Décadas de descaso com a saúde pública brasileira resultaram em ausência de leitos, exames, remédios, respiradores, tubos de oxigênio e falta de profissionais; problemas estes escancarados pela pandemia de covid-19, que implicou crise, desde março de 2020, sanitária e humanitária.
A decantada saúde privada, certamente, não foi ou é a principal responsável pelo enfrentamento da pandemia; mas sim o sistema público, o Sistema Único de Saúde (SUS). Apesar da estrutura sucateada sobretudo pelo neoliberalismo de regulação e austeridade (CLARK, CORRÊA, NASCIMENTO, 2020, p. 93), o trabalho heroico e humanitário dos profissionais do SUS foi o bastião de resistência para que o Brasil não agravasse, ainda mais, a tragédia.
A saúde como direito foi importante conquista da sociedade brasileira, estando diretamente associada à construção do Estado Democrático de Direito por meio da Constituição de 1988 (MENEZES; MORETTI; REIS, 2019, p. 59). Desta forma, o Estado brasileiro assumiu, a partir de 1988, a execução do Sistema Único de Saúde, encerrando o período no qual os serviços eram realizados de forma estrutural e excludente. Consoante Saldiva e Veras (2018), o acesso à saúde, antes do SUS, se dava por três vias: (i) pagamento pelo serviço particular via Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS); (ii) Sistemas de assistência à saúde sindicalizada; e (iii) Sistemas misericordiosos como Santas Casas, Hospitais-Escola ou entidades de caridade.
Todavia, o caráter humanitário e universal da saúde pública, garantidor da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil, conforme o art. 1º, III, da Constituição de 1988, se contrasta com a sua forma de efetivação. "A história do SUS é marcada pelo constante desafio de prover financiamento público adequado para assegurar a garantia do direito constitucional à saúde" (MENEZES; MORETTI; REIS, 2019, p. 59), dado que a sua constituição ocorreu "em um contexto marcado pela ascensão da lógica neoliberal no Brasil e no mundo" (GUIDOLIN; DAVID; ROSSI, 2020, p. 7).
A incompatibilidade entre a realização dos direitos sociais, dependentes de atuação estatal e a inconstância financeira, devido às políticas econômicas (SOUZA, 2017, p. 24), realizadas a partir de meados dos anos 1990, introduziu o subfinanciamento da política pública de saúde da nação. Vejamos como, desde a Constituição de 1988 até o Novo Regime Fiscal e a pandemia de covid-19, o Estado brasileiro tem tratado o orçamento público para a saúde.
Pinto, Bahia e Santos (2016, p. 216) afirmam que o constituinte originário evidenciou a necessidade de se dividir os recursos da seguridade social, para permitir que as três áreas da seguridade – saúde, assistência e previdência – fossem financiadas de forma harmoniosa. Foi determinado, em 1988, no artigo 55 do Atos e Disposições Constitucionais Transitórios (ADCT), que 30% do orçamento da seguridade social, composto na forma do artigo 195 da Constituição de 1988, seria o quinhão da saúde.
Caso esta norma tivesse sido implementada de fato no país, em 2015, por exemplo, deveriam ser disponibilizados R$ 240.000.000.000,00 (duzentos e quarenta bilhões de reais) para a saúde, ao invés dos R$ 100.054.862.000,00 (cem bilhões cinquenta e quatro milhões oitocentos e sessenta e dois mil reais) efetivamente praticados (PINTO, BAHIA E SANTOS, 2016, p. 216). Entretanto, essa previsão normativa nunca se encontrou com a realidade.
Na década de 1990, objetivando o "ajuste macroeconômico", com contração do gasto social e desvinculação de parte das receitas advindas das contribuições sociais (UGÁ, 2006, p. 82), ocorreu redução de receitas do SUS. Nota-se que a Desvinculação das Receitas da União (DRU) para as contribuições sociais é passível de críticas, já que parcela dos recursos arrecadados em âmbito federal, que deveriam servir à materialização dos direitos sociais, passa a ser utilizada livremente em outros setores (juros da dívida pública).
