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A vedação do exercício de atividade empresarial para os médicos e médicas servidores públicos federais

Limitações impostas pela lei 8.112/90 ao acúmulo de cargo público federal com a participação no quadro societário de empresa privada: uma interpretação sobre os cargos públicos de médicos(as).

12/7/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Prática bastante comum no exercício da medicina no contexto brasileiro é a prestação de plantões médicos através da constituição e/ou participação do médico(a) em pessoa jurídica de direito privado, as famosas "PJs" (sic).

Neste contexto, é bastante comum na prática médica o acúmulo de cargos e empregos por parte dos médicos e médicas inscritos e ativos no país, o que ocorre de forma multifacetada e diversa. Há inúmeros profissionais da área que acumulam mais de um emprego, em diferentes Instituições, inclusive em Instituições públicas e privadas.

No ano de 2007, através de pesquisa elaborada pelo Datafolha, foi levantado que 38% dos médicos paulistas exerciam a profissão por meio de uma pessoa jurídica. Em 2018, segundo a Associação Paulista de Medicina – APM – esse percentual já era acima de 80%, o que evidencia o próprio movimento de dissolução das relações empregatícias e a crescente pejotização dos trabalhos dos profissionais da saúde.

Ocorre que para o caso dos médicos e médicas servidores públicos, a Constituição Federal em seu artigo 37, traz regras e determinações no que tange ao exercício de outros cargos e empregos, conforme se verificará.

Interessa ao presente artigo a análise da situação hipotética de acúmulo de cargo público federal de médicos(as) com o exercício da medicina através da constituição ou participação deste profissional em pessoa jurídica de direito privado.

LIMITES IMPOSTOS PELA LEI 8.112/90 PARA A PARTICIPAÇÃO DE SERVIDOR PÚBLICO EM SOCIEDADE PRIVADA

Para o estudo proposto pelo presente artigo, considera-se servidor público, conforme conceituação dada pelo professor Carvalho Filho, aqueles que exercem função pública com caráter permanente e se submetem ao regime jurídico estatutário. (CARVALHO FILHO, 2015).

A Constituição Federal, ao tratar dos servidores públicos, prevê em seu artigo 37, caput, que a Administração Pública observará os princípios fundamentais do direito administrativo consubstanciados na legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

Em sua obra Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, o ministro Luís Roberto Barroso aponta que os princípios constitucionais informam valores ou finalidades a serem alcançadas e são aplicados mediante juízo de ponderação, de modo que os princípios constitucionais não só podem servir como fundamento direto de uma decisão judicial como também podem condicionar a interpretação das leis e culminar na paralisação de sua eficácia. (BARROSO, 2020).

No que tange à vedação da participação de servidor público em sociedade empresária ou no exercício de atividade lucrativa, a Constituição Federal não traz dispositivo acerca do tema, mas tão somente acerca das hipóteses permissivas do acúmulo de cargos públicos para profissionais de saúde, deliberando sobre a possibilidade de profissional da saúde acumular até dois cargos ou empregos privativos da saúde, desde que observada a compatibilidade de horários.

A vedação ao exercício do cargo público cumulada com a participação na gerência ou administração de sociedade privada ou, ainda, do exercício de comércio por servidor público é trazida pelo artigo 117, inciso X, da lei Federal 8.112/90, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais.

Verifica-se que a hipótese do médico/a servidor público federal que além do cargo público labora para Instituições privadas de saúde por meio de uma pessoa jurídica personificada exclusivamente para a prestação de plantões médicos, quando não ocupante das funções de gerência e administração desta pessoa jurídica, não encontraria vedação no inciso X, do artigo 117, da lei 8.112/90.

Isso porque a primeira parte do inciso X é específica quanto à vedação da participação do servidor na gerência ou administração de sociedade privada, personificada ou não (registrada em Junta Comercial ou não). Na sua segunda metade, o inciso aponta expressamente a vedação ao exercício do comércio pelo servidor, com exceção quando na qualidade de acionista, cotista ou comanditário.

Desta forma, quando o médico(a) servidor público federal constituí ou participa de pessoa jurídica com a finalidade exclusiva e específica da prestação de plantões médicos em Instituições privadas de saúde e não exerce as funções de direção e administração desta persona jurídica, não se mostra razoável a incidência da vedação do dispositivo legal.

