A expressão "autonomia" vem do grego auto + nomos e significa independência, autodeterminação, aquilo que é regido por leis próprias. Nas lições de Carlos Alberto da Mota, a autonomia é a essência do direito civil, ramo responsável por reger as relações contratuais, e deve ser compreendida como o poder de compor, conjuntamente ou por ato unilateral, interesses próprios.1
Essa ideia de soberania da autonomia da vontade vigorou no ordenamento jurídico até o final do século XVII. Todavia, após a Revolução Industrial, com o aprimoramento dos contratos de adesão, a doutrina da soberania da vontade livre passou a ser questionada ante o desequilíbrio contratual que impregnara as relações econômicas por meio dos contratos de adesão.
Nesse contexto, a autonomia, antes da vontade, passa a tomar nova feição, ao intitular-se de privada. Assim, contemporaneamente, os sujeitos possuem certa independência e poder de autorregulação, desde que dentro das fronteiras do interesse público.
Da mesma forma, essa autonomia privada, mola propulsora das relações particulares, também passou a ser aplicada na esfera familiar. O pacto antenupcial e a possibilidade de alteração do regime de bens pelos cônjuges depois da celebração do casamento são ótimos exemplos da preservação da autonomia privada nas relações familiares.
O pacto antenupcial, objeto de reflexão do presente ensaio, é uma das marcas mais fortes desse poder que os particulares têm de regular, pelo exercício de sua própria vontade, as relações familiares, pois tem por intuito justamente possibilitar aos nubentes a escolha da norma mais apropriada às suas expectativas matrimoniais.
Consiste questão problemática, no entanto, investigar até que ponto predomina a autonomia da vontade no direito de família e no direito sucessório. Por exemplo, os nubentes podem, além de escolher o regime que lhes aprouver, incluir cláusulas relativas à manifestação de vontade de direitos hereditários futuros? E mais: é possível que os nubentes renunciem ao direito concorrencial de herança um do outro?
Segundo a doutrina alemã, possibilitar a liberdade negocial e o poder de autodeterminação aos nubentes faz parte da própria essência dos pactos antenupciais, e colocar limites na escolha do regime de bens e na distribuição dos encargos bilaterais implicaria a inviabilização de tão importante instrumento nas relações familiares.2
Pondera-se, no entanto, que essa autonomia da vontade não pode ser ilimitada ao ponto de possibilitar cláusulas que contrariem a lei, os costumes, a ordem pública, ou possam prejudicar direitos maternos, paternos ou conjugais. Logo, o pacto antenupcial deve, exclusivamente, restringir-se às relações econômicas dos nubentes.3
Quanto a essa assertiva, cabem algumas considerações. Sabe-se que o pacto antenupcial não pode contrariar a lei, até porque eles são regidos pelas regras do Código Civil, que estabelece como requisito de validade dos negócios jurídicos em geral a licitude do objeto; mas quais dispositivos legais estariam aptos a impor-lhe limitações?
Em uma concepção mais moderna do instituto, o pacto antenupcial, a depender do objetivo dos nubentes, não poderia servir como um instrumento de planejamento sucessório?
Conforme já visto, o ordenamento jurídico atual consagra a mínima intervenção estatal sobre as relações familiares. Por outro lado, no âmbito do direito sucessório, essa autonomia é mais limitada, haja vista que ela se faz presente somente no instituto da renúncia de herança (desde que a sucessão já esteja aberta) ou do legado familiar.
Na verdade, vigora um verdadeiro e inexplicável dogma da máxima proibição de contratos, cujo objeto seja a herança de pessoa viva, também conhecidos como "pacta corvina", conforme expressa disposição legal contida no art. 426 do Código Civil, que já constava ipsis litteris, do art. 1.089 do Código Civil de 1916.4
Logo, sob as lentes do art. 426 do Código Civil e da doutrina majoritária, é vedado constar em pacto antenupcial qualquer cláusula sobre a herança dos cônjuges, seja para atribuir uma herança futura ao cônjuge supérstite sobre os bens particulares, seja para abdicar antecipadamente à herança oriunda da futura morte do consorte.
