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Poluição visual e livre concorrência: inconstitucionalidade da Lei Municipal 14.223/2006, que institui monopólio público da propaganda comercial no mobiliário urbano na cidade de São Paulo

Nas últimas semanas, a Imprensa tem veiculado notícias sobre liminares concedidas em favor da iniciativa privada, suspendendo alguns dos dispositivos da Lei Municipal nº 14.223, de 26 de setembro de 2006, quando não todos eles.

24/1/2007


Poluição visual e livre concorrência: inconstitucionalidade da Lei Municipal 14.223/2006, que institui monopólio público da propaganda comercial no mobiliário urbano na cidade de São Paulo

Priscila Brólio Gonçalves*

Nas últimas semanas, a Imprensa tem veiculado notícias sobre liminares concedidas em favor da iniciativa privada, suspendendo alguns dos dispositivos da Lei Municipal nº 14.223, de 26 de setembro de 2006 (clique aqui), quando não todos eles.

Em síntese, a referida lei, a pretexto de ordenar os elementos que compõem a paisagem urbana do Município de São Paulo, legislou sobre propaganda comercial (matéria de competência privativa da União, nos termos do art. 22, inciso XXIV, da Magna Carta Brasileira), proibindo a colocação de anúncios publicitários nos imóveis urbanos (públicos e privados, edificados ou não) e determinando a retirada de todos aqueles atualmente existentes, até o dia 31 de dezembro de 2006.

A proibição abrange não apenas outdoors, mas anúncios veiculados em fachadas e empenas cegas de edifícios, muros, postes, veículos, placas, banners, faixas, pôsteres, cartazes, etc.

A lei reservou para a Prefeitura de São Paulo o monopólio da publicidade em mídia exterior, a ser exercida no chamado mobiliário urbano, ou seja, no conjunto de elementos que ocupam o espaço público, implantados, direta ou indiretamente, pela Administração Municipal (prédios públicos, painéis, totens indicativos de parada de ônibus, meios de transporte, cabines de segurança, quiosques de informações, lixeiras, bancas de jornais, grades de proteção e protetores de árvores, relógios, cabines de pontos de ônibus e táxi, entre outros).

A lei ainda restringiu a utilização dos chamados anúncios indicativos, quais sejam, aqueles que visam apenas identificar, no próprio local da atividade, os estabelecimentos ou profissionais que dele fazem uso.

As mudanças propostas – a Lei Municipal 13.525/2003, que disciplinava os limites da propaganda comercial na cidade de São Paulo, foi revogada – vêm sendo criticadas por uns e defendidas por outros. Aqueles que apóiam a iniciativa geralmente justificam-se com base em conceitos estéticos, ideais paisagísticos e urbanísticos, bem como nas dificuldades de fiscalização dos anúncios. Os opositores da nova lei têm do seu lado desde argumentos de cunho estético – as empenas cegas, por exemplo, ficariam ainda piores sem a publicidade (vide, por exemplo, a lateral do edifício vizinho ao Shopping Iguatemi: onde havia um outdoor, existe hoje uma parede suja e descascada) – até questões econômicas e legais.

Cabe ponderar que a lei anterior já era bastante restritiva; porém, padecia da falta de fiscalização por parte da Prefeitura. Segundo estimativas do Sindicato das Empresas de Publicidade Exterior de São Paulo (SEPEX/SP), 70% (setenta por cento) dos anúncios publicitários existentes em São Paulo não atendiam aos requisitos da lei municipal revogada. Bastaria, pois, que a Prefeitura exercesse o seu poder-dever de fiscalizar para que o problema da poluição visual da cidade fosse equacionado.

Aliás, seria razoável esperar que não houvesse anúncios em outdoors em bairros predominantemente residenciais, mas pretender eliminá-los completamente das marginais dos rios Pinheiros e Tietê ou da Avenida Paulista equivale a conceber Times Square sem seus luminosos ou a Broadway sem os anúncios dos espetáculos. Nada garante que a fiscalização atuará de forma mais consistente e eficaz agora, e a iniciativa privada – empresas que sempre fizeram uso lícito (como anunciantes ou prestadoras de serviços) de propaganda em outdoors e outros meios agora proibidos, que recolhem tributos e empregam milhares de pessoas – não pode ser penalizada pela incompetência das autoridades no exercício do seu poder de polícia.

Independentemente, porém, da rica discussão que versa sobre a adequação e a proporcionalidade do diploma municipal tendo em vista a finalidade a que se destina – combater a poluição visual metropolitana –, temos que, do ponto de vista jurídico, um dos principais vícios da Lei 14.223/2006 é a afronta direta aos princípios constitucionais da liberdade de iniciativa, da liberdade de concorrência, da busca do pleno emprego e da valorização do trabalho humano (art. 1º, inciso IV e 170, caput e incisos IV e VIII), além da já mencionada usurpação de competência privativa da União para legislar sobre propaganda comercial.

