Migalhas de Peso

O inadmissível afastamento do controle das despesas do Executivo pelo Legislativo na PEC 32/2020

O parecer da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados sobre a Reforma Administrativa apontou uma série de inconstitucionalidades a serem extirpadas do texto. Não obstante, restaram ainda outras, a inquinarem de inconstitucionalidade a proposta.

6/7/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Introdução

A PEC 32/2020, veiculadora da Reforma Administrativa, foi concebida com algumas inexatidões técnicas – as quais foram em boa parte afastadas pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara em maio de 2021.

À parte de questões de fundo igualmente comprometedoras da razoabilidade e efetividade do texto, remanesceram ainda aspectos desarrazoados e, pior, eivados de inviabilizadoras inconstitucionalidades.

Dentre eles está a pretensão de alteração dos artigos 165 e 167 da Carta Magna, por meio da qual se busca a abolição do controle, pelo Legislativo, de parcela das despesas levadas a efeito pelo Executivo, especificamente aquelas decorrentes da transposição, remanejamento e transferência de recursos de uma categoria de programação para outra ou de um órgão para outro.  

Trata-se de aspiração absolutamente incompatível com o ordenamento jurídico pátrio, como adiante se demonstrará.

Controle de despesas pelo legislativo: lógica e relação com princípios estruturantes

Desnecessário lembrar que o controle sobre as despesas públicas traduz predicado estruturante do Estado brasileiro, sendo portanto inadmissível qualquer iniciativa voltada ao seu banimento.

Realmente, não se pode conceber uma democracia fundada nos princípios da soberania popular e republicano em que ao governante seja dado agir como melhor lhe aprouver, sem o rendimento de contas ou explicações a órgãos institucionalmente incumbidos desse acompanhamento e à própria sociedade.

A lógica constitucionalmente consagrada de freios e contrapesos – e inerente à basilar separação de poderes - pressupõe a interação equilibrada entre as diversas instituições, 'poderes' e esferas federativas, com a criação de um sistema cooperativo, dinâmico, dialógico e capaz de se retroalimentar e evitar desvios e distorções.

Trata-se de preceito fundamental, de cláusula pétrea do nosso ordenamento – portanto não passível de relativização ou enfraquecimento inclusive pelo poder constituinte derivado:

O princípio da separação de poderes tem como premissa um certo pessimismo antropológico: segundo a máxima de Lord Acton, 'todo o poder corrompe', de maneira que a concentração de todo o poder político efetivo num só órgão colocaria em risco as liberdades individuais, ante o risco de seu exercício abusivo. Portanto, o fracionamento das funções estatais em órgãos distintos e independentes tem como telos a preservação da liberdade. Esta perspectiva original de Montesquieu foi posteriormente sofisticada por Madison, mediante o desenvolvimento da noção de controles recíprocos entre os departamentos estatais. Assim, a configuração tradicional do princípio da separação de 'poderes' apresenta, basicamente, duas feições: (i) a divisão das funções estatais (legislativas, administrativas e judiciais) e a atribuição dessas funções, em caráter preferencial, ao órgão que lhe empresta o nome, demarcando-se um espectro de atuação própria; (ii) a instituição de mecanismos de interdependência e de controle mútuo. (SARLET; BRANDÃO, 2013, p. 1134)

Tal dinâmica de mútua contenção é característica fundamental e inafastável do processo de elaboração das leis orçamentárias, de cuja formulação devem participar tanto o executivo quanto o legislativo e a sociedade (ainda que indiretamente).

Qualquer pretensão de exclusão desses atores do processo – no caso em tela, do legislativo -, levaria a uma hipertrofia do(s) outro(s), com clara perturbação a ordem fundamental.

Tal aspecto já seria suficiente para eivar de inconstitucional a pretensão em discussão, nos termos do artigo 60, §4º da CF.

Além disso, há ainda outros aspectos a se considerar.

A estrutura de formulação do orçamento público, tal como desenhada da nossa Carta, decorre naturalmente do princípio democrático, estando a ele absolutamente vinculado:

(...) de fato o orçamento público pode ser considerado democrático na contemporaneidade. É elaborado pelos poderes e órgãos definidos na Constituição, apresentado por um dos poderes, apreciado por outro, controlado por um órgão e um poder, e permite – com certas reservas – a participação popular direta. (KANAYAMA, 2014, p. 139)

Não pode, portanto, e sob esse outro ângulo, ser objeto de qualquer alteração ou relativização – sob pena de comprometimento também desse princípio basilar.

