, os valores passam a pertencer aos entes federados beneficiados a partir de quando podem utilizá-los, de forma livre e discricionária, sem vinculação. Ou seja: como quiserem, devendo apenas observar a aplicação de ao menos 70% do valor recebido em investimentos.

O objetivo é desburocratizante e aparentemente inquestionável: dar celeridade na execução dos recursos das emendas individuais impositivas, pondo fim à demora, às vezes de anos, como reclamavam com razão os entes federados, entre o momento da indicação da verba e sua efetiva aplicação, com prejuízos à população que as emendas buscam beneficiar.

 

Constata-se, porém, no texto da EC 105/19, que na modalidade transferência especial a aplicação do recurso é fiscalizada somente pelos órgãos de controle interno e pelos tribunais de contas municipais e estaduais, pois, no § 2º Inciso II da Emenda Constitucional, o recurso, depois de transferido, fará parte da receita do município ou estado, da mesma forma como ocorre no FPE e FPM.

Ora, se o recurso é oriundo de emenda parlamentar da Câmara de Deputados e do Senado, estamos tratando de recurso exclusivo da esfera federal. Como tal, isto é, proveniente da União, não deveria deixar de passar pelo crivo e acompanhamento ou do Tribunal de Contas da União, ou Ministério Público Federal, ou Controladoria Geral da União, ou Departamento Nacional de Auditoria do SUS ou comissões fiscalizadoras da Câmara dos Deputados e do Senado.

No modelo imposto pela EC 105/19, quando os entes federados destinatários das transferências especiais deixam de ser fiscalizados por órgãos de controle federal de comprovada expertise, é enorme a probabilidade de não serem detectadas fraudes contábeis e fiscais na utilização delas.

Tem se multiplicado, nos últimos anos, felizmente, a adoção de medidas de maior controle sobre o dinheiro público, que na origem é recurso obtido do cidadão via impostos, taxas, contribuições.

Entre os exemplos desta saudável postura estão a Lei de Responsabilidade Fiscal, limites mínimos de aplicação nas áreas da saúde e educação, tetos nas despesas de pessoal, a Portaria Interministerial 424/16, que regulamenta as transferências da União por meio de convênios e contratos de repasses.

Outros bons exemplos de controle são o Sistema de Gestão de Convênios e Contratos de Repasse, Siconv, hoje Plataforma +Brasil, Portais de Transparência, criação da carreira de analista de infraestrutura nos Ministérios, contratualização com a Caixa Econômica Federal como órgão controlador da execução de emendas ao Orçamento Fiscal.

Da forma como está regulamentada, a transferência especial se coloca, portanto, na contramão do que tem sido construído até aqui para a sempre bem-vinda fiscalização do uso correto do dinheiro público, uma justíssima reivindicação do cidadão que gera os recursos. Do jeito como está, é um retrocesso.

Alguns poderão duvidar se vale a pena abrir mão do controle mais rigoroso sobre o dinheiro público em favor da celeridade e da menor burocratização do uso das transferências especiais.

Os freqüentes casos de corrupção no país, inclusive no combate à terrível pandemia do novo coronavírus, que causou mais de meio milhão de mortos e deveria estar imune às safadezas humanas, recomendam que sim, que deve prevalecer o controle eficaz sobre a celeridade.

É preciso fazer com que o Brasil comece a melhorar sua vergonhosa posição no Índice de Percepção da Corrupção, produzido desde 1995 pela respeitada ONG Transparência Internacional. Ocupamos, no ano passado, o 94º lugar numa relação de 179 países, logo atrás do Equador.

Do primeiro ano para o segundo ano de sua existência, as transferências especiais deram um salto de 621 milhões em 2020 para 1,9 bilhão no ano de 2021, com uma grande tendência de crescimento para os próximos anos.

O grande potencial de malversação e desvio dos muitos milhões de reais no desenho das transferências especiais estabelecido na EC 105/2019 impõe mudanças urgentes.

Leandro Vieira Rodrigues Barbosa
Assessor de Orçamento no Senado Federal, administrador especialista em Política e Gestão em Ciência e Tecnologia, pós-graduando em Orçamento Público pelo ILB.

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