Na lição de Fábio COMPARATO, “... a expressão ‘liberdade de iniciativa’ comporta um duplo sentido (...) Garante-se, de um lado, a livre criação ou fundação de empresas, ou seja, a liberdade de acesso ao mercado (art 170, parágrafo único). Neste sentido, no regime da Constituição de 1988, os monopólios públicos existem tão-só quando especificamente declarados no texto constitucional, já não se admitindo a criação de monopólios estatais por meio de lei, como sucedia na vigência das Cartas Constitucionais anteriores. Mas protege-se também, de outro lado, a livre atuação das empresas já criadas, isto é, a liberdade de atuação e permanência no mercado. Corolário desta outra manifestação da liberdade empresarial é não só a interdição dos trustes e cartéis que importem na eliminação de concorrentes (art. 173, §4º), mas também a vedação de uma interferência estatal abusiva, que implique, senão como objetivo, pelo menos como resultado, a impossibilidade prática de continuidade da atuação de certas empresas no mercado” (Regime constitucional do controle de preços no mercado. In: Direito público: estudo e pareceres, São Paulo, Saraiva, 1996, pp. 99-115).

A Lei Municipal 14.223/2006 fere duplamente o princípio da liberdade de iniciativa econômica: em primeiro lugar, ao monopolizar a atividade de prestação de serviços de anúncios em imóveis urbanos na cidade de São Paulo (estabelecendo verdadeira reserva de mercado para o Município, não prevista na Constituição Federal); em segundo lugar, ao eliminar do mercado empresas legitimamente constituídas, que operam de forma lícita, implicando abuso do poder econômico, nos termos do artigo 173 da Carta Magna.

Na situação concreta, as empresas privadas que se dedicam à atividade econômica vedada pela nova lei municipal não têm nenhuma chance de competir frente ao poderio político e econômico do ente estatal que busca apropriar-se do mercado. Novamente parafraseando COMPARATO, “quando potencial de liderança e posição social se elevam, conjuntamente, o agente influenciador tende a conquistar o máximo poder” (Sociedade e Poder. In: O poder de controle na sociedade anônima, 4 ed., Rio de Janeiro, Forense, 2005, pp. XV-XVII).

Além de afrontar a Constituição, a Lei Municipal viola a Lei 8.884/94 (clique aqui), que dispõe sobre a prevenção e a repressão de infrações à ordem econômica. Referida lei, aplicável às pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou privado (art. 15), e, portanto, à Municipalidade de São Paulo, caracteriza como infração à ordem econômica os atos, sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou efeito limitar, falsear ou e qualquer forma prejudicar a livre concorrência e a livre iniciativa (art. 20). O art. 21 da lei em questão arrola, entre os exemplos de atos que podem gerar tal efeito restritivo da competição, a limitação ou impedimento ao acesso de novas empresas ao mercado e a criação de dificuldades à constituição, funcionamento ou desenvolvimento de empresa. Alguns dispositivos da Lei Municipal 14.223/2006 constituem exemplo até didático desses atos.

O princípio federativo impede que o CADE, autarquia federal encarregada de aplicar as penalidades previstas na Lei 8.884/94, atue de forma coercitiva no caso concreto, mas o Poder Judiciário pode declarar a inconstitucionalidade e a ilegalidade do diploma municipal, sustando seus efeitos.

É o que tem ocorrido em alguns casos. A Associação Comercial de São Paulo, por exemplo, obteve liminar judicial suspendendo alguns dispositivos da Lei Municipal (Processo n.º 583.53.2006.137109-0). Entre os fundamentos materiais para a outorga da tutela de urgência, destaca-se o seguinte trecho: “ao proibir a colocação de anúncios publicitários, bem como restringir drasticamente a utilização dos chamados anúncios indicativos, a Lei n.º 14.223/06 parece haver infringido vários dispositivos constitucionais, em especial os que garantem o livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão (CF. art. 5.º, XIII), asseguram a livre iniciativa e a livre concorrência (CF. arts. 1.º, IV, e 170, IV), bem como o que veda a exploração direta de atividade econômica pelo Estado, salvo nas hipóteses de risco à segurança nacional ou relevante interesse coletivo (CF. art. 173)”. Mais adiante, o MM. Juiz, reproduzindo arrazoado de colega em decisão semelhante, aduz que “as restrições impostas a partir da vigência da Lei Municipal nº 14.223, de 26 de setembro de 2006, parecem estabelecer verdadeiro monopólio de mídia externa em benefício exclusivo da Municipalidade, impedido a lícita atividade econômica desenvolvida pela Autora, em contrariedade ao disposto no art. 170, inc. IV e parágrafo único, da Constituição Federal. (...) A Municipalidade, embora possa ter competência constitucional para legislar sobre a proteção ao meio ambiente (e não sobre propaganda comercial), deve fazê-lo para o fim de disciplinar a fiscalização, para estabelecer os procedimentos para obtenção de licenciamento e para impor sanção aos infratores. Não pode, entretanto, promover verdadeira intervenção da atividade econômica, sob pena de grave ofensa ao disposto no art. 173, da Constituição...”.

