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Ação de consignação em pagamento: Aquilo que, no início, não se vê

Não se deve enxergar que a sentença que acolhe a consignação tem caráter constitutivo, uma vez que a obrigação já se mostrará extinta com a consignação (completa) da obrigação.

2/7/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

A ação de consignação em pagamento, prevista atualmente a partir do art. 539 do Código de Processo Civil ("CPC"), possui como principal objetivo promover uma segurança jurídica às relações, possibilitando que o devedor possa se libertar da sua obrigação pela mora do credor (ou incerteza jurídica de quem ostenta a condição de credor) em receber a prestação. Assim, é que se pode dizer que a consignatória de pagamento é um meio de se declarar extinta uma obrigação pelo seu adimplemento. Não se deve enxergar que a sentença que acolhe a consignação tem caráter constitutivo, uma vez que a obrigação já se mostrará extinta com a consignação (completa) da obrigação. A sentença que constata o adimplemento, por meio da ação consignatória, apenas declarará extinta essa obrigação. Sustentar o contrário, é ignorar a regra de direito material que estipula o momento da extinção da obrigação.

No entanto, hipóteses existem em que a ação de consignação ganhará natureza dúplice, uma vez que poderá se desdobrar em verdadeiro processo análogo à cobrança e satisfação compulsória da obrigação. Isto ocorre quando, uma vez feito a consignação e citado o credor para se manifestar, indica em sua contestação a insuficiência do depósito (art. 544, IV). Para que essa alegação seja admitida no processo, no entanto, se faz necessário que o credor (réu da ação) indique, desde logo, o valor que entende devido para extinguir a obrigação. Trata-se de um requisito que vai além da formalidade processual, pois a ausência do seu cumprimento gerará não apenas a inadmissibilidade como a preclusão da alegação.

Assim, pelo fato do réu (credor) não ter se desincumbido do ônus – especificar o montante que entende devido – terá que arcar com a satisfação da obrigação pelo montante que foi depositado pelo devedor (autor da ação de consignação em pagamento). O juiz por sua vez, sendo somente este argumento trazido pelo réu (credor) – sem que tenha especificado o montante devido como impõe o CPC – deverá inadmitir a alegação e julgar procedente o pedido do autor (devedor) com a declaração de extinção da obrigação, liberando o devedor, e ainda procedendo a condenação do credor (réu) nas custas e honorários pelo princípio da causalidade.  Uma transitado em julgado a sentença, impõe-se a formação da coisa julgada de que a relação jurídica havida entre as partes foi satisfeita pela quitação, não podendo o réu (credor) tornar a discutir em qualquer outro processo, consequência direta do disposto nos arts. 507 e 508 do CPC.

Repisa-se que, por opção legislativa, a defesa consistente no fato do depósito não ser integral só poderá ser admitida no processo se vier acompanhada da declaração do montante que o réu (credor) entende ser devida. Se a defesa, por sua vez, contiver outros fundamentos (além das defesas processuais que são todas admitidas e aquelas relativas ao mérito da ação especificadas no art. 544), deverá analisar todos os argumentos, exceto aquela que por lei, não poderá ser admitida tendo em vista o descumprimento da exibição do montante que o réu entende devido.

Constando na defesa o montante que o réu entende devido, ato contínuo deverá ser permitido ao devedor (autor da ação) proceder a complementação do depósito, no prazo de 10 (dez) dias, podendo o réu (credor) proceder também o levantamento da quantia depositada como forma de liberação parcial do devedor. O interessante, no entanto, é quando o autor, intimado a complementar o depósito, persiste no entendimento que o depósito inicial feito é o integral e que ele, por si, é apto a extinguir a obrigação. Ou seja, se estabelece, no bojo de uma ação de consignação, uma discussão, entre as partes, do real montante devido. A controvérsia faz com que a ação, originariamente específica para se proceder a uma declaração de extinção de obrigação (liberatória para o devedor) passe a ser considerada um litígio análogo a uma ação de cobrança comum.