No entanto, a genérica proibição de pactos sucessórios nem sempre atende ao melhor direito. Há situações, por exemplo, em que os nubentes desejam renunciar à sucessão futura um do outro no pacto antenupcial, seja porque simplesmente não desejam concorrer com os filhos na herança do de cujus, seja porque não desejam causar confusão de patrimônio entre estirpes familiares distintas.
Como visto, o Código Civil permite a renúncia da herança efetivamente aberta, ao passo que, no contexto legal, consta expressa vedação à renúncia prévia, em pacto antenupcial, de qualquer direito sucessório por parte de cônjuges, embora os cônjuges possam renunciar a essa mesma herança tão logo se produza a morte do consorte.
Essa proibição, no entanto, não parece muito lógica. Essa é a linha do pensamento aqui desenvolvido.
Em primeiro lugar, essa restrição aos pactos sucessórios – e, consequentemente, à renúncia prévia de herança – decorre mais do pensamento de as disposições sucessórias serem contrárias aos bons costumes e causarem sentimentos "mórbidos" acerca da expectativa da morte de alguém para a concretização da vantagem patrimonial.
Em segundo lugar, basta imaginar a seguinte situação: duas pessoas que se casam pelo regime da absoluta separação de bens, logicamente, tem o inequívoco propósito de afastar a comunhão de bens. Isso porque, nessa hipótese de regime, não haverá confusão patrimonial que importe em meações quando da resolução do casamento dissolvido em vida, sendo provável que, a fortiori, os cônjuges desejem estender a independência de suas esferas patrimoniais na dissolução por morte.
Em terceiro lugar, a mera renúncia ao direito de concorrer com descendentes ou ascendentes quando da futura sucessão do parceiro não implicaria "contração" da herança de pessoa viva.
Importante aclarar que "herança" e "sucessão" são conceitualmente termos distintos. Sucessão é caracterizada pelo ato jurídico por meio do qual uma pessoa substitui outra falecida em seus direitos e obrigações, enquanto a herança refere-se ao acervo de bens transmitidos por ocasião da morte.
Dessa maneira, a interpretação do art. 426 do Código Civil deve ser feita, necessariamente, de forma restritiva, de modo a abranger apenas a proibição expressa de se contratar a herança de pessoa viva, isto é, de pactuar o acervo patrimonial de pessoa viva, mas não o direito sucessório futuro.
No atual Código Civil, não existe qualquer proibição à renúncia prévia de direitos hereditários futuros. Quando se trate de proibição à renúncia de direitos futuros, o legislador o faz de maneira expressa, por exemplo, quanto ao disposto no art. 566, que proíbe o doador de renunciar antecipadamente ao direito de revogar a doação por ingratidão.
Admitir a renúncia prévia ao direito concorrencial da herança conjugal em pacto antenupcial não configura ato imoral, e estender o regime da separação de bens para além da meação amplia a autonomia patrimonial e privada da família, ao afastar do planejamento sucessório um herdeiro concorrencial indesejado, sem contar que, na atual realidade social, isso pode ser feito sem a necessidade de alteração legislativa do art. 426; para tanto, basta que haja uma melhor interpretação do dispositivo legal, eis o que justamente propõe o presente ensaio.
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1 PINTO. Carlos Aberto da Mota. Teoria Geral do Direito Civil. 3.ed. Coimbra Editora, 1999, p. 42.
2 F. C. Pontes de Miranda. Tratado de Direito Privado - Parte Especial, Dissolução da Sociedade Conjugal e Eficácia Jurídica do Casamento. t. VIII. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 313.
3 M. H. Diniz. Curso de Direito Civil Brasileiro, v. V. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 173. Nesse sentido, v.d. C. A. D. Maluf. Curso de Direito de Família. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 243.
4 "Art. 426. Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva".