Migalhas de Peso

Aprendendo durante a pandemia (e notas sobre a função social da universidade)

A pandemia de covid-19 impôs novos desafios ao ensino. Mas além destes, há também velhos desafios que merecem ser superados em prol de uma educação mais democrática.

14/7/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Na contemporaneidade, o conhecimento não é escasso. Nem é escasso o acesso ao conhecimento. Multiplicam-se em uma velocidade assombrosa novas invenções, conquistas, obras artísticas, enfim: toda sorte de informação encontra-se disponível a um clique de distância (embora, é claro, o acesso ao conhecimento possa ser obstaculizado conforme o grau de poder aquisitivo e técnico do indivíduo, mas esta é uma reflexão a ser esmiuçada noutra oportunidade).

Ocorre que a não-escassez de informação faz nascer um problema que já é perceptível: há o excesso de desinformação e a dificuldade difusa de navegar de forma confiável em meio a fatos e factoides.

Essa conjuntura do mundo interligado faz nascer para diversos setores da sociedade uma responsabilidade redobrada em defender a verdade. Dentre estes setores, destaca-se o papel das universidades.

As universidades são instituições milenares cujas raízes, no mundo ocidental, remontam ao período em que Platão exerceu seu magistério. São lugares onde o saber é lapidado e partilhado: estudantes entram em busca de colocação no mercado de trabalho, professores passam a frente as lições adquiridas a custo de muito suor e pesquisadores (discentes e docentes) aperfeiçoam hipóteses e práticas em prol do bem comum.

No mundo sob a égide do "novo normal", inaugurado pela crise imposta pela pandemia de coronavírus, o ensino e a pesquisa sofreram um forte golpe. A necessidade de distanciamento social impôs severos prejuízos às atividades de mestres e alunos, que tiveram que se reinventar.

Dentre as soluções encontradas, a que se destacou foi a realização de aulas e exposições orais mediante videoconferências online. Substituímos a sala pela webcam. A "inovação" trouxe benesses como malefícios. Por um lado, cursos de graduação e pós graduação que antes estavam restritos a determinada localização tornaram-se acessíveis para estudantes de diferentes localidades que, sem sair de casa, podem desfrutar do ensino que outrora estava restrito e concentrado nos grandes centros urbanos. Esta é, sem sombra de dúvidas, uma das maiores conquistas desse período. Por outro lado, a ausência de "co-ocupação" de professores e alunos num mesmo ambiente (a sala de aula), faz surgir um aparente esfriamento da relação de ensino. A distância física, se não bem trabalhada, torna-se em distância discursiva: professores fingem que falam e estudantes fingem que ouvem.

Enquanto estudante que vive a realidade do ensino à distância como forma de desviar da crise sanitária global, acredito que o período que vivemos (transitório e breve de um fim, assim espero e torço) exige dos dois polos da relação de ensino uma dose extra de empatia. Fomos surpreendidos por uma mudança nos modos de viver e fazer que exigiu, da noite para o dia, a adoção de práticas e hábitos que antes eram a exceção. O lar, antes espaço de descanso e recolhimento, passou a ser também ambiente de trabalho e estudo. Muitos que não tinham um espaço reservado para realização de seu ofício, seja este acadêmico ou não, tiveram que improvisar mesas de estudo e de labor como forma de seguir vivendo. Dificuldades técnicas como internet de boa qualidade, equipamentos de informática adequados, dentre outros elementos estruturais, na grande maioria dos casos, tiveram que ser arcados a custa do próprio bolso do cidadão.

Portanto, todos, alunos e professores, vivem as mesmas restrições e mazelas, tendo o polo destas invertido apenas pelas posições que ocupam dentro da relação de ensino-aprendizagem.

Contudo, para além das dificuldades conjunturais do mundo pandêmico, cumpre destacar uma que há muito aflige as universidades e retira destas o seu papel de difusoras do saber, sobretudo nas faculdades de direito.

Se, por um lado, o "home study" democratizou o ensino por possibilitar a coexistência de alunos de diferentes regiões num mesmo corpo discente, por outro, a democratização do ensino é mitigada, quando não vulnerada por completo, por práticas e hábitos anacrônicos que servem tão somente para tornar da academia um espaço de elite.

Há um apreço injustificável por parcela significativa de professores e acadêmicos por uma linguagem rebuscada, floreada e pomposa que não atende às necessidades de compartilhamento do saber: se presta tão somente ao prestígio do ego cristalizado em títulos e em currículos extensos no CNPQ-Lattes.

Essa prática é ainda mais grave nas faculdades de direito. Juristas são habitualmente uma categoria profissional afeiçoada ao uso do vernáculo e das liturgias que são, sim, necessárias em muitos momentos do labor jurídico, mas que, quando exercidas fora do ambiente estritamente necessário ao fazer profissional, convertem-se em rituais e discursos desprovidos de sentido, necessidade e função.

Não se está a negar a necessidade de linguagem compatível com a dignidade da cátedra. Esta merece respeito e reverência. Mas a cátedra não é – nem pode – ser transformada num Olimpo terreno.

O ensino e o conhecimento deveriam ser democráticos e acessíveis. Mestres, doutores, pós-doutores, enfim, que não saibam transmitir o saber na forma de nascente cristalina, não exercem seu mister da forma adequada.

Consoante a lição de Karl Popper:

"Todo intelectual tem uma responsabilidade muito especial. Tem o privilégio e a oportunidade de estudar. Em troca, deve apresentar a seus congêneres (ou à 'sociedade') os resultados de seu estudo o mais simples, claro e modestamente que possa. O pior que podem fazer os intelectuais – o pecado cardeal – é intentar estabelecer-se como grandes profetas em relação aos seus congêneres e impressionar-lhes com filosofias desconcertantes. Qualquer um que não saiba falar de forma simples e com clareza não deveria dizer nada e continuar trabalhando até que possa fazê-lo."

Karl Popper, En Busca de un mundo mejor, p 114, citado por José Renato Nalini, Ética Geral e Profissional, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2016, p 64.

Victor Matos
Servidor público. Ator e escritor.

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