Migalhas de Peso

Retroatividade da norma penal heterotópica, a colaboração premiada e o pacote anticrime

As possibilidades de modificação nos regimes e de substituição da sanção por medidas alternativas foram o grande incentivo para celebração de acordos.

2/7/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

As colaborações premiadas no Brasil não são novidade no ordenamento jurídico. Apesar de as primeiras notícias datarem das Ordenações Filipinas, a produção legislativa sobre o tema sob a égide da Constituição Federal de 1988 teve início com a Lei de Crimes Hediondos em 1990. 

Nos últimos anos em que se vislumbrou o período hoje alcunhado de "lavajatismo", grande parte das colaborações premiadas foram celebradas antes da promulgação do Pacote Anticrime, sob os pilares de leis, muitas delas até hoje em vigor, que tratam o instituto como uma causa especial de redução de pena e possibilitavam, portanto, tratativas sobre pena a ser cumprida e o regime de cumprimento.  

Ao longo desses últimos 30 anos foram editadas diversas leis com previsões expressas de redução de pena aos acusados que levassem ao conhecimento das autoridades os detalhes de infrações penais de sua co/autoria. Há dispositivos dessa natureza desde a lei de crimes hediondos (de 1990) até a lei 12.850/13 (recentemente alterada), passando pela Lei de Lavagem de Dinheiro (lei 9.613), a qual, em seu art. 1º, §5º, além do benefício da redução de um a dois terços na pena, faculta "ao juiz deixar de aplicá-la ou substituí-la, a qualquer tempo, por pena restritiva de direitos" no caso de colaboração espontânea do acusado"

As possibilidades de modificação nos regimes e de substituição da sanção por medidas alternativas foram o grande incentivo para celebração de acordos. Segundo o Ministério Público Federal, o primeiro acordo de colaboração premiada clausulado do Brasil foi assinado em 2003, com o doleiro Alberto Youssef, no caso do Banestado. Só a partir dela, foram firmados mais de 20 outros acordos, recuperando-se mais R$ 30 milhões só com as colaborações subsequentes1

A ação penal 470/DF do Supremo Tribunal Federal, que ficou conhecida como "Mensalão", teve sua origem na colaboração do então deputado Federal Roberto Jefferson, a qual foi reconhecida pela Corte, que reduziu um terço de sua sanção. 

O Supremo Tribunal Federal, instado a chancelar acordos com cláusulas definindo a pena e regime de cumprimento, entendeu que tais tratativas eram legais e mereciam endosso. 

Todavia, o Pacote Anticrime consagrou inovações e vedações significativas, as quais restringem consideravelmente as reduções de pena a serem avençadas.   

Foi proscrita do âmbito negocial a definição de regimes "diferenciados" para cumprimento da pena imposta por uma condenação criminal, algo antes, como já dito, absolutamente corriqueiro na celebração dos acordos de colaboração da lei 12.850/13, que agora dispõe serem "nulas as cláusulas que violem o critério de definição do regime inicial de cumprimento de pena" e também nulas "as regras de cada um dos regimes"

Sem aqui tecer considerações sobre a conveniência da nova vedação legal, é indubitável que ela deverá incidir sobre acordos que versem sobre fatos ocorridos após o início da vigência da lei 13.964/19. Novos colaboradores não poderão, em suas tratativas, transigir sobre as regras dos regimes de cumprimento da reprimenda. 

Entretanto – aqui o ponto nevrálgico –, como tratar as colaborações que se referem a fatos anteriores à vigência do Pacote Anticrime? E, mais ainda, como tratar réus/investigados que já estavam em processo de negociação quando do termo inicial de vigência da lei 13.964/19? 

No que tange ao benefício sancionatório ofertado ao acusado/investigado, a colaboração premiada tem evidente natureza de causa especial de redução de pena, matéria de direito penal substantivo. Já sob a perspectiva da acusação, o negócio jurídico tem a finalidade de obtenção de provas, as quais, em certos tipos de criminalidade, dificilmente poderiam ser produzidas de outra forma. 

Nesse contexto, é inegável a natureza heterotópica – adjetiva e substantiva – das normas que disciplinam os acordos de colaboração, a depender do dispositivo analisado. O colaborador admite a prática criminosa e compromete-se a auxiliar a persecução penal em troca de benefícios à sua pena, ou seja, o negócio jurídico atua como causa especial de diminuição de pena do colaborador e, ao mesmo tempo, um importante meio de obtenção de provas.  

As regras de direito processual penal, aí incluídas as pertinentes à produção de provas, devem ter sua incidência regida pelo art. 2º do Código de Processo Penal – tempus regit actum – e, portanto, são aplicáveis a partir da publicação da lei que as institui. Já os dispositivos de natureza penal material merecem análise distinta.  

Considerando que diversos acordos com previsões específicas sobre regimes de pena diferenciados ao colaborador foram homologados pelo Supremo Tribunal Federal, é natural concluir que tais benefícios eram inteiramente lícitos. Não por acaso, foi necessária a edição de uma nova lei pelo Congresso Nacional para, de maneira específica, vedar a concessão por meio de colaboração premiada de alguns benefícios de direito material. 

Parece claro, nessa toada, que a vedação imposta pelo artigo 4º, § 7º, da lei 12.850/2013, não deverá retroagir aos fatos anteriores à vigência do dispositivo, pois implicaria claro prejuízo ao colaborador. 

Tratando-se de norma sobre regime de cumprimento de pena, questão de direito penal material por excelência, a norma mais grave não poderá alcançar o colaborador, sob pena de flagrante violação ao art. 5º, XL, da Constituição Federal.  

A questão é particularmente grave em relação aos investigados/acusados que já tenham iniciado negociações com o parquet antes da publicação da lei 13.965/19.  

Ao que tudo indica, a extinção de determinados benefícios de direito material no curso da negociação não apenas violaria o disposto no art. 5º, XL, da Lei Maior, como também vulneraria a segurança jurídica necessária à celebração de negócios processuais, mormente na seara penal.  

É importante mencionar que essa matéria foi levada à apreciação da Corte Constitucional por meio de agravo regimental, ainda não julgado.  

No mesmo sentido, também está em discussão no Supremo Tribunal Federal nos autos do HC 185.913/DF, a possibilidade de celebrar acordos de não persecução penal a casos em andamento. O relator, ministro Gilmar Mendes, afetou a questão ao Plenário da Corte, por entender que pela natureza heterotópica do art. 28-A do Código de Processo Penal, instituído também pela lei 13.964/19, sua possível aplicação nestas circunstâncias deve ser analisada à luz do art. 5º, XL, da Carta Republicana.  

Passado um longo e tenebroso inverno lavajatista de operações e, sobretudo, violações de garantias fundamentais os ares de mudança acendem novamente uma luz de esperança e consagram mais tranquilidade para que o Supremo Tribunal Federal se debruce sobre pontos basilares do direito penal em casos de tanta repercussão. 

Carlos Eduardo Machado
Sócio do escritório Carlos Eduardo Machado Advogados.

Mario Fabrizio Polinelli
Sócio do escritório Carlos Eduardo Machado Advogados.

Nastassja Chalub
Sócia do escritório Carlos Eduardo Machado Advogados.

João Pedro Drummond
Sócio do escritório Carlos Eduardo Machado Advogados.

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