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O Sistema Único de Saúde em Tempos de Covid-19: da essencialidade ao desfinanciamento do Neoliberalismo de austeridade

A essencialidade do SUS se contrasta com a precarização do orçamento destinado à manutenção da política pública, tendo em vista a lógica neoliberal, agravada pelo atual contexto de austeridade no país.

19/7/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Décadas de descaso com a saúde pública brasileira resultaram em ausência de leitos, exames, remédios, respiradores, tubos de oxigênio e falta de profissionais; problemas estes escancarados pela pandemia de covid-19, que implicou crise, desde março de 2020, sanitária e humanitária.

A decantada saúde privada, certamente, não foi ou é a principal responsável pelo enfrentamento da pandemia; mas sim o sistema público, o Sistema Único de Saúde (SUS). Apesar da estrutura sucateada sobretudo pelo neoliberalismo de regulação e austeridade (CLARK, CORRÊA, NASCIMENTO, 2020, p. 93), o trabalho heroico e humanitário dos profissionais do SUS foi o bastião de resistência para que o Brasil não agravasse, ainda mais, a tragédia.

A saúde como direito foi importante conquista da sociedade brasileira, estando diretamente associada à construção do Estado Democrático de Direito por meio da Constituição de 1988 (MENEZES; MORETTI; REIS, 2019, p. 59). Desta forma, o Estado brasileiro assumiu, a partir de 1988, a execução do Sistema Único de Saúde, encerrando o período no qual os serviços eram realizados de forma estrutural e excludente. Consoante Saldiva e Veras (2018), o acesso à saúde, antes do SUS, se dava por três vias: (i) pagamento pelo serviço particular via Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS); (ii) Sistemas de assistência à saúde sindicalizada; e (iii) Sistemas misericordiosos como Santas Casas, Hospitais-Escola ou entidades de caridade.

Todavia, o caráter humanitário e universal da saúde pública, garantidor da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil, conforme o art. 1º, III, da Constituição de 1988, se contrasta com a sua forma de efetivação. "A história do SUS é marcada pelo cons­tante desafio de prover financiamento público adequado para assegurar a garantia do direito constitucional à saúde" (MENEZES; MORETTI; REIS, 2019, p. 59), dado que a sua constituição ocorreu "em um contexto marcado pela ascensão da lógica neoliberal no Brasil e no mundo" (GUIDOLIN; DAVID; ROSSI, 2020, p. 7).

A incompatibilidade entre a realização dos direitos sociais, dependentes de atuação estatal e a inconstância financeira, devido às políticas econômicas (SOUZA, 2017, p. 24), realizadas a partir de meados dos anos 1990, introduziu o subfinanciamento da política pública de saúde da nação. Vejamos como, desde a Constituição de 1988 até o Novo Regime Fiscal e a pandemia de covid-19, o Estado brasileiro tem tratado o orçamento público para a saúde.

Pinto, Bahia e Santos (2016, p. 216) afirmam que o constituinte originário evidenciou a necessidade de se dividir os recursos da seguridade social, para permitir que as três áreas da seguridade – saúde, assistência e previdência – fossem financiadas de forma harmoniosa. Foi determinado, em 1988, no artigo 55 do Atos e Disposições Constitucionais Transitórios (ADCT), que 30% do orçamento da seguridade social, composto na forma do artigo 195 da Constituição de 1988, seria o quinhão da saúde.

Caso esta norma tivesse sido implementada de fato no país, em 2015, por exemplo, deveriam ser disponibilizados R$ 240.000.000.000,00 (duzentos e quarenta bilhões de reais) para a saúde, ao invés dos R$ 100.054.862.000,00 (cem bilhões cinquenta e quatro milhões oitocentos e sessenta e dois mil reais) efetivamente praticados (PINTO, BAHIA E SANTOS, 2016, p. 216). Entretanto, essa previsão normativa nunca se encontrou com a realidade.

Na década de 1990, objetivando o "ajuste macroeconômico", com contração do gasto social e desvinculação de parte das receitas advindas das contribuições sociais (UGÁ, 2006, p. 82), ocorreu redução de receitas do SUS. Nota-se que a Desvinculação das Receitas da União (DRU) para as contribuições sociais é passível de críticas, já que parcela dos recursos arrecadados em âmbito federal, que deveriam servir à materialização dos direitos sociais, passa a ser utilizada livremente em outros setores (juros da dívida pública).

Em 1998, a EC 20 incluiu o inciso XI no artigo 167 da Constituição de 1988, para vedar o uso das contribuições sociais de seguridade social (artigo 195 da Constituição de 1988), para a realização de despesas distintas do pagamento de benefícios do regime geral da previdência social. Criou-se, assim, o direcionamento de fonte específica para a previdência social, deixando as outras duas áreas da seguridade, a saúde e a assistência, desequilibradas em termos de custeio.