Além disso, o Código Civil de 2002 adotou a teoria da empresa em substituição à teoria dos atos de comércio vigente anteriormente. De acordo com o artigo 966 do Código Civil, empresário é aquele que exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.

A atividade empresarial, portanto, possui intrínseca elaboração e organização dos fatores de produção, como mão de obra e insumos, bem como o objetivo lucrativo. (CRUZ, 2018).

Isso significa que existem atividades que, embora econômicas, não possuem natureza empresarial, hipótese dos profissionais intelectuais (ou profissionais liberais) e da sociedade simples. Neste sentido, o parágrafo único do artigo 966 do Código Civil dispõe que não é considerado empresário aquele que exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, exceto se o exercício da profissão constituir elemento de empresa, ou seja, é necessária a existência da organização dos fatores de produção da própria atividade intelectual.

Se depreende desta caracterização que, a princípio, as Clínicas Médicas não se caracterizam como sociedade empresária quando o objeto da prestação dos serviços é o próprio atendimento médico, tendo em vista a natureza da atividade desempenhada, marcadamente pessoal e tipificada como intelectual, o que encontra amparo no parágrafo único do artigo 966 do Código Civil.

No entanto, este enquadramento comporta exceções uma vez que a Clínica Médica passe a organizar os fatores de produção desta atividade intelectual. De forma ilustrativa, é possível exemplificar esta conjuntura com a hipótese de uma clínica que faz a contratação de diversos funcionários e que possui no seu funcionamento elementos típicos de empresa, como economicidade, organização e direcionamento de mercado, de modo que o trabalho exercido e o produto oferecido são mais complexos do que o da estrutura de uma clínica médica que oferece pura e simplesmente consultas médicas.

Além disso, é também comum no dia a dia dos profissionais da saúde a constituição de Eireli – empresa individual de responsabilidade limitada – ou de sociedade unipessoal para a prestação de plantões médicos. Nestes casos, se tratando de servidor público federal que possui Eireli ou Sociedade unipessoal também é possível a interpretação da não incidência da vedação do artigo 117, X, da Lei 8.112/90 tendo em vista a não caracterização dos elementos de empresa.

CONCLUSÃO

Ao considerarmos que a penalidade imposta para a participação na gerência ou administração de sociedade privada ou no exercício do comércio para o servidor público federal, nos termos dos artigos 117, X e 132, XII, da lei 8.112/90 é a pena mais gravosa, portanto, a de demissão, mostra-se necessária a interpretação do dispositivo do artigo 117 nos moldes do princípio da legalidade.

À luz do que determina o artigo 37, caput, da Constituição Federal, é necessário que a Administração Pública respeite o princípio da legalidade quando da aplicação da proibição do artigo 117, X, da lei 8.112/90, já que esta proibição comporta mais de uma possibilidade de interpretação, de modo que o princípio da estrita legalidade deve ser reconhecido e aplicado para que a vedação contida na Lei seja restritiva e aplicada nos casos do exercício de atividade empresarial pelo servidor público federal, excluída a participação em sociedade simples constituída exclusivamente para a prestação de plantões médicos ou das Clínicas médicas que tenham como objeto estrito a realização de consultas médicas.

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BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo / Luís Roberto Barroso. – 9. Ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo / José dos Santos Carvalho Filho – 28. Ed. rev., ampl. e atual. até 31.12.2014. – São Paulo: Atlas, 2015.
CRUZ, André Santa. Direito Empresarial / André Santa Cruz – 8. Ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2018.
MENDONÇA, Saulo Bichara; ARRUDA, Pablo Gonçalves e. A inobservância dos termos fundamentais da teoria da empresa por normas positivadas: estudo de caso da Eireli constituída para fins não empresariais. Revista Jurídica. vol. 04, n°. 45, Curitiba, 2016. pp.586-608.
BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Acesso em 14.6.2021.
BRASIL, lei 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Acesso em 14.6.2021.
Conselho Regional de Medicina. Pessoa Jurídica ou Física. Acesso em 07.6.2021.
Revista Infomoney. Negócio: 80% dos médicos do estado de São Paulo atuam como Pessoa Jurídica. Acesso em 7.6.2021.

Miriele Vidotti
Advogada especializada em Direito Médico e Saúde. Pós-graduanda em políticas públicas y justiça de género pelo Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais. Pesquisadora em Bioética.

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