O orçamento público corporifica ainda a função de planejamento do Estado – compreendida igualmente como um dos princípios implícitos adotados pela CF, e condicionante de uma ação minimamente eficiente, eficaz e efetiva.

A possibilidade de desconstrução unilateral – ainda que parcial – do orçamento originalmente aprovado dá azo ao comprometimento do quanto projetado oportuna e sistematicamente em benefício de ações pontuais e não raramente comprometedoras do interesse público holisticamente considerado:

Planejar não se confunde com alterações pontuais e de curto prazo, conjunturais. Refere-se a previsões e pretensões de longos prazos. O Estado atua, hoje, com vista ao futuro – atuando conforme as perspectivas, boas ou ruins. Por isso, racionalizar a aplicação de recursos escassos deve ser a ideia central. O orçamento público não tem como finalidade apenas a fixação das despesas e previsão de receita, mas serve à gestão racional de recursos. Se a atuação estatal, portanto, depende da existência e da boa utilização e dos recursos, cuja escassez é caractere próprio, não é demérito relacionar todo o planejamento ao Estado, em todos os setores, ao orçamento público. (KANAYAMA, 2014, p. 140)   

Não se pode olvidar, ainda, do direito fundamental à boa administração, expressamente consagrado no artigo 41º, 3 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia1 e na Carta Iberoamericana dos Direitos e Deveres dos Cidadãos em relação à Administração Pública2 aprovada pelo Conselho do CLAD3 (Centro Latinoamericano para el Desarrollo) em 2013 e definido como:

(...) o direito fundamental à administração pública, eficiente, eficaz, proporcional, cumpridora de seus deveres com transparência, motivação, imparcialidade e respeito à moralidade, à participação social e à plena responsabilidade por suas condutas omissivas e comissivas. A tal direito corresponde o dever de a administração pública observar, nas relações administrativas, a cogência da totalidade dos princípios constitucionais que a regem. (FREITAS, 2007, p. 19)

Trata-se de princípio fundamental implícito na nossa Constituição, que expressa de um lado direito fundamental do cidadão e de outro dever fundamental do Estado/agentes público – não sendo portanto passível de ser afastado ou relativizado, ainda que por proposta de emenda constitucional.

E os impeditivos não param por aí. Há ainda o direito fundamental à accountability, igualmente inserido no escopo do artigo 5º, §2º, e portanto protegido pelo artigo 60, §4º da CF.  

Accountability como direito fundamental

Por derradeiro, há ainda um último direito fundamental relacionado à discussão, que merece tratamento em apartado em razão de sua 'novidade'.

O termo foi colocado entre aspas por não tratar, em verdade, de uma inovação, mas de simples atualização de direito fundamental de controle da ação pública já desenhado nos artigos 14 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1978 e 21 da Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas de 1948.

O fundamento para a sua incorporação, com o aggiornamento necessário, toma por base o fenômeno da mutação constitucional4, consistente na "atribuição de novos conteúdos a norma constitucional, sem modificação do seu teor literal" em decorrência de alterações históricas, políticas e/ou sociais (BARROSO, 2009, p. 151).

A accountability, apesar de não contar com objetiva e satisfatória tradução para o português5, pressupõe o pleno respeito aos valores democracia; possibilidade – e necessidade6 – de controle; participação democrática; legitimidade; transparência; responsividade; eficiência e efetividade da ação pública.

Pode ser conceituada como um grande feixe de valores e direitos fundamentais viabilizadores do controle da ação pública (tanto pelas instâncias internas quanto externas e sociais) e do incremento da sua qualidade (boa e proba administração), com a possibilidade de engajamento de todo o qualquer ator, a partir de uma lógica de ação coletiva e em rede.

Nesse cenário, toda medida que venha a relativizar os mecanismos constitucionalmente desenhados de suas inerentes características será ofensiva não apenas aos direitos fundamentais invocados ao longo do presente ensaio, mas também a esse (de modo simples e objetivo) direito fundamental ao democrático controle público.

