Migalhas de Peso

O destino dos direitos indígenas de volta às "naus" do colonialismo: revistar para interpretar

O estatuto da causa indígena tem sido objeto recorrente das pautas jornalística e jurídica no Brasil.

7/7/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Darcy Ribeiro, ao retratar a formação do povo brasileiro, relembrou que "o maior susto que tiveram os portugueses, no passado, foi ver a força de trabalho escravo, reunida com propósito exclusivamente mercantis para ser desgastada na produção, insurgir-se, pretendendo ser tida como gente com veleidades de autonomia e autogoverno. Do mesmo modo, a grande perplexidade das classes dominantes atuais é que esses descendentes daqueles [...] indígenas ousem pensar que este país é uma república que deve ser dirigida pela vontade deles como seu povo que são." (1995, p. 247).

O estatuto da causa indígena tem sido objeto recorrente das pautas jornalística e jurídica no Brasil, tendo em vista a iminência do julgamento do RE 1.017.365 - caso que discute uma reintegração de posse movida contra o povo Xokleng (SC) -, tendo-se como pano de fundo a tese do marco temporal. Além disso, recentemente houve a aprovação do PL 490/2007 na Comissão de Constituição e Justiça - CCJ da Câmara dos Deputados, que trata dos procedimentos de demarcação de terras indígenas.

A ascensão do discurso desenvolvimentista embasou determinadas demandas sociais dominantes, com amplo acesso aos espaços de poder, que encontra no silogismo do avanço "estratégico" da nação o argumento necessário à deslegitimação do agir comunicativo com os povos indígenas. Recentemente um artigo de opinião usou a seguinte afirmativa: "a desnecessidade da União pedir autorização dos indígenas para obras estratégicas dentro das Terras Indígenas, como o tão sonhado linhão de Tucuruí que atravessa a Terra Indígena Waimiri/Atroari, foi uma das condicionantes impostas pelo Min. Menezes Direito do Supremo Tribunal Federal [...]Como se observa, o PL 490/2007 pode até ser incômodo para alguns setores, pois muda completamente a forma de demarcações de Terras Indígenas, mas não é uma novidade no mundo jurídico, tão pouco inconstitucional, posto que já aprovado pelo STF. A palavra está nas mãos do Congresso Nacional, nos representantes do povo e dos estados, a eles é dado o poder constitucional de decidir o que é melhor para o país."1

Em suma, ao Parlamento é dado o poder de decidir o destino dos povos indígenas, assim como o foi conferido à Coroa Portuguesa ditar o futuro - hoje conhecido passado genocida e etnocida - dos povos originários. Dos 513 parlamentares integrantes da Câmara dos Deputados, apenas uma é indígena e se elegeu com base nessa pauta. Cattoni de Oliveira (2000: 14) ao citar Habermas (1998) nos afirma que o Direito só poderá realizar sua função no processo de integração social se ultrapassar a perspectiva funcional-sistêmica e possibilitar simultaneamente não somente a densificação de princípios morais universais na pluralidade das eticidades substantivas das organizações político-concretas, mas fazê-lo, de tal modo a que os destinatários de suas normas possam reconhecer-se como os próprios co-autores das mesmas.

Observa-se que alguns juristas e parlamentares contrários à causa indígena se pautam no julgamento da pet 3388/RR como uma panaceia interpretativa a tudo que se destine às terras indígenas. Por dever intelectual, informa-se que após o julgamento (19/3/2009) e publicação do acórdão (1º/7/2010), o ministro Luis Roberto Barroso, em 4/2/2014, julgou os embargos de declaração na pet 3388/RR, afirmando-se que "a decisão proferida na pet 3.388/RR tem a força intelectual e persuasiva de uma decisão do Supremo Tribunal Federal, mas não é vinculante, em sentido técnico, para juízes e tribunais, quando do exame de outros processos, relativos a terras indígenas diversas."

Além do julgado não possuir efeito vinculante - binding effect -, assentou-se a importância da comunicação com os povos indígenas, eis que é uma das principais premissas que afastam a sistemática impositivo-colonizadora, considerando que os direitos dos povos indígenas há muito sucumbem aos interesses políticos e econômicos dominantes. Silva (2017, p. 167), ao se debruçar sobre as obras de Marcelo Neves e Konrad Hesse, relata "que somente uma abertura na ordem constitucional brasileira, nos termos do transconstitucionalismo, voltadas ao entrelaçamento com ordens jurídicas de níveis múltiplos, seria capaz de garantir uma praxe constitucional capaz de solucionar da melhor forma possível as questões envolvendo direitos humanos e fundamentais dos povos indígenas."

A consulta aos indígenas é um elemento central da convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho. Essa convenção integra o Direito brasileiro, tendo sido internalizada pelo decreto legislativo 143/2002 e pelo decreto presidencial 5.051/2004. Há um esforço tremendo de se pinçar do julgamento da pet 3388/RR vetores interpretativos enviesados sobre a tese do marco temporal e do afastamento de consultas aos povos indígenas em questões que envolvam o "desenvolvimento estratégico".

Como visto, no julgamento dos embargos da pet 3388 enfatizou-se o seu caráter não vinculante e, especificamente sobre a consulta, aduziu o ministro Barroso que "o acórdão embargado não sugere – nem poderia sugerir – que a expressão 'defesa nacional' possa ser usada como rótulo para qualquer tipo de fim, apenas como subterfúgio para afastar a participação dos indígenas."