Em relação ao fato da consignatória ser um procedimento especial, não há qualquer empecilho uma vez que o procedimento é especial apenas até a citação do réu (credor). Sendo que a partir deste momento o que se tem é praticamente a continuidade do procedimento pelo rito comum. Portanto, em termos procedimentais, não há qualquer situação impeditiva ou obstativa. Uma vez inaugurada a controvérsia, pelo réu na defesa, é de se seguir permitindo ao credor (autor) que se manifeste sobre a alegação impeditiva e/ou modificativa apresentada pelo réu, trazendo aos autos alegações que, por sua vez possam refutar a argumentação de insuficiência trazida pelo réu.

Não há dúvidas que essa manifestação encontra respaldo no art. 350 do CPC, que deve ser aplicado, uma vez que a especialidade do procedimento de consignação em pagamento dá-se apenas até a citação do réu. Havendo resistência deste, por meio de oferecimento de contestação para impedir a declaração de extinção da obrigação pretendida pelo autor (credor), deve-se seguir o procedimento comum. Portanto, havendo manifestação pela insuficiência do depósito (especificando o réu o montante que considera devido) deve o julgador intimar o credor (autor) para, se quiser, complementar o depósito no prazo de 10 dias ou, alternativamente, caso não concorde com a manifestação do réu, se manifeste, no prazo de 15 (quinze dias) permitindo-lhe a produção de prova.

As duas situações (opções), merecem análise, pois ocasionarão situações importantes, no âmbito da sucumbência e até na continuidade do processo. Se o autor complementa o depósito – o que é permitido por decorrência da aplicação da economia processual – o seu ato é de concordância com a defesa apresentada pelo réu, e, portanto, o réu (credor) tinha justo motivo para não aceitar o depósito inicialmente ofertado (naquela monta em que constou como pedido inicial). Portanto, concordando o autor que o réu tem razão, deverá, pelo princípio da causalidade arcar com o ônus de sucumbência. Nesta hipótese, a sentença declarará extinta a obrigação pelos depósitos realizados pelo autor (aquele feito inicialmente e a complementação que adveio pela alegação do réu, em sede de defesa), porém, arcará o próprio autor com os honorários e custas, uma vez que sua postura inicial revelava um cumprimento parcial e, portanto, o seu pedido inicial de consignação daquele valor inicial, não operaria por si, a extinção da obrigação. Foi necessário que o réu se defendesse para que o autor complementasse o valor real da obrigação. Assim, apesar de no final das contas, a ação de consignação ter atingido o objetivo do devedor (autor) em se liberar da obrigação, a sua condenação em custas e honorários é devido em razão da aplicação da causalidade. Mutatis Mutandis, o mesmo fenômeno ocorre na lei de locações, com a necessidade de se atentar para a causalidade, no art. 67, VII, da lei 8.245/91.1

No segundo caso (segunda opção), continuando o processo em busca da solução da questão que adveio com a defesa do réu, ou seja, de se saber o real valor da obrigação para extingui-la, poderá assumir a sentença, uma natureza condenatório em razão da parte da obrigação até então inadimplida (com a consequência natural da mora). Neste aspecto, o art. 545 § 2º é claro em afirmar que, no mesmo processo se buscará definir o valor da obrigação necessário para sua extinção. No próprio dispositivo ainda, se verifica a possibilidade de se seguir em procedimento de liquidação para viabilizar futura execução. Neste caso, se terá uma sentença julgando improcedente o pedido de consignação (pois aquele valor pedido na inicial não foi suficiente para liberar o devedor), com a condenação do autor, em satisfazer o montante restante, condenando-o por óbvio em custas e honorários. Não se admite, que diante de um deposito reconhecidamente parcial, possibilite a procedência parcial da consignação2. Importante esclarecer que atualmente, o STJ possui tese firmada em regime de julgamento de recurso repetitivo (tema 967) Isto porque, tal qual lançada na tese firmada pelo STJ3, o objetivo legal da ação de consignação é a liberação do devedor da obrigação (e isto fica claro da redação do art. 539 do CPC), ou seja, é a declaração de extinção da obrigação.

Importante destacar que no julgamento do REsp 1108058/DF, afetado para a definição da tese referente ao tema 967, constou expressamente no acórdão que o depósito inicialmente feito (a menor e, portanto, motivo para a improcedência da ação), não está protegido contra os efeitos da mora, uma vez que, por não ser total, não liberou o devedor da mora. Assim, constou que: "O depósito faz cessar para o devedor os efeitos da mora, inclusive a fluência de juros de mora, salvo se a demanda for julgada improcedente. Sendo julgada improcedente em razão da insuficiência do depósito, são restaurados os efeitos da mora, inclusive no que diz respeito à parcela consignada, conforme a lição de Pontes de Miranda acima lembrada. Sendo a conta de depósito sujeita à remuneração, naturalmente o complemento a ser exigido do devedor em função da fluência da mora haverá de ser, no tocante à parcela consignada, apenas eventual diferença entre os encargos da mora previstos no contrato e a remuneração creditada pelo estabelecimento onde feito o depósito, sob pena de enriquecimento ilícito do credor."4 Tal sentença, de fato, constituirá título executivo em favor do réu (credor) que poderá, nos mesmos autos, iniciar o cumprimento de sentença.

Percebe-se que a ação de consignação de pagamento, é uma típica ação-surpresa, pois aquilo que dá início ao procedimento pode se desdobrar em uma típica ação de conhecimento, pelo rito comum, com o objetivo de se determinar o valor da obrigação. É como se, ocorrendo esta hipótese, iniciasse uma ação pelo seu fim (depósito) e se descobrisse, a partir deste depósito inicial, que ele não é suficiente para extinção da obrigação. A partir daí, a lide sobre qual o valor da obrigação se instaura. Evidentemente, no inconsciente (ou consciente) das partes, essa sempre foi a questão. Só não foi instantaneamente, por assim dizer, explicitada.

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1 Lei 8.245/91: Art. 67. Na ação que objetivar o pagamento dos aluguéis e acessórios da locação mediante consignação, será observado o seguinte: (...) VII - o autor poderá complementar o depósito inicial, no prazo de cinco dias contados da ciência do oferecimento da resposta, com acréscimo de dez por cento sobre o valor da diferença. Se tal ocorrer, o juiz declarará quitadas as obrigações, elidindo a rescisão da locação, mas imporá ao autor-reconvindo a responsabilidade pelas custas e honorários advocatícios de vinte por cento sobre o valor dos depósitos;
2 O STJ, no entanto, tem julgados, anteriores a pacificação do tema em regime de julgamento repetitivos, em que, se admitiu distribuição de sucumbência, admitindo, para efeitos práticos de sucumbência uma "procedência parcial".  Tal entendimento hoje está superado tendo em vista o precedente vinculante sobre a matéria. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO. DEPÓSITOS INSUFICIENTES. QUITAÇÃO PARCIAL DA OBRIGAÇÃO. ÔNUS SUCUMBENCIAIS. SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA. SÚMULA 83/STJ. RECURSO NÃO PROVIDO. 1. Não se verifica ofensa ao art. 535 do CPC quando o Tribunal de origem se manifesta de forma motivada para a solução da lide e declina os fundamentos jurídicos que embasaram sua decisão, não configurando omissão o pronunciamento judicial contrário à pretensão do recorrente. 2. Na ação de consignação em pagamento, a insuficiência do depósito não conduz à improcedência do pedido, mas sim à extinção parcial da obrigação, até o montante da importância consignada. Na hipótese de procedência parcial dos pedidos, os ônus de sucumbência devem ser suportados por ambas as partes. Incidência da súmula 83/STJ. 3. Agravo regimental não provido. (AgRg no AREsp 735.436/DF, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 17/9/2015, DJe 25/9/2015)

3 Tema 967 (transitado em julgado em 18/12/2018) "Em ação consignatória, a insuficiência do depósito realizado pelo devedor conduz ao julgamento de improcedência do pedido, pois o pagamento parcial da dívida não extingue o vínculo obrigacional.
4 Trecho do voto da ministra Maria Isabel Gallotti, que abriu divergência, sendo o voto vencedor para a tese que reviu o posicionamento até então do STJ (que admitia a procedência parcial). A nosso ver, com acerto esta revisão.

Scilio Faver
Advogado e sócio do escritório Vieira de Castro, Mansur & Faver Advogados.

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