O seu enquadramento como direito fundamental decorre de tese consagrada pelo Supremo Tribunal Federal desde o julgamento da ADI 939-7/DF, em 1993, em que apontou o ministro Carlos Velloso "que a doutrina dos direitos fundamentais não compreende, apenas, direitos e garantias individuais, mas, também, direitos e garantias sociais, direitos atinentes à nacionalidade e direitos políticos. Este quadro todo compõe a teoria dos direitos fundamentais."

Em outras palavras, formando a conjugação dos elementos basilares da democracia e do controle da ação pública o valor de accountability, todos eles, individualmente considerados, assim como o direito do conjunto deles decorrente gozam da proteção do artigo 6º, §4º (nos termos do artigo 5º, §2º).

Conclusões

Diante todo o exposto, e tendo em conta:

1. Que o poder reformador é limitado, devendo observar as cláusulas pétreas - explícitas e implícitas –, dentre as quais se inserem os direitos fundamentais, os termos do artigo 60, §4º, IV, da CF;

2. Os princípios fundamentais democrático e da separação de poderes, com seu inerente sistema de freios e contrapesos;

3. O direito fundamental à administração pública boa, proba, eficiente e eficaz, do qual decorre o também fundamental direito fundamental ao planejamento da ação pública;  

4. A caracterização da accountability também como um direito fundamental;

Inquestionável que as alterações pretendidas aos artigos 165 e 167 da CF mostram-se absolutamente inviáveis, por – além de inconvenientes e injustificadas - subversivas da lógica de atuação constitucional estruturada pelo Constituinte originário.

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1 Artigo 41º. Direito a uma boa administração. 1. Todas as pessoas têm direito a que os seus assuntos sejam tratados pelas instituições e Órgãos da União de forma imparcial, equitativa e num prazo razoável. 2. Este direito compreende, nomeadamente: - o direito de qualquer pessoa a ser ouvida antes de a seu respeito ser tomada qualquer medida individual que a afete desfavoravelmente, - o direito de qualquer pessoa a ter acesso aos processos que se lhe refiram, no respeito dos legítimos interesses da confidencialidade e do segredo profissional e comercial, - a obrigação, por parte da administração, de fundamentar as suas decisões. 3. Todas as pessoas têm direito à reparação, por parte da Comunidade, dos danos causados pelas suas instituições ou pelos seus agentes no exercício das respectivas funções, de acordo com os princípios gerais comuns às legislações dos Estados-Membros. 4. Todas as pessoas têm a possibilidade de se dirigir às instituições da União numa das línguas oficiais dos Tratados, devendo obter uma resposta na mesma língua.
2 Disponível aqui.
3 Organismo público internacional, de caráter intergovernamental, criado em 1972 por iniciativa dos governos do México, Peru e Venezuela, sediado e Caracas e respaldada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (Resolução 2845 – XXVI).
4 Tese encampada inclusive pelo Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da célebre AP 470.
5 CAMPOS, A. M. Accountability: quando poderemos traduzi-la para o português? Revista de Administração Pública, v. 24, n. 2, p. 30 a 50, 12 jun. 1990.
6 Nesse sentido, considerada a existência de um dever fundamental de participação democrática, vide o nosso "O dever fundamental de participação democrática e a sua efetivação no Direito brasileiro. In: XX Congresso Nacional do Conpedi - Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito, 2011, Vitória. Anais do Conpedi. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2011. p. 8449-8478.

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AMANDO DE BARROS, Laura M. O dever fundamental de participação democrática e a sua efetivação no Direito brasileiro. In: XX Congresso Nacional do Conpedi - Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito, 2011, Vitória. Anais do Conpedi. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2011. p. 8449-8478.
B
ARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação a Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 7ª ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2009.
FREITAS, Juarez. Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa administração pública. São Paulo: Malheiros, 2007.
KANAYAMA, Rodrigo Luís. Orçamento público brasileiro, democracia e accountability. In CLÉVE, Clemerson Merlin (coord.). Direito constitucional brasileiro. Volume III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
STARLET, Ingo; BRANDÃO, Rodrigo. Comentário ao artigo 60. In: CANOTILHO, J.J. Gomes; MENDES, Gilmar; SARLET, Ingo W; STRECK, Lenio L. (coord.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 1124-1138.

Laura Mendes Amando de Barros
Doutora e mestre em Direito do Estado pela USP. Especialista em Direito Público pela Escola da Paulista da Magistratura e em Autoridades Locais e o Estado pela ENA-Paris. Ex-Controladora Geral do Município de São Paulo.

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