Migalhas de Peso

CPI da Covid: defesa da vida e da democracia

Sabotagem às perspectivas vacinais e a estratégia morticida da imunidade de rebanho: sob os escombros do caos, a corrupção.

14/7/2021

(Imagem: Divulgação)

Em texto anterior (“CPI da covid: defesa da vida e da democracia”), a comissão completando um mês de trabalhos, já se distinguia, avultado, um prestimoso papel: sistematizar as informações, a cronologia, os contextos; individualizar personagens... Atores e plateia da tragédia, ali assistíamos ao próprio filme.

O segundo mês saltou de patamar. E foi longe.

No giro inicial: mais um banho de luz na já óbvia estratégia palaciana em busca da “imunidade natural de rebanho”.

A opção pelo morticínio estava definitivamente desnudada: começamos a entender com maior nitidez porque diabos aquela “chuva” deveria molhar a muitos, 70%, que não poderíamos ser “maricas” e, sim, tínhamos que enfrentar a “gripezinha”, com pouca máscara e muita aglomeração. Vacina era para os covardes. Nós, os fortes, tomamos banho de esgoto e não “pegamos nada”.

As mensagens e comportamentos públicos de agentes do governo central, em especial do chefe da Nação, tais como cronologicamente resgatadas pela CPI, fizeram emergir tabuadas ocultas, assim “precificadas”: dada a taxa de letalidade (acima de 3% em face da subnotificação dos casos), considerando a contaminação populacional esperada, o governo central sempre trabalhou com perda de vidas na ordem do milhão. E quanto mais rápido melhor; pouco importava o estouro da capacidade do sistema de saúde. A ideia posta era a de que os sobreviventes, mesmo enlutados, em meio ao temporário caos, poderiam acelerar a sagrada “retomada” econômica. Sem contar o “desafogo” quantitativo de benefícios previdenciários (sim, isso foi celebrado por técnico da equipe econômica!).

O resultado, por ora, todos estamos vendo: no comparativo global, nem vigor na economia, muito menos proteção à vida.

Não bastasse essa opção morticida, havia um propósito subjacente que seguia oculto...

Bem delineada – à luz de depoimentos de técnicos – a estratégia da imunização do gado, observava-se um padrão negativo no comportamento governamental em relação às vacinas. E positivo em relação a placebos, simpatias e outras “hidroxicharlatinas”.

Quanto aos imunizantes, o propalado risco à mutação “lacoste”, bem sintetizou a repulsa negacionista inicial à vacinação. Não suportando a pressão interna, perda de popularidade, vexame e cobranças externas, o governo central mudou o bizarro discurso. Mas só o discurso.

Ao destrinchar suas ações e omissões, a CPI detectou com clareza o desdém palaciano para aquisição de imunizantes: dezenas de e-mails assanhados da “Pi-faizer” que, mesmo se oferecendo a desfrute, nunca foram correspondidos; compra mínima em consórcio mundial; “pra quê tanta ansiedade”; Vachina; etc.

No episódio da Pfizer delineia-se um “spoiler” do propósito subjacente ao engenhado caos: um grupo de autoridades “influentes” de outras áreas (como disse o CEO da empresa), em clara prospecção, dá início a uma estranha negociação paralela. “Alguns dólares poderiam ser poupados”, disse uma dessas autoridades à Revista Veja. Mais velho do que andar para frente, é notório que nesse tipo de “injunção paralela”, a suposta economia de alguns dólares, bem peneirada numa complexa contabilidade internacional, quase nunca é inteiramente repassada aos cofres da viúva. Se é que de fato algo, ao cabo, é “poupado”. Que tal uma continha rápida? 01 (um) dólar por dose de vacina que, por um desses atalhos da vida, termine se aninhando no bolso de um “intermediário”, um agente paralelo, significaria, no caso da Pfizer, nada menos que 70 milhões de dólares...

E ali se insinuava uma baita guinada no “script”. E o cheiro podre de corrupção...

O caos oferece a distração ideal à boa e velha rapinagem. Tragédia humana, desinformação, emergência sanitária, clima conflagrado entre as instituições e entes federados, denúncias pontuais de malversações locais, opacidade nas esferas de responsabilidades...

E eis que a Covaxin adentra apoteoticamente ao palco!

