Migalhas de Peso

A lei de licitações que não precisamos

Simplificar a atuação de servidores e particulares, baratear o custo dos negócios e permitir que as diferenças regionais tenham normas locais são pontos que deveriam ser atribuídos à nova lei.

14/7/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

O ano era 1993. O Brasil havia acabado de passar por um doloroso processo de impeachment do primeiro presidente da República eleito diretamente pelo povo desde 1960. Cinco anos antes, havia sido promulgada a nossa atual Constituição, após duas décadas de regime militar. Foi nesse contexto histórico que surgiu a primeira lei específica a reger as Licitações e Contratos Administrativos no país, 8.666. Antes disso, a matéria foi disciplinada por dois decretos-leis, um de 1967 e outro de 1986.

À época, viu-se a necessidade de burocratizar a Administração Pública, no sentido de profissionalizá-la, segregando e especializando as funções do agente público. Buscou-se, também, reduzir ao máximo a zona de livre decisão dos servidores, com a finalidade de garantir na maior medida possível a objetividade dos julgamentos.

O resultado foi o nascimento de uma lei intrincada, de difícil compreensão, extensa e muito, muito minuciosa, com foco nos meios e não nos fins. A despeito da pretensão de se instituir uma lei geral, pouco ou nenhum espaço se abriu para que estados e municípios editassem seus próprios regulamentos sobre licitações e contratos administrativos.

Apesar de muitos avanços, a aplicação da lei 8.666 surtiu efeitos indesejados, como insegurança jurídica, aquisições de má-qualidade, dificuldade de planejamento, pouco ou nenhum incentivo à capacitação de servidores, judicialização em excesso e corrupção.

Com a chegada do novo século, a edição de uma nova lei de licitações e contratos administrativos tornou-se uma necessidade relevante para a modernização da Administração Pública, principalmente a fim de aprimorar instrumentos de controle, garantir mais segurança a quem contrata e a quem é contratado e melhorar a qualidade das aquisições públicas.

Em 1º de abril de 2021, foi sancionada a lei 14.133, que, daqui dois anos, será a única a reger as licitações e contratações públicas no Brasil. Até lá, ela coexistirá com a lei 8.666.

De fato, a nova legislação contém vários pontos positivos, especialmente ao focar na essencialidade do planejamento das contratações e dos documentos a serem elaborados antes da abertura da disputa propriamente dita. A ideia é que na chamada fase preparatória da licitação estejam explicitados todos os aspectos que justificam aquela contratação, desde os motivos da aquisição em si até dos porquês de ser aquele determinado objeto ou serviço. E tudo isso há de ser feito em conformidade com indicadores e experiências anteriores da própria Administração Pública. Com isso, tende-se à melhoria das aquisições do setor público.

Contudo, a nova lei repete erros do passado, ao imiscuir-se em pormenores incompatíveis com o caráter geral da norma. São nada menos que 194 artigos, mais de 400 parágrafos, 660 incisos e 170 alíneas. Somente denominações, são sessenta. Nesse sentido, a lei peca por complicar onde poderia simplificar e por desprestigiar o caráter federativo do Estado brasileiro.

Infelizmente, não será nem um pouco fácil aos agentes públicos e aos particulares conhecerem adequadamente, no prazo necessário, todas as determinações da lei 14.133/21. A insegurança jurídica permeará durante muito tempo as compras públicas, mantendo o Brasil preso às amarras da excessiva judicialização e dos controles improdutivos.

A lei de licitações de âmbito nacional que efetivamente precisamos deve simplificar a atuação de servidores e particulares, garantir-lhes segurança quanto às suas atribuições, baratear o custo dos negócios e permitir que as diferenças regionais se reflitam em normas locais específicas.

Com a nova lei já em vigor, resta-nos torcer para que a sua interpretação se dê em vista dessas finalidades. Afinal, o ano é 2021 e tudo o que o Brasil não precisa é manter-se acorrentado a pensamentos do século passado. O tempo e os intérpretes da lei dirão aonde chegaremos.

Gabriel Senra da Cunha Pereira
Advogado no escritório Cunha Pereira & Massara Advogados, professor e mestre em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).

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