O que se observa em nossa República, remontando-se o passado - não como tragédia, mas talvez como farsa -, é um apartamento categórico da participação dos povos indígenas nas demandas de seus interesses, em notória apropriação formal como elemento de legitimação. Enquanto outrora víamos tropas militares nacionais ou estrangeiras promovendo ações violentas contra os povos originários, estamos a visualizar, com roupagem formal, proposições régias contra os indígenas que se recusam novamente a aceitar o jugo europeu a qualquer custo, novamente sob o argumento desenvolvimentista.

O processo de afastamento dos indígenas do debate político ainda está enraizado na lógica de "inferiorização e subjugação do 'povo tradicional amazônico' [...] não mais numa perspectiva apenas internacional, mas também nacional. Isso por­que os grandes centros urbanos americanos, europeus e brasileiros pas­saram a ser os modelos de cultura requintada, superior e vanguardista." Logo,"as populações principalmente urbanas da Amazônia, no intuito de se parecer com o 'desenvolvido', acabam por rejeitar os costu­mes da cultura de raiz indígena, vista como pejorativamente tradicional e estática." (LOUREIRO, 2002 citado por DE LIMA; GADELHA, 2015, p. 83)

Relembremo-nos que diferentemente da concepção capitalista de propriedade, as terras indígenas "acham-se afetadas, por efeito de destinação constitucional, a fins específicos voltados, unicamente, à proteção jurídica, social, antropológica, econômica e cultural dos índios, dos grupos indígenas e das comunidades tribais." (MELLO, Celso. RE 183.188-0 MS). A questão da terra representa indissociável fundamento indígena, sem a qual expõe-se "ao risco gravíssimo da desintegração cultural, da perda de sua identidade étnica, da dissolução de seus vínculos históricos, sociais e antropológicos, que reverencia locais místicos de sua adoração espiritual e que celebra, neles, os mistérios insondáveis do universo que vive." (ibidem).

Compreende-se, tranquilamente, que no plano teórico não exista um imperativo antagônico entre o estatuto indígena e o desenvolvimento nacional, tendo em vista que a lei fundamental de 1988 permitiu a exploração econômica em terras indígenas e, na maioria das comunidades, há o exercício de atividades econômicas produtivas ao seu modo. Não obstante, o desenrolar da questão ocorre pela soma e não suplantação, inclusive com participação livre e efetiva dos indígenas no debate público, especialmente das proposições legislativas que atinjam diretamente seus interesses. O "desenvolvimento" que se fizer sem ou contra os índios, instalados tradicionalmente, desrespeita os preceitos constitucionais, eis que o desenvolvimento nacional pressupõe equilíbrio ecológico, humanizado e culturalmente fortificado, de modo a incorporar – não excluir - a realidade indígena. (pet 3388)

Relata a história que os indígenas, em determinadas situações, ao invés de terem, de fato, desaparecido, "foram invisibilizados por discursos políticos e intelectuais" (ALMEIDA, 2008 apud ALMEIDA, 2017, p. 30), na mesma medida que "se pensarmos quantas gerações foram educadas com base em ideias negativas e preconceituosas em relação a povos indígenas, povos que agora reivindicam terras, culturas e direitos próprios garantidos pela Constituição de 1988, podemos ter uma ideia do tamanho do prejuízo, do quanto há para reparar e da importância dessa revisão historiográfica." (ibidem, p. 35).

A democracia, portanto, é medida pelo espaço que o Estado promove aqueles que não possuem trânsito ou acesso ao poder. As ações estatais executivas ou legislativas, sem qualquer participação dos indígenas, engendram-se novamente às âncoras das "naus"2 do colonialismo, em que se mantém a equação de subtração cultural, com impactos cruéis que darão continuidade ao despovoamento/deslocamento dos aldeamentos indígenas.

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1 Sobre o Projeto de Lei 490/2007.
2 Nau(s): termo utilizado por Pero Vaz de Caminha para se referir às caravelas e embarcações da Coroa Portuguesas. Ministério da Cultura. Fundação Biblioteca Nacional - Departamento Nacional do Livro.

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BRASIL. Constituição (1988). Constituição [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (pleno). Embargos de declaração petição  3388/RR. Relator: min. Luis Roberto Barroso, Julgamento: 23/10/2013, Publicação: 4/2/2014.
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido processo legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000.
DE ALMEIDA, Maria Regina Celestino. A atuação dos indígenas na História do Brasil: revisões historiográficas. Dossiê: O protagonismo indígena na história • Rev. Bras. Hist. 37 (75) • May-Aug 2017.
DE LIMA. Regina Lucia Alves; GADELHA, Dilermando. Colonialismo: recorrências e dispersões no discurso do audiovisual amazônico. dição 42, v. 22, n. 1, 2015. Cultura Pop e Linguagem de Videoclipe.
RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: a Formação e o Sentido do Brasil. Companhia das Letras – 1995. São Paulo – Segunda edição.
SILVA, Julianne Holder da Câmara; SILVA. Maria dos Remédios Fontes. ENTRE TUPÃ E O LEVIATÃ: O TRANSCONSTITUCIONALISMO E AS ORDENS LOCAIS INDÍGENAS.  Revista Jurídica da UFERSA - v. 1 n. 1 (2017).

Herick Feijó Mendes
Advogado, mestrando em Segurança Pública, Cidadania e Direitos Humanos, especialista em Direito Público, presidente da Comissão de Estudos Constitucionais (seccional RR) e membro da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais (CFOAB).

Fernando César Costa Xavier
Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasilia (UnB), professor da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e Professor da Universidade do Estado de Roraima - UERR.

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