Em 2000, com a EC 29, o Estado, acenando favoravelmente à melhoria do SUS, estabeleceu o valor mínimo a ser aplicado em saúde, tornando obrigatório aos Estados membros e ao Distrito Federal a aplicação de, no mínimo, 12% de sua receita de impostos; vinculando, ainda, os Municípios a aplicarem, no mínimo, 15% da receita de impostos, e impondo à União o gasto do montante do ano anterior corrigido pela variação nominal do Produto Interno Bruto (PIB). A LC 141/12, que regulamentou a EC 29/00, apesar de tratar de questões estruturais, não abordou ampliação de recursos para o SUS, como era esperado que se fizesse (GUIDOLIN; DAVID; ROSSI, 2020, p. 9).

Ao longo da vigência da EC 29/00, o piso federal de gastos em ações e serviços públicos de saúde, definido pelo montante aplicado no ano anterior, corrigido pela variação nominal do PIB, não se relacionou com a progressividade da receita da União, ao longo dos anos, e "daí é que decorreria grande parte do problema de subfinanciamento crônico da saúde pública brasileira e da regressividade proporcional do gasto federal no setor" (PINTO; BAHIA; SANTOS, 2016, p. 217).

Em 2015, mais uma medida de redução orçamentária para a saúde: o orçamento impositivo, previsto pela EC 86/15. Piola, Benevides e Vieira (2018, p. 33) dissertam que a característica impositiva do orçamento permeia a obrigatoriedade de o governo federal executar as emendas parlamentares aprovadas para o orçamento anual, sendo que metade deste valor deveria ser destinado ao cômputo de gastos em saúde, perceba, sem o planejamento da União. Ademais, embora a EC 86/15 tenha expressado o piso federal para a área, este ficou aquém da proposta do Movimento Saúde + 10, como explica Pinto, Bahia e Santos (2016, p. 217-218), já que, se comparando a proposta do movimento, que sugeria fixação de 10% da Receita Corrente Bruta, apesar do maior percentual desta emenda, a alteração na base de cálculo, para a Receita Corrente Líquida, implicou diminuição dos recursos.

A previsão progressiva de receitas da EC 86/15, distante da realidade das despesas, também demonstra retrocesso orçamentário, ressaltado por Guidolin, David e Rossi (2020, p. 10), já que conforme dado expresso pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS, 2015, p.1), em 2014, os gastos com saúde foram financiados com 14,38% da Receita Corrente Líquida do ano, ou seja, a previsão de 13,2% da Receita Corrente Líquida para 2016 representaria contração no orçamento da saúde, que seria prejudicado pela diminuição da arrecadação dada a conjuntura de crise.

Além da política de subfinanciamento federal, que ignora a realidade do SUS, outro embaraço é a consideração, na prática, do piso como teto. Segundo o Conselho Nacional de Saúde (2015, p. 1), "A redução de recursos projetada poderá superar R$ 9,0 bilhões em 2016, se a lógica PISO=TETO for mantida, em comparação à regra de cálculo vigente até o final de 2015, baseada na variação nominal do Produto Interno Bruto (PIB), sobre o valor empenhado".

A EC 86/15 revelou o início da política neoliberal de austeridade no campo do SUS e foi severamente agravada com a EC 95/16, o Novo Regime Fiscal, que congelou, por vinte anos, as despesas primárias da União; despesas essas que incluem o financiamento para a saúde, tendo por referência 15% da Receita Corrente Líquida de 2017 até 2036. Todavia, o pagamento de juros da dívida pública, seguindo a lógica neoliberal de austeridade, não é abarcado por esta limitação.

O Novo Regime Fiscal ignora, dentre outros fatores: as necessidades de saúde da população, o impacto do crescimento populacional, a transição demográfica, a expansão da rede pública, a necessidade da incorporação tecnológica, a modernização e os custos da mudança de perfil assistencial (MENEZES; MORETTI; REIS, 2019, p. 63) e os possíveis aumentos arrecadatórios do Estado, nos próximos vinte anos. Obviamente, a situação de desmonte se revelou cruel durante a pandemia de Covid-19, dificultando a resposta célere e contundente do SUS.

A EC 95/16 retirou, entre 2018 e 2019, R$ 17,6 bilhões, que, somados à estimativa da perda de 2020, totaliza R$ 22,5 bilhões a menos para a materialização do direito à saúde. Se a conta se estender até 2008, são R$ 42,5 bilhões retirados da assistência à população (SANTOS, 2021, p. 2-3).