Em 1998, a EC 20 incluiu o inciso XI no artigo 167 da Constituição de 1988, para vedar o uso das contribuições sociais de seguridade social (artigo 195 da Constituição de 1988), para a realização de despesas distintas do pagamento de benefícios do regime geral da previdência social. Criou-se, assim, o direcionamento de fonte específica para a previdência social, deixando as outras duas áreas da seguridade, a saúde e a assistência, desequilibradas em termos de custeio.
Em 2000, com a EC 29, o Estado, acenando favoravelmente à melhoria do SUS, estabeleceu o valor mínimo a ser aplicado em saúde, tornando obrigatório aos Estados membros e ao Distrito Federal a aplicação de, no mínimo, 12% de sua receita de impostos; vinculando, ainda, os Municípios a aplicarem, no mínimo, 15% da receita de impostos, e impondo à União o gasto do montante do ano anterior corrigido pela variação nominal do Produto Interno Bruto (PIB). A LC 141/12, que regulamentou a EC 29/00, apesar de tratar de questões estruturais, não abordou ampliação de recursos para o SUS, como era esperado que se fizesse (GUIDOLIN; DAVID; ROSSI, 2020, p. 9).
Ao longo da vigência da EC 29/00, o piso federal de gastos em ações e serviços públicos de saúde, definido pelo montante aplicado no ano anterior, corrigido pela variação nominal do PIB, não se relacionou com a progressividade da receita da União, ao longo dos anos, e "daí é que decorreria grande parte do problema de subfinanciamento crônico da saúde pública brasileira e da regressividade proporcional do gasto federal no setor" (PINTO; BAHIA; SANTOS, 2016, p. 217).
Em 2015, mais uma medida de redução orçamentária para a saúde: o orçamento impositivo, previsto pela EC 86/15. Piola, Benevides e Vieira (2018, p. 33) dissertam que a característica impositiva do orçamento permeia a obrigatoriedade de o governo federal executar as emendas parlamentares aprovadas para o orçamento anual, sendo que metade deste valor deveria ser destinado ao cômputo de gastos em saúde, perceba, sem o planejamento da União. Ademais, embora a EC 86/15 tenha expressado o piso federal para a área, este ficou aquém da proposta do Movimento Saúde + 10, como explica Pinto, Bahia e Santos (2016, p. 217-218), já que, se comparando a proposta do movimento, que sugeria fixação de 10% da Receita Corrente Bruta, apesar do maior percentual desta emenda, a alteração na base de cálculo, para a Receita Corrente Líquida, implicou diminuição dos recursos.
A previsão progressiva de receitas da EC 86/15, distante da realidade das despesas, também demonstra retrocesso orçamentário, ressaltado por Guidolin, David e Rossi (2020, p. 10), já que conforme dado expresso pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS, 2015, p.1), em 2014, os gastos com saúde foram financiados com 14,38% da Receita Corrente Líquida do ano, ou seja, a previsão de 13,2% da Receita Corrente Líquida para 2016 representaria contração no orçamento da saúde, que seria prejudicado pela diminuição da arrecadação dada a conjuntura de crise.
Além da política de subfinanciamento federal, que ignora a realidade do SUS, outro embaraço é a consideração, na prática, do piso como teto. Segundo o Conselho Nacional de Saúde (2015, p. 1), "A redução de recursos projetada poderá superar R$ 9,0 bilhões em 2016, se a lógica PISO=TETO for mantida, em comparação à regra de cálculo vigente até o final de 2015, baseada na variação nominal do Produto Interno Bruto (PIB), sobre o valor empenhado".
A EC 86/15 revelou o início da política neoliberal de austeridade no campo do SUS e foi severamente agravada com a EC 95/16, o Novo Regime Fiscal, que congelou, por vinte anos, as despesas primárias da União; despesas essas que incluem o financiamento para a saúde, tendo por referência 15% da Receita Corrente Líquida de 2017 até 2036. Todavia, o pagamento de juros da dívida pública, seguindo a lógica neoliberal de austeridade, não é abarcado por esta limitação.
O Novo Regime Fiscal ignora, dentre outros fatores: as necessidades de saúde da população, o impacto do crescimento populacional, a transição demográfica, a expansão da rede pública, a necessidade da incorporação tecnológica, a modernização e os custos da mudança de perfil assistencial (MENEZES; MORETTI; REIS, 2019, p. 63) e os possíveis aumentos arrecadatórios do Estado, nos próximos vinte anos. Obviamente, a situação de desmonte se revelou cruel durante a pandemia de Covid-19, dificultando a resposta célere e contundente do SUS.