Após repercussão na mídia de denúncia feita pelos irmãos “Luís Miranda” ao Ministério Público, eles depõem à CPI e apresentam documentos e relatos apontando erros, pressões espúrias e ilegalidades no procedimento de contratação da vacina indiana Covaxin, cuja ordem de compra, segundo o jornal O Estado de São Paulo, foi pessoalmente informada pelo Presidente Jair Bolsonaro a seu par indiano ainda no início de janeiro de 2021.

De fato, o governo federal, via Ministério da Saúde, assinara contrato de compra com a empresa indiana, por valor superior às demais fornecedoras. E sem qualquer lastro normativo, já que o imunizante não fora submetido à avaliação da ANVISA.

A Covaxin, nunca teve certificação na ANVISA; sua eficácia e valor seguem questionados até mesmo na Índia, inclusive recusada em países mais desenvolvidos, fato, aliás, que teria sido alertado pelo embaixador do Brasil naquele país. Para legitimar essa compra já contratada (e seu ga$to), o deputado Ricardo Barros, líder do governo, segundo se apurou, incluiu na undécima hora emenda à Medida Provisória 1.026/21 (hoje convertida em Lei), de modo a possibilitar que a ANVISA autorizasse excepcional e temporariamente também as vacinas aprovadas pela congênere indiana, e não somente pelas 5 originariamente cogitadas (Europa, EUA, Japão, China e Reino Unido).

Foram levantados pela mídia e pela CPI alguns pontos alaranjadamente  sinistros: i) a compra dessa vacina, diferentemente das outras, foi intermediada por uma empresa nacional, a Precisa Medicamentos; ii) o deputado Ricardo Barros seria corréu em ação de improbidade com a sócia dessa mesma empresa; iii) um filho presidencial participa de reunião no BNDES acompanhando o dono da empresa Precisa.

E no destrinchar do caso, segundo depoimentos à CPI:

i- Assinado o contrato de compra da vacina, o depoente Luís Ricardo Miranda, servidor público concursado do MS, verifica a ocorrência de inconsistências no documento “invoice”, claramente deliberadas, que, ao contrário do avençado, previa pagamento adiantado a uma empresa totalmente estranha ao contrato. E sofre pressões de seus superiores para fazer “vista grossa” e, assim, viabilizar o pagamento.

ii- O irmão do servidor público, deputado federal Luís Miranda, da base do governo, obtém audiência presencial com o Presidente da República em março de 2021 e o informa da fraude.

iii- O Presidente, segundo os depoentes, afirma que isso é “coisa do deputado federal Ricardo Barros [seu líder na Câmara], e que se mexer nisso vai dar merda”, mas diz que vai acionar imediatamente o Diretor Geral da Polícia Federal.

iv- O Presidente, contudo, não aciona a PF e o contrato continua ativo, não sendo adotada qualquer providência quanto a Barros. A não ser a nomeação de sua mulher algumas semanas depois para o Conselho de Itaipu (salário de 27 mil reais)...

Em suma, segundo foi dito, o desvio de mais de 200 milhões de reais, cujo destino seria uma “offshore” sediada em Cingapura, somente não se consumou porque o servidor concursado se recusava a chancelar a operação, mesmo sofrendo forte pressão e assédio de seus superiores para aboná-la e assim propiciar o pagamento. Sua chefa imediata, aliás, fora colocada no cargo em 2018, pelo mesmo Dep. Barros, então Ministro da Saúde no governo Temer.

Com o imbróglio vindo a público, o governo, enfim, determina uma investigação. Qual o objeto? Apurar o ato do servidor que evitou a dilapidação do erário; Luís Ricardo, então, passa a responder a processo disciplinar...

Resumo da ópera: o mesmo governo que postergou sistematicamente a aquisição de vacinas com eficácia comprovada por cerca de R$15,00, atropelou as formalidades legais para adquirir (ou melhor, para pagar!) uma vacina de qualidade duvidosa, não certificada aqui e em vários locais do mundo, por um preço 5 vezes mais salgado.

Em meio a tudo isso, mais de 500 mil brasileiros já se foram sem a vacina no braço.

Parece que nunca foi pela vida. Sempre foi pela grana.

Pela vida!

Paulo Calmon Nogueira da Gama
Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio, Desembargador do TJMG, ex-Procurador de Justiça.

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