O atual cenário reverbera o desfinanciamento da política pública de saúde. O Novo Regime Fiscal, que congela e desvincula o orçamento da receita atual da nação e das despesas do sistema, impondo as políticas de austeridade, fere o texto constitucional (NOCE, CLARK, 2017, p. 1239), pois cria obstáculo econômico à Constituição de 1988 e à real consolidação do Estado Democrático de Direito, baixando sua efetividade e imobilizando a sistemática do SUS, notável instrumento de concretude de direito fundamental. É exemplo, conforme Clark, Corrêa e Nascimento (2020, p. 68), do que se denomina bloqueio institucional.

Bloqueio institucional das normas constitucionais, via supressão do texto constitucional, o Novo Regime Fiscal, de caráter neoliberal de austeridade, destina-se ao aumento do superávit primário da União e à redução dos investimentos estatais em serviços públicos, dentre outros, como é o caso da saúde, impondo, assim, o teto de gasto público e objetivando o pagamento da dívida pública nacional sem qualquer auditoria ou a fixação de limites orçamentários de pagamento. (CLARK, CORRÊA, NASCIMENTO, 2020, p. 69).

A drástica e constante redução de receitas para custeio de serviços públicos não é descumprimento formal da norma constitucional, ao contrário, "O subfinanciamento crônico da saúde pública brasileira implica violação aos princípios da vedação de proteção insuficiente e vedação de retrocesso" (PINTO, BAHIA E SANTOS, 2016, p. 223). Ofende-se o princípio da dignidade da pessoa humana e desrespeita-se o Estado Democrático de Direito.

Quando a pandemia bateu à porta, as mazelas do SUS ficaram expostas e vários motivos começaram a se inflar no meio social e político, contudo, antes de se vincular a problemática da regulamentação da política pública ou a necessidade de privatização, delineada pelos neoliberais, destaca-se o esvaziamento do orçamento público para o financiamento de uma política social constitucional em uma nação historicamente desigual.

Nem mesmo o orçamento de guerra (EC 106/20), que disponibilizou R$ 44,1 bilhões de reais para o enfrentamento da pandemia (SERVO, SANTOS, VIEIRA, BENEVIDES, 2020, p. 121), foi suficiente para alterar o quadro de contágio e morte por covid-19. Após anos de desmonte do sistema de saúde, os recursos apenas remediaram a situação emergencial. Os problemas estruturais, persistem.

Apesar da estrutura deficitária por anos de desmantelamento, o SUS resiste com serviços em todo o país: 5.570 municípios, 26 estados, e Distrito Federal; prestando serviços de vigilância sanitária, odontologia, epidemiologia, saúde indígena, com bilhões de procedimentos anuais, sistema de transplante, disponibilização de medicamentos, além de sistema de imunização coletiva (SANTOS, 2021, p. 2).

A solução para a controvérsia entre a essencialidade do SUS e a sua precarização, permeia, a priori, a efetivação da política pública de saúde conforme os ditames constitucionais com o adequado financiamento do SUS. Corolariamente, impõe-se a declaração de inconstitucionalidade do Novo Regime Fiscal (LELIS, 2017, p. 152), pois este inviabiliza o cumprimento dos direitos sociais fundamentais.

É chegado o momento de o SUS ser valorizado pelo direito que materializa: a proteção da vida humana. Assim sendo, o serviço deve ser intensificado na mesma proporção das necessidades de saúde das pessoas, como cumprimento de um dos direitos humanos basilares. Diante da crise sanitária e humanitária atual, a pergunta que resta a ser feita é uma só: sem o SUS, antes, durante ou após a pandemia da covid-19, qual seria o quadro de saúde no Brasil?

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BRASIL. Conselho Nacional de Saúde (CNS). O atual quadro de subfinanciamento do Sistema Único de Saúde (SUS) no contexto da Emenda Constitucional no 86/2015 e do ajuste fiscal. Anais do Seminário CNS/COFIN no 11º Congresso da Associação Brasileira de Saúde Coletiva - Documento Final - 28 de Julho de 2015. Brasília: CNS, 2015. Disponível aqui. Acesso em: 15 maio 2021.

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BRASIL. Emenda Constitucional nº 86, de 17 de março de 2015. Altera os arts. 165, 166 e 198 da Constituição Federal, para tornar obrigatória a execução da programação orçamentária que especifica. Diário Oficial de União, Brasília: Câmara dos Deputados e Senado. 2015. Disponível aqui. Acesso em: 03 maio 2021.

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Giovani Clark
Doutor em Direito Econômico pela UFMG. Professor da PUC Minas e Docente da Graduação da Faculdade de Direito da UFMG.

Davi Augusto Santana de Lelis
Doutor em Direito Público pela PUC Minas. Professor de Direito Econômico da Universidade Federal de Viçosa.

Danyele da Silva Machado
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Direito da PUC Minas. Bolsista CAPES/PROEX. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

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