A EC 95/16 retirou, entre 2018 e 2019, R$ 17,6 bilhões, que, somados à estimativa da perda de 2020, totaliza R$ 22,5 bilhões a menos para a materialização do direito à saúde. Se a conta se estender até 2008, são R$ 42,5 bilhões retirados da assistência à população (SANTOS, 2021, p. 2-3).
O atual cenário reverbera o desfinanciamento da política pública de saúde. O Novo Regime Fiscal, que congela e desvincula o orçamento da receita atual da nação e das despesas do sistema, impondo as políticas de austeridade, fere o texto constitucional (NOCE, CLARK, 2017, p. 1239), pois cria obstáculo econômico à Constituição de 1988 e à real consolidação do Estado Democrático de Direito, baixando sua efetividade e imobilizando a sistemática do SUS, notável instrumento de concretude de direito fundamental. É exemplo, conforme Clark, Corrêa e Nascimento (2020, p. 68), do que se denomina bloqueio institucional.
Bloqueio institucional das normas constitucionais, via supressão do texto constitucional, o Novo Regime Fiscal, de caráter neoliberal de austeridade, destina-se ao aumento do superávit primário da União e à redução dos investimentos estatais em serviços públicos, dentre outros, como é o caso da saúde, impondo, assim, o teto de gasto público e objetivando o pagamento da dívida pública nacional sem qualquer auditoria ou a fixação de limites orçamentários de pagamento. (CLARK, CORRÊA, NASCIMENTO, 2020, p. 69).
A drástica e constante redução de receitas para custeio de serviços públicos não é descumprimento formal da norma constitucional, ao contrário, "O subfinanciamento crônico da saúde pública brasileira implica violação aos princípios da vedação de proteção insuficiente e vedação de retrocesso" (PINTO, BAHIA E SANTOS, 2016, p. 223). Ofende-se o princípio da dignidade da pessoa humana e desrespeita-se o Estado Democrático de Direito.
Quando a pandemia bateu à porta, as mazelas do SUS ficaram expostas e vários motivos começaram a se inflar no meio social e político, contudo, antes de se vincular a problemática da regulamentação da política pública ou a necessidade de privatização, delineada pelos neoliberais, destaca-se o esvaziamento do orçamento público para o financiamento de uma política social constitucional em uma nação historicamente desigual.
Nem mesmo o orçamento de guerra (EC 106/20), que disponibilizou R$ 44,1 bilhões de reais para o enfrentamento da pandemia (SERVO, SANTOS, VIEIRA, BENEVIDES, 2020, p. 121), foi suficiente para alterar o quadro de contágio e morte por covid-19. Após anos de desmonte do sistema de saúde, os recursos apenas remediaram a situação emergencial. Os problemas estruturais, persistem.
Apesar da estrutura deficitária por anos de desmantelamento, o SUS resiste com serviços em todo o país: 5.570 municípios, 26 estados, e Distrito Federal; prestando serviços de vigilância sanitária, odontologia, epidemiologia, saúde indígena, com bilhões de procedimentos anuais, sistema de transplante, disponibilização de medicamentos, além de sistema de imunização coletiva (SANTOS, 2021, p. 2).
A solução para a controvérsia entre a essencialidade do SUS e a sua precarização, permeia, a priori, a efetivação da política pública de saúde conforme os ditames constitucionais com o adequado financiamento do SUS. Corolariamente, impõe-se a declaração de inconstitucionalidade do Novo Regime Fiscal (LELIS, 2017, p. 152), pois este inviabiliza o cumprimento dos direitos sociais fundamentais.
É chegado o momento de o SUS ser valorizado pelo direito que materializa: a proteção da vida humana. Assim sendo, o serviço deve ser intensificado na mesma proporção das necessidades de saúde das pessoas, como cumprimento de um dos direitos humanos basilares. Diante da crise sanitária e humanitária atual, a pergunta que resta a ser feita é uma só: sem o SUS, antes, durante ou após a pandemia da covid-19, qual seria o quadro de saúde no Brasil?
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