A decisão de primeira instância acabou sendo suspensa – também liminarmente – por decisão monocrática do Tribunal de Justiça de São Paulo. Em seu arrazoado, o D. Desembargador da 11ª Câmara de Direito Público firmou, entre outros argumentos, que “a lei [municipal] tem por finalidade ordenar o espaço público no tocante a paisagem urbana – controle da poluição visual – e de forma alguma tem por objetivo cercear a livre iniciativa, que deve ser executada de conformidade com a lei, tampouco fere a livre concorrência, pois no caso, todos terão tratamento igual perante a lei”.

O Douto desembargador não poderia estar mais equivocado. Querendo ou não, a lei municipal produz efeitos concretos sobre propaganda comercial e sobre as liberdades de iniciativa e de concorrência, , extrapolando, no primeiro caso, a competência legislativa do município, e atentando contra os pilares da ordem econômica constitucional, no segundo.

O artigo 20 da Lei 8.884/94 é explicito ao consignar que constituem infração concorrencial os atos que tiverem por objeto ou por efeito restringir a concorrência e a livre iniciativa. De tal dispositivo exsurgem pelo menos três conclusões: (i) quaisquer atos (inclusive, como visto, aqueles emanados do Poder Legislativo, entre os quais as leis municipais) podem constituir violação da ordem econômica; (ii) não é necessário que o objetivo (animus) do agente seja limitar a concorrência e a livre iniciativa; se o efeito, no final das contas, for este, o ato já é ilícito; e (iii) não é necessário (felizmente) que a concorrência seja completamente eliminada, basta que ela seja limitada substancial e injustificadamente, como ocorre in casu, para que se configure a infração.

Não pretendemos, evidentemente, afirmar serem ilimitadas as liberdades constitucionais invocadas. Ocorre que elas não podem ser desproporcionalmente confinadas, muito menos por legislação municipal que extrapola competências e objetivos. No caso concreto, ao contrário do quanto afirmado na decisão do TJ/SP, a lei está muito longe de garantir tratamento isonômico à iniciativa privada, de um lado, e ao ente público, de outro. A Prefeitura de São Paulo, literalmente, tomou para si o mercado.

E não se alegue, como vem fazendo a Municipalidade, também via Imprensa (o que, após a edição e entrada em vigor da lei denota, no mínimo, falta de planejamento de médio e longo prazos), que, no momento oportuno, o exercício da atividade inicialmente vedada pela Lei aos particulares seria devidamente regulamentada, podendo os prestadores de serviços ora alijados do mercado retomar as suas atividades, neutralizando-se assim os efeitos anticoncorrenciais do diploma municipal.

Ora, no momento em que a Prefeitura decidir regulamentar a atividade privada que hoje é banida, os prestadores de serviços estarão arruinados e os anunciantes (aqueles que puderem) terão direcionado investimentos em publicidade para outras mídias.

E, ainda que se abstraiam os impactos financeiros para prestadores de serviços e anunciantes (prejuízos privados, indenizáveis pela via própria), a criação de um monopólio, ainda que temporário, não é apenas manifestamente inconstitucional e ilegal no caso concreto, mas apta a produzir efeitos sociais negativos, na medida em que a eliminação artificial da concorrência tende a gerar aumentos de preços e redução na qualidade de produtos e serviços.

Em suma, a Lei Municipal n.º 14.223/06 padece de inconstitucionalidade gritante, e pode causar à coletividade dano muito maior do que aquele causado pela publicidade irregular. O desassossego estético (ou elitista?) com o problema da poluição visual – que certamente não é compartilhado pelas camadas menos favorecidas da população, mais preocupadas em sobreviver à violência urbana, às más condições do transporte público e à falta de perspectivas – não justifica o sacrifício nem de empregos, nem de empresas; e muito menos dos direitos dos consumidores, que, em última análise, terão que arcar com o aumento nos preços e com a redução na qualidade dos mais diversos produtos, resultantes do monopólio municipal estabelecido pela citada Lei.

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* Mestre e Doutoranda <_st13a_personname w:st="on" productid="em Direito Comercial">em Direito Comercial pela USP. Advogada em São Paulo, sócia da Advocacia José Del